quarta-feira, 14 de maio de 2014

Barroco bachiano - Ailton Magioli

Barroco bachiano 
 
Uma canção é pra isso, que está sendo filmado em Ouro Preto, faz uma ponte entre Brasil e Alemanha, tendo como elo uma fictícia partitura perdida na cidade mineira


Ailton Magioli
Estado de Minas: 14/05/2014


Gravações em frente à Igreja do Pilar, em Ouro Preto: cidade colonial volta a ser cenário de produção internacional (fotos: Beto Novaes/EM/D. A PRESS)
Gravações em frente à Igreja do Pilar, em Ouro Preto: cidade colonial volta a ser cenário de produção internacional

Quase três décadas depois de Luar sobre parador, de Paul Mazursky, que reunia Richard Dreyfuss, Raul Julia e Sonia Braga no elenco, Ouro Preto volta servir de cenário para uma produção cinematográfica internacional. Na trilha do musicólogo alemão Curt Lang (1903-1997), que na década de 1940 localizou em Minas Gerais partituras e partes musicais manuscritas que remontam ao século 18, o diretor Ansgar Ahlers filma até semana que vem, na cidade colonial mineira, Uma canção é pra isso (Bach in Brazil). A ficção, que oficializa a estreia do jovem diretor alemão em longa-metragem, tenta tornar crível a hipótese de uma partitura original perdida de um dos filhos de Johann Sebastian Bach (1685-1750) ter reaparecido na cidade histórica mineira, há dois séculos.

Em busca de tal tesouro, desembarca a contragosto em Ouro Preto Marten, um professor alemão de música, interpretado por Edgar Selge (A experiência). Vítima de assalto em plena Praça Tiradentes, ele acaba se aproximando de Cândido, vivido pelo baiano Aldri da Anunciação, que será responsável pela transformação do alemão em terras mineiras. Criado no seio de uma família alemã, com a qual a mãe trabalha em Ouro Preto, Cândido, que é funcionário de um reformatório infantil, vê no alemão a oportunidade de levar a música para os internos da instituição, com os quais o professor acaba se envolvendo.

“Eu te ajudo a conseguir de volta seus documentos e roupas roubados, além de ajudar a procurar a partitura que veio buscar. Em contrapartida, você vai dar aula de música para as crianças”, relata o ator baiano Aldri da Anunciação sobre seu personagem, salientando que, a partir de então, a trama toma novo rumo, gerando o envolvimento do mestre com os novos alunos. “É uma história de dupla reinserção social: das crianças e do professor”, diz o ator. Além da alemã Franziska Walzer, o elenco de Uma canção é pra isso (Bach in Brazil) se completa com os brasileiros Marília Gabriela, Stepan Nercessian, Thays Garayp e uma centena de figurantes mineiros.

Foi a partir de conversa com um artista que esteve no Brasil e manteve contato com a produção musical colonial que o diretor Ansgar Ahlers diz ter tido o insight para o filme. “Ninguém acreditava que havia música barroca no Brasil, achavam a informação inverossímil”, recorda Clemens Schaeffer, que divide a coprodução alemã com a carioca Eliana Soarez, da Conspiração Filmes. De acordo com ele, o diretor ficou impressionado ao descobrir que o Brasil não era apenas praia, favela, Rio e São Paulo. “Ao enviar fotos de Ouro Preto, todos perguntavam se ele estava na Toscana (Itália) ou em Portugal. ‘Não, estou em Ouro Preto, no meio do Brasil’”, lembra o diretor.

Taxi daydream, de 2004, que Ansgar filmou em São Paulo, inaugurou a relação do diretor alemão com o Brasil. Para escrever o roteiro do primeiro longa-metragem, ele veio pessoalmente pesquisar o acervo de música barroca em instituições como UFMG (Acervo Curt Lange), Museu da Música de Mariana e igrejas de São João del-Rei. A escolha de Ouro Preto para as filmagens, ainda de acordo com Clemens, se deu por causa da similaridade arquitetônica da cidade histórica mineira com a região onde o longa será filmado, em Bückeburg, na Alemanha. Na próxima semana, o diretor e parte do elenco (Aldri da Anunciação, Thays Garayp e sete das oito crianças selecionadas) embarcam para a Alemanha.

Além da Igreja do Pilar, onde foram feitas as tomadas de Marília Gabriela, as igrejas do Carmo, da Sé, São Francisco de Assis e de Bom Jesus de Matosinhos, a Casa dos Contos, o Colégio Arquidiocesano de Ouro Preto e a mina Chico Rei serão cenário do filme, que ainda tem o Museu da Inconfidência, na Praça Tiradentes, como pano de fundo do assalto do recém-chegado professor alemão à cidade. Na pele da ministra da Justiça, Marília Gabriela faz uma participação especial no longa. “É uma participação afetiva”, relata ela, que recebeu convite do produtor brasileiro Leonardo Barros, radicado na Alemanha, depois que Fernanda Montenegro desistiu do projeto em razão de outros compromissos profissionais.

“A ideia do filme é bonita e importante, porque vai resultar em algo leve, apesar das grandes mensagens que traz, tais como as de reinserção social, juventude e cultura, esperança e sonho”, afirma a atriz e jornalista, para quem Uma canção é pra isso (Bach in Brazil) vai selar a identificação entre dois países, por meio da grande linguagem universal que é a música. “Esforcei-me para parecer uma ministra sofisticada, justa e incisiva”, confessa Marília, que garante ter construído a personagem com equilíbrio entre poder e delicadeza.
O diretor alemão Ansgar Ahlers em ação: entusiasmo com o cenário histórico da cidade mineira
O diretor alemão Ansgar Ahlers em ação: entusiasmo com o cenário histórico da cidade mineira

Mineira Única mineira no elenco, Thays Garayp vive Dulce, a supervisora disciplinar da instituição de ensino em que o professor alemão vai dar aulas de música para as crianças. “Muito rígida e entediada com a profissão, no decorrer da trama ela terá oportunidade de se transformar”, comemora a atriz, salientando o fato de o diretor ter dado mais visibilidade para a personagem depois de conhecê-la. “Estou orgulhosa”, confessa Thays, que está filmando em Ouro Preto desde o dia 5.

Com viagem agendada para a Alemanha, onde irá participar da conclusão das filmagens, ela comemora o fato de a primeira viagem internacional de carreira ter sido coincidentemente na Europa, onde se apresentou com o coral Ars Nova, que integrava na época. “Estou em estado de graça”, diz Thays Garayp. “Não planejei chegar à TV, que dirá a uma produção cinematográfica internacional”, justifica a alegria. Thays, que é engenheira civil de formação, iniciou carreira na música, passou pelo teatro, conquistou espaço na TV e agora retorna ao cinema, depois de Mulheres do Brasil, de Malu De Martino, e O circo das qualidades humanas, de Geraldo Veloso, Jorge Moreno, Paulo Augusto Gomes e Milton Alencar.

Figura conhecida dos brasileiros, o carioca Stepan Nercessian interpreta Vargas, o diretor de recuperação infantil da instituição de ensino que abriga as crianças. “Hoje (ontem) filmamos a cena que deve ser o ápice da glória da garotada, que faz a primeira apresentação pública durante a visita da ministra da Justiça (vivida por Marília Gabriela) à cidade”, afirma Stepan, constantemente abordado por populares durante as filmagens em Ouro Preto.

“É um filme muito bonito. Um olhar estrangeiro sobre o Brasil e Ouro Preto”, acrescenta o ator e deputado federal (PPS/RJ). Segundo Stepan Nercessian, o diretor Ansgar Ahlers optou por um olhar diferenciado do país, indo além dos estereótipos. “É um clima muito bonito, o lugar, o tempo, o ritmo”, conclui o ator. A estreia de Uma canção é pra isso (Bach in Brazil) está prevista para o segundo semestre de 2015.
Marília Gabriela faz participação no papel de ministra da Justiça
Marília Gabriela faz participação no papel de ministra da Justiça

Bach à brasileira

Uma canção é pra isso (Bach in Brazil) vai contar ainda com a participação do cavaquinista carioca Henrique Cazes na trilha sonora. O instrumentista escreveu três arranjos especialmente para o filme, apresentando temas de Bach com molho brasileiro. Cazes já havia mostrado com sucesso o casamento do barroco com o chorinho com o grupo Camerata Brasil, em disco que reuniu a elite dos chorões cariocas em torno de um repertório que incluía Bach, Pixinguinha e Villa Lobos.

Baiano alemão

Aldri da Anunciação diz que não sentiu dificuldades em coprotagonizar o filme, porque domina a língua alemã. O ator baiano, que morou em Berlim, onde estagiou em escolas de teatro e ópera, salienta que 80% das falas de seu personagem são em alemão. “Mas o trabalho que estou fazendo é uma mistura. Afinal, o Cândido vive entre as ruas de Ouro Preto e a casa da família alemã em que a mãe dele trabalha. Daí o fato de ele se prontificar a ajudar o professor assaltado na cidade”, explica o ator, para quem a atuação não tem idioma.

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