Memória viva
Livros e filmes sobre os anos de chumbo ajudam a repensar a história do Brasil
Daniel Camargos
Estado de Minas: 01/04/2014
Iara Iavelberg, a jovem guerrilheira que deixou a vida burguesa, é tema de documentário em cartaz em BH |
Mais que produtora, a roteirista é fruto do golpe. Seu nome homenageia a tia, a aguerrida Iara Iavelberg – que, na clandestinidade, atendia por Mariana e foi assassinada aos 27 anos, em Salvador. A morte se deu durante caçada policial à guerrilheira do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a seu companheiro, o capitão Carlos Lamarca, que desertou das Forças Armadas.
“A ideia surgiu a partir da filmagem que fiz da exumação dos restos mortais da Iara, em 2003. A família lutou anos na Justiça por essa exumação”, afirma Mariana, que estava na barriga da mãe quando a tia morreu. A versão oficial do governo militar era de que a militante se matou para não entregar Lamarca. Porém, análise da perícia mostrou que ela foi executada.
Iara Iavelberg já havia sido retratada no filme Lamarca, do diretor Sérgio Rezende, em 1994. Mariana explica que muitas obras trazem a versão errada da morte de sua tia, pois foram lançadas antes da perícia. A saga da bela judia paulistana que trocou a confortável vida burguesa pela guerrilha ajuda a compreender por que tantos jovens como ela aderiram à luta armada.
Na série de matérias sobre os 50 anos do golpe, o Estado de Minas publica lista com 10 sugestões de livros e filmes essenciais para compreender o período. O jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira, autor do best seller O que é isso, companheiro?, garante: ainda há muitas histórias que merecem ser contadas sobre os anos de chumbo.
“Escrito no final do exílio, o livro tinha como objetivo dar um depoimento sobre o que vi durante a ditadura militar, de forma leve e jornalística, para alcançar o grande público. O que é isso... me trouxe muitas alegrias, inspirou um filme que concorreu ao Oscar e rendeu algum dinheiro para sobreviver quando cheguei ao Brasil”, recorda.
EXÍLIO
O mineiro Gabeira trabalhava no Jornal do Brasil quando participou, em 1969, do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, trocado por 15 presos políticos que partiram para o exílio. Preso, Gabeira deixou a cadeia rumo à Europa depois de ser trocado por outro diplomata, o alemão Ehreinfried Von Hollenben. Só voltou ao país em 1979, com a decretação da anistia.
Em 1997, quando o filme O que é isso, companheiro? foi lançado, reacendeu-se o interesse pelo tema, lembra ele. Dirigido por Bruno Barreto, o longa representou o país no Oscar. “Isso contribuiu para que mais pessoas, inclusive fora do Brasil, tivessem uma ideia do que se passou”, destaca.
Para Gabeira, a produção literária sobre o período poderia ser maior. “A ideia era de que a censura impedia a publicação de obras e, acabada a ditadura, muitos livros surgiriam. Mas o clima de falta de liberdade acabou contribuindo para que não saíssem das gavetas tantas obras assim, embora já se tenha escrito muito sobre o próprio período ditatorial”.
Cid Benjamin, um dos companheiros de Gabeira no sequestro do embaixador americano, vem hoje a Belo Horizonte fazer palestra na PUC Minas. Benjamin publicou recentemente o livro Gracias a la vida (José Olympio), que traz o relato de suas experiência como um dos líderes do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).
Além de relembrar os anos de chumbo, o autor faz um balanço de sua trajetória política. Depois de intensa militância no PT, Cid se filiou ao PSOL com críticas contundentes aos ex-companheiros que hoje estão no poder.
As atrizes Cláudia Abreu e Beth Lago, em Anos rebeldes, como a jovem Heloísa, que adere à luta armada, e a mãe, a socialite Natália |
CONFIRA
50 ANOS DO GOLPE DE 64
Bate-papo com Cid Banjamin. Hoje, às 17h10. Prédio 13 da PUC Minas, Avenida Dom José Gaspar, 500, câmpus Coração Eucarístico. Entrada franca.
EM BUSCA DE IARA
Documentário de Flávio Frederico sobre a guerrilheira Iara Iavelberg.
12 anos. Hoje, às 19h. Cine 104 (Praça da Estação, 104, Centro).
LIVROS
A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura derrotada e A ditadura encurralada
De Elio Gaspari
Editora Intrínseca, R$ 39,90
(cada volume)
• Lançados entre 2002 e 2004, os quatro volumes foram reeditados este ano. O trabalho de duas décadas do jornalista Elio Gaspari se baseou em acervo pessoal valioso, além de 25 caixas de documentos de Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Brasil nunca mais – um relato para a história
De Paulo Evaristo Arns e equipe
Vozes, R$ 65,70 e R$ 24,90
(edição de bolso)
• Lançado em 1985, traz o dossiê mais completo da tortura e dos torturadores que escreveram a página mais sombria dos 25 anos da ditadura civil-militar.
Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo
De Mário Magalhães
Cia. das Letras, R$ 60
• O jornalista escreveu a biografia completa do inimigo nº 1 dos militares: o comunista Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN) e guerrilheiro de fama mundial.
Combate nas trevas
De Jacob Gorender
Ática, esgotado (disponível em sebos, custa cerca de R$ 100)
• Escrito pelo historiador comunista, o livro publicado em 1987 foi o primeiro a mapear as organizações de esquerda e o lado sombrio da repressão. Uma referência para quem pretende compreender o período, de autoria do intelectual que atuou no combate à ditadura.
O que é isso, companheiro?
De Fernando Gabeira
Cia. das Letras, R$ 23 (edição de bolso)
• Gabeira foi o primeiro a escrever sobre detalhes da guerrilha urbana, ao narrar sua participação no sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em 1969. O sucesso do livro, lançado em 1979, foi fundamental para a carreira política do ex-guerrilheiro, que se tornou deputado federal e disputou o governo fluminense e a Prefeitura do Rio de Janeiro.
1968: o ano que não terminou
De Zuenir Ventura
Objetiva, R$ 49,90
• O jornalista consegue capturar o espírito da época e conduz o leitor para o contexto do ano fundamental para a história do Brasil e do mundo. Em dezembro de 1968, foi decretado o AI-5, que iniciou os anos de chumbo.
Gracias a la vida – memórias de um militante
De Cid Benjamin
José Olympio, R$ 35
• Pode ser lido como uma antítese à obra de Gabeira – ambos eram militantes do MR-8. Cid foi um dos mentores do sequestro do embaixador norte-americano, mas, diferentemente de Gabeira, sempre se posicionou à esquerda até romper com o PT e se
filiar ao PSOL.
Memórias de uma guerra suja
De Rogério Medeiros e Marcelo Netto
Topbooks, R$ 43,90
• O depoimento de Cláudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Político-Social (Dops) no Espírito Santo, traz detalhes das barbaridades cometidas pelas forças de repressão.
Brasil: História indiscreta da ditadura e da abertura
De Ronaldo Costa Couto
Record, R$ 50
• Secretário no governo Tancredo Neves e historiador, o mineiro analisa as causas que levaram o Brasil à ditadura militar. Escrito a partir de tese de doutorado defendida na Sorbonne, o livro dá a palavra a militares e civis, à esquerda
e à direita.
Almanaque 1964
De Ana Maria Bahiana
Cia.das Letras, R$ 54,50
• Leitura leve, em estilo almanaque pop. Em vez de armas e conspirações, a jornalista fala de Nara Leão, Bob Dylan, Glauber Rocha e Rolling Stones, entre outros artistas que deram o tom à vida cultural dos anos 1960
FILMES E MINISSÉRIE
O que é isso, companheiro? (1997) – De Bruno Barreto
• O maior sucesso entre os longas que tratam do período. Baseado no livro de Fernando Gabeira, concorreu ao Oscar de filme estrangeiro e é focado no episódio do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.
Batismo de sangue (2007) – De Helvécio Ratton
• Baseado no livro homônimo de Frei Betto, lançado em 1983. Aborda a ação dos dominicanos em apoio à Ação Libertadora Nacional (ALN) e a crueldade da tortura. Um dos frades, Tito, suicidou-se em decorrência dos maus tratos infligidos pelo delegado Sérgio Fleury.
Cabra marcado para morrer (1984) – De Eduardo Coutinho
• O documentário sobre a vida da família do camponês João Pedro Teixeira, assassinado por capangas de latifundiários em 1962, foi interrompido com o golpe em 1964. Retomado em 1981, depois de Coutinho ter escondido os negativos da repressão, o longa é um símbolo dos anos de chumbo e da volta da democracia.
Zuzu Angel (2006) – De Sérgio Resende
• Traz a história da estilista mineira que enfrentou os militares para exigir o corpo do filho, o militante Stuart Angel. Zuzu denunciou a ditadura nos EUA e morreu em acidente de carro atribuído a agentes da repressão.
Pra frente, Brasil (1982) – De Roberto Farias
• Um dos primeiros longas sobre o tema, foi rodado ainda na ditadura, graças ao processo de abertura política. A trama de ficção retrata a repressão e o clima de euforia com a conquista da Copa do Mundo de 1970, no México. O filme levou à demissão do então presidente da Embrafilme, Celso Amorim, atual ministro da Defesa.
O ano em que meus pais saíram de férias (2006) – De Cao Hamburguer
• Outra ficção sobre os anos de chumbo, a tortura e a Copa de 1970. Protegido pela comunidade judia, criança aguarda a volta dos pais, presos pela repressão.
Anos rebeldes (1992) – Minissérie da TV Globo
• Uma das obras de maior sucesso sobre os anos 1960/1970, a minissérie em 20 capítulos tinha como pano de fundo um caso de amor e abordava a opção de jovens pela luta política e a clandestinidade. Influenciou fortemente o movimento dos caras pintadas, que foi às ruas pedir o impeachment do presidente Fernando Collor.
Jango (1984) – De Silvio Tendler
• Documentário essencial para entender a trajetória do presidente gaúcho deposto pelos militares. Com trilha sonora
de Milton Nascimento e Wagner Tiso,
o filme levou meio milhão de espectadores ao cinema.
Que bom te ver viva (1989) – De Lucia Murat
• Militante de esquerda, a diretora foi torturada e sua obra é marcada por essa experiência. O documentário traz depoimentos de oito mulheres que optaram pela luta armada. A atriz Irene Ravache é uma espécie de alter ego de Lucia Murat.
Em busca de Iara (2013) – De Flávio Frederico
• Mariana Pamplona, sobrinha da militante Iara Iavelberg, é autora do roteiro e fez as entrevistas sobre a trajetória da guerrilheira e companheira de Carlos Lamarca, ícone da esquerda. O filme mostra que Iara foi assassinada – ela não se suicidou, como concluíram inquéritos oficiais.
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