Tereza Cruvinel - Silêncio nos quartéis
Mais eloquente do que os discursos foi o silêncio dos quartéis
Estado de |Minas: 01/04/2014
O céu cinzento de
ontem foi propício à recordação do dia em que o Brasil morreu na praia e
embrenhou-se num túnel escuro, do qual sairia 21 anos mais tarde. Em
verdade, no dia 31 apenas começaram, com a movimentação das tropas do
general Mourão Filho, a partir das 5h da manhã, as 44 horas cruciais,
que terminarão pouco depois da 1h da madrugada de 2 de abril. Foi mais
ou menos àquela hora que, já estando a situação militar praticamente
dominada pelos golpistas, um senador da República fez o serviço sujo
institucional, apossando-se da Presidência num golpe de mão (e de
falácias) para entregá-lo a um presidente da Câmara que se prestou ao
fingimento no cargo, até que fosse empossado o primeiro general ditador.
A exatidão da data não mudará a história, mas é parte dela, e assim
devia ser ensinada.
Para os marcados pela ditadura, que pensaram
tanto nela nestes últimos dias de tanta evocação, mais eloquente que
alguns discursos e as poucas manifestações foi o silêncio dos quartéis.
Por tantos anos, a Ordem do Dia nesta data foi uma bula a ser decifrada.
Por ela, sabia-se quando o vento soprava a favor da distensão ou do
endurecimento, se haveria trovoadas ou seria mantida a paz dos
cemitérios. Mesmo após a redemocratização, elas continuaram sendo
editadas, para recordar a “revolução gloriosa de 1964”. Há pouco tempo,
deixaram de ser divulgadas mas não faltariam ontem, se não tivesse o
ministro da Defesa, Celso Amorim, transmitido a determinação da
presidente Dilma: não seriam admitidas celebrações por parte do pessoal
da ativa. Os reformados, sim, que digam o que quiserem, desfrutando da
liberdade de expressão garantida pela democracia. O silêncio dos
quartéis no cinquentenário do golpe teve sua profecia musical. Apesar de
você, de Chico Buarque, sempre foi cantada nas aflições da resistência.
“Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia. Inda pago pra ver/o jardim
florescer/Qual você não queria./Você vai se amargar/Vendo o dia
raiar/Sem lhe pedir licença.” Embora tão sutil, foi censurada.
Falaram
ontem os que deviam falar. A presidente Dilma fez um bom discurso,
contido na autorreferência, apesar do que sofreu no porão da tortura,
restrito ao significado maior da data: “Nós podemos olhar para esse
período e aprender com ele, porque nós o ultrapassamos”. Falaram os que
viveram a hora crucial, como Waldir Pires e Almino Afonso, octogenários,
mas donos de uma lucidez impressionante, na lembrança e na avaliação. O
Congresso, que foi algoz e vítima, e ainda os que, tendo resistido,
puderam governar o país na democracia, Lula, Sarney e Fernando Henrique.
Aos mortos, que não falam, as evocações de ontem e de hoje eram
devidas.
Jango
Mesmo nestes dias de
revisitação dos idos de 1964, o papel do ex-presidente João Goulart
segue deslocado do lugar que lhe cabe na história. Os conservadores de
ontem e de hoje continuam responsabilizando-o por um golpe do qual foi
apenas vítima. Parte da esquerda ainda lamenta que ele não tenha
comandado a resistência enquanto era tempo, quando havia ainda forças
militares leais. Errático, frustrou os aliados que esperaram por uma
ordem que ele não deu. Mas o comportamento de Jango no golpe já fora
esboçado lá atrás, na crise do veto militar à sua posse, depois da
renúncia de Jânio, em 1961. Brizola comandou a resistência com uma
metralhadora no ombro, uma rádio no porão do Palácio Piratini, cabeça da
cadeia da legalidade, e as tropas prontas para agir. Na sinuosa volta
da China, passando por Paris, Nova York, Buenos Aires e Montevidéu,
Jango acabou aceitando o acordo para tomar posse sob o sistema
parlamentarista, abdicando de parte dos poderes presidenciais. Assim
contornava o veto militar e evitava derramar sangue. Decepcionou
Brizola. Ali, depois de tudo resolvido, falou ao povo gaúcho: “Que Deus
me proteja, que o povo me ajude e que as armas não falem”. Em 1964, não
quis novamente que as armas falassem, sabedor que era das graves
consequências de uma intervenção militar americana, que apontava
inclusive para a cisão territorial do Brasil. Foi o que ele contou a
Waldir ter ouvido de San Thiago Dantas.
Jango, fazendeiro na
origem, não era um intelectual refinado, mas não era um político
estúpido nem irresponsável. Elegeu-se deputado, foi ministro do
Trabalho, duas vezes vice-presidente, com votações maiores do que as do
titular da chapa, antes de suceder a Jânio. Não armava golpe, não era
comunista nem entregaria o poder a eles. “Não serei o Kerenski de
vocês”, disse, num encontro em que havia sindicalistas do PCB. Kerenski
governou a Rússia entre a deposição da monarquia, em fevereiro, e a
revolução bolchevique, em outubro. O PCB, ou melhor, Prestes, é que se
iludia com a conjuntura brasileira.
Juremir Machado, em seu livro
Jango, vida e morte no exílio, recompõe sua nostalgia no exterior, tão
perto do Brasil em que não podia entrar. Voltou morto. Seu corpo exumado
voltou recentemente a Brasília para a coleta de material para análises,
no âmbito da investigação sobre as causas de sua morte. É importante
sanar essa dúvida. O regime não tinha limites e era sócio da Operação
Condor. Mas ele era cardiopata, já tivera pelo menos dois enfartes
antes. Não é isso, entretanto, que lhe dará o devido lugar na história. É
o resgate do significado de seu governo e da emergência do povo em
defesa das reformas de base, da radicalização democrática que era
ensaiada, despertando as reações que levaram a um regime que, apesar de
sua resignação, acabou correndo sangue. E muita dor.
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