Michelle Márcia Cobra Torre
Estado de Minas: 26/04/2014
Pessoas acompanham a passagem do trem com imagem de García Márquez em Santa Marta, na Colômbia |
Memória e solidão foram os grandes temas trabalhados pelo escritor Gabriel García Márquez, que nos deixou em 17 de abril. Nos últimos anos, o colombiano nascido em Aracataca, por ironia, vinha sofrendo de perda de memória e, com a saúde debilitada, não atendia mais a pedidos de entrevistas e evitava aparições públicas. A memória da história e das lutas políticas e sociais, que ele tanto se empenhara por não ser esquecida, logo a memória, a sua própria memória, traíra-lhe.
A obra de García Márquez alçou voo e a literatura latino-americana passou a ser conhecida por todo o mundo pelas palavras do criador de Macondo, demonstrando que o continente ao sul do Rio Grande poderia fazer muito mais que simplesmente balbuciar. Escritor, jornalista, crítico, sonhador, García Márquez refletiu em suas obras sobre a América Latina, sua política, seus caminhos e descaminhos. Inspirou-se na realidade cotidiana, nas histórias contadas pelas pessoas simples, mas também na literatura universal e nos grandes acontecimentos do século 20, que afetaram o continente e o mundo.
Para os interessados em entender a trajetória intelectual e literária do escritor, há duas obras marcantes do colombiano, Cheiro de goiaba, publicada em 1982, e Viver para contar, de 2002. Nessas obras, o escritor reflete sobre o passado e a memória, sobre o modo de recordar esse passado e sobre o ofício de escritor. A obra Viver para contar é a autobiografia de García Márquez e Cheiro de goiaba trata-se de uma entrevista concedida ao amigo e jornalista Plinio Apuleyo Mendonza. A entrevista gerou o livro que traz como autor na capa o próprio Gabriel García Márquez, embora os direitos autorais sejam reservados tanto para García Márquez quanto para Plinio Apuleyo Mendonza.
Cheiro de goiaba é interessante por García Márquez falar de suas origens, do início de sua carreira como escritor, das leituras que exerceram influência em seu pensamento e em sua formação literária, do ofício de escritor, de alguns de seus romances, de sua vida intelectual, entre outros assuntos. Cheiro de goiaba cobre um período da vida de García Márquez maior que o da autobiografia Viver para contar, embora de forma menos detalhada, mas abarcando pontos-chave da vida do escritor até aquele momento.
Já Viver para contar cobre a vida do escritor dos seus tempos de criança, quando vivia com seus avós na cidade de Aracataca, passando pelas lembranças dos colégios onde estudou até o início do curso de direito, que nunca terminou, chegando às suas experiências no jornalismo na Colômbia. A escrita se encerra quando García Márquez vai para a Europa realizar uma cobertura jornalística e acaba ficando por lá.
O texto da autobiografia Viver para contar inicia-se com a chegada da mãe do escritor em Barranquilla, cidade onde García Márquez trabalhava como jornalista e na qual encontrou um grupo de amigos que influenciariam muito no seu trabalho e na sua vida literária. Luisa Santiaga Márquez queria que o filho viajasse com ela até Aracataca para vender a casa que fora de seus pais. Essa viagem, empreendida quando García Márquez estava com 22 anos, funciona como fio condutor para a escrita de sua autobiografia, quando o colombiano está com mais de 70 anos. Assim, os tempos se confundem na obra, pois temos o tempo presente da escrita, o tempo dos acontecimentos vivenciados e ainda suas recordações revividas tanto durante a viagem quanto no momento da escrita.
As paisagens vistas da janela do trem, algumas mudadas outras intactas, suscitam na memória do escritor momentos vividos ali durante várias fases de sua vida, da infância à adolescência. A viagem de barco pelo Rio Magdalena, a paisagem dos bananais vista pelas janelas do velho trem de sua infância, uma fazenda bananeira no caminho que tinha o nome “Macondo” escrito no portal. Os povoados e suas velhas casas evocam lembranças, bem como um novo olhar em direção ao passado e uma vontade de recordá-lo para contá-lo. No momento dessa viagem, García Márquez ainda não havia publicado nenhum de seus romances, apenas alguns contos em jornais.
Na memória de García Márquez, os vestígios daquele povoado revolvem sentimentos em seu interior com algo de sobrenatural, uma vez que sua infância, vivida ali, foi povoada de histórias contadas por sua avó. O contato com aquela paisagem novamente faz com que ele se lembre de vários acontecimentos extraordinários que ouviu os adultos contarem quando criança. Essas imagens ficariam impregnadas em sua memória e somente deixariam de persegui-lo quando conseguisse colocá-las em seus contos ou romances.
Assim, em sua autobiografia, García Márquez compartilha com o leitor as dificuldades e descobertas do ato da escrita de um conto, de uma reportagem ou de um romance. Pois como conta, vivia com os originais de seu primeiro romance em uma pasta que levava para todos os lugares, colhendo leituras críticas de amigos para aperfeiçoá-lo. Rasgava folhas e folhas e passava horas na máquina de escrever do jornal, depois do expediente. Em Cheiro de goiaba, desabafa que não existe nada mais angustiante para um escritor que estar diante de uma folha em branco, e aconselha que o melhor é interromper uma jornada de escrita apenas quando se sabe o que irá escrever no dia seguinte. García Márquez também acredita ser o ofício de escritor o mais solitário do mundo, uma vez que ninguém pode ajudá-lo a escrever, e compara o ofício com a imagem de um náufrago no meio do mar.
Em Cheiro de goiaba, ele comenta que o ponto de partida de seus livros é uma imagem visual. Assim, O enterro do diabo nasceu da imagem de um velho que leva o neto a um enterro, e Ninguém escreve ao coronel parte da imagem de um velho coronel esperando uma lancha no mercado de Barranquilla. O ponto de partida de Cem anos de solidão foi a imagem de um velho que leva um menino para conhecer o gelo que estava sendo exibido como curiosidade. Essa última imagem inspira-se diretamente em uma experiência do escritor quando criança, conta. Seu avô, o coronel Nicolás Márquez, levou-o para conhecer o gelo no acampamento da companhia bananeira. Chegando lá, ordenou que se abrisse uma caixa de pargos congelados e fez com que o menino tocasse o gelo.
Em Viver para contar, o escritor conta ao leitor, às vezes de maneira implícita e outras vezes explícita, de onde partiu a inspiração de alguns de seus personagens. Ao relatar episódios vividos por ele quando criança, por seus pais, seus tios ou avós, García Márquez deixa para o leitor o prazer de estar fazendo uma descoberta da fonte de inspiração de seus personagens. É como se o leitor tivesse que montar um quebra-cabeça com as características e episódios ocorridos com diversos parentes para chegar à elaboração do personagem, ou melhor, desmontar um personagem e descobrir de onde cada parte foi inspirada na vida dos Márquez.
Por exemplo, sua avó Tranquilina pode se parecer muito com Úrsula de Cem anos de solidão, e seu avô, o coronel Márquez, não deixa de oferecer episódios e características para a composição do coronel Aureliano Buendía do mesmo romance, fabricando seus peixinhos de ouro, ou mesmo esperando a pensão por ter lutado na Guerra dos Mil Dias, como o coronel de Ninguém escreve ao coronel. Mesmo o romance entre certa moça e um telegrafista, proibido pelos pais dela, foi vivido na vida real por seus próprios pais – seus avós levaram Luisa Santiaga por uma longa jornada para que ela se esquecesse do telegrafista, o que não adiantou, pois, tal qual no romance, eles continuaram se comunicando com a ajuda de amigos telegrafistas que viviam nos povoados por onde ela passava.
Experiência da solidão Outra questão comentada pelo escritor é o tema da solidão, que o acompanhou durante anos, quando viveu longe da família em colégios de outras cidades e já adulto, quando exercia o ofício de jornalista em Cartagena, Barranquilla ou Bogotá. Acordava durante a noite apavorado após os pesadelos – herança das histórias que sua avó Tranquilina lhe contava sobre os mortos. O tema da solidão atravessa grande parte das obras de García Márquez, o homem solitário que mesmo com outros entes à sua volta ainda se sente só no mundo. García Márquez toca nesse tema durante a escrita de sua autobiografia, contando momentos de sua vida em que sentia uma imensa solidão. Ao que parece, relata esse sentimento com a intenção de que o leitor atente para o fato de que esse é um grande tema que perpassa sua obra.
Nos anos de colégio, longe da família, Gabriel García Márquez encontrou na leitura um consolo para sua solidão. Assim, ao ler A metamorfose, de Kafka, na juventude, descobriu que queria ser escritor. Quando rapaz, queria ser poeta, começando a se interessar pela literatura através da poesia. Leu Neruda, Rubén Darío e muita poesia popular. Ele comenta que lia tudo que lhe caía nas mãos. Entre suas influências, cita Sófocles, Rimbaud, Kafka, Virgínia Woolf, Faulkner, Hemingway, Joyce e a poesia espanhola do Século de Ouro. Com a leitura de Mrs. Dalloway, seu senso de tempo se transformou completamente e afirma que seria um autor diferente do que é se não tivesse lido esse livro aos 20 anos.
O escritor colombiano também acrescenta a essas influências literárias outras extraliterárias que foram decisivas para a sua obra. A avó Tranquilina e sua maneira de relatar histórias foi uma dessas influências, bem como o avô coronel Márquez com seus relatos das guerras civis de que tinha participado. A tradição do relato oral, proveniente da região da costa colombiana do Mar das Antilhas, também marcou sua forma de narrar.
Refletindo sobre a memória, García Márquez comenta que “até a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela nostalgia”. Tal concepção assume que as lembranças, após certo tempo, passam a ganhar um novo contorno na memória. E ainda, as transformações pelas quais as lembranças passam podem deturpar o passado: “A nostalgia, como sempre, havia apagado as lembranças ruins e aperfeiçoado as boas. Ninguém se salvava de seus estragos”.
García Márquez se transforma em personagem em sua própria escrita. Ele descreve seus sentimentos, seus desejos, suas lembranças e se reinventa. Escreve sobre si, se fazendo personagem de ficção, o personagem que é o escritor colombiano que viveu ou ouviu sua família contar todas aquelas histórias mágicas. Aquele que foi levado pelo avô para ver o gelo tal como ocorreria com o coronel Aureliano Buendía. O escritor que ao ler Kafka pela primeira vez na juventude decidiu que seguiria esse ofício.
Para García Márquez, recordar o passado é uma maneira de buscar episódios, lugares e histórias que uma vez impregnados na memória passam a fazer parte da sua escrita, mas também é uma forma de reconstituir os elementos de sua vida, fazendo uma segunda leitura do que já se viveu. Os acontecimentos ganham uma nova significação na memória de quem os recorda, e a escrita da história de si não está isenta da intencionalidade e nem mesmo da ficcionalização, pois como adverte o próprio García Márquez no início de Viver para contar, “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Para os leitores do colombiano, uma coisa é certa: as suas personagens vão continuar a caminhar pelas ruas, habitando nossas lembranças. Sempre que borboletas amarelas nos rodearem vamos nos lembrar de Cem anos de solidão; quando um aceno calçado em luvas brancas nos surpreender, vamos recordar de O outono do patriarca; se um vento forte provocar uma revoada, nos lembraremos de O enterro do diabo; quando um galo cantar, Ninguém escreve ao coronel virá à tona de nossa memória; e se um papagaio se enroscar nos galhos de uma árvore a memória trará O amor nos tempos do cólera. E a brisa do mar do Caribe, com sua infinidade de vozes, estará para sempre na memória dos latino-americanos que se recordarem deste grande escritor e intelectual chamado García Márquez.
Michelle Márcia Cobra Torre é jornalista, historiadora, mestre e doutoranda em estudos literários pela UFMG
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