Valor Econômico - 30/05/2014
Chico - Por Gonçalo Junior
O tema exílio estava em voga no Brasil, em 1967, quando Chico Buarque de Hollanda, com apenas 23 anos, deu uma entrevista à revista "O Cruzeiro". O assunto foi abordado em tom de brincadeira. Desde abril de 1964, o golpe militar assombrava as liberdades individuais no país. Com certa ironia, o repórter da famosa revista perguntou quais seriam as três músicas que o jovem compositor levaria para uma ilha deserta, "caso fosse cassado ou confinado" pelo governo. Sem vacilar, ele, que se exilaria na Itália dois anos depois, após ser preso, citou "Amélia" (Ataulfo Alves e Mário Lago), "Quando o Samba Acabou" (Noel Rosa) e "João Valentão" (Dorival Caymmi). A lista parecia estratégica, no sentido de valorizar o que ele considerava os nomes mais representativos da música brasileira, sofisticada, mas sem perder seu caráter popular, no momento em que se discutia o uso da guitarra na MPB.
A seleção, entretanto, parece sincera. Ataulfo, Noel e Caymmi, sem dúvida, foram suas grandes influências. Assim como as marchinhas de Carnaval, São João e Natal de Lamartine Babo, Assis Valente e Ary Barroso, que tanto ouviu nos primeiros anos de infância, ainda na década de 1940. O que Chico dificilmente suporia era que, anos depois, ele próprio se tornaria o escolhido como tema musical de incontáveis brasileiros que se imaginariam em uma ilha deserta. O Valor ouviu 25 nomes ligados à música - críticos, em sua maioria, biógrafos, cineastas, acadêmicos e artistas - para que elegessem as músicas que consideravam a melhor entre as quase 400 - em 38 álbuns originais -, no momento em que Chico Buarque chega aos 70 anos de vida, no dia 19 de junho, e 50 de carreira. "Construção", composição de 1971, foi escolhida a melhor, com cinco votos. "O que Será (à Flor da Terra)", de 1976, ficou em segundo, com quatro menções. "Futuros Amantes" e "Olê, Olá" empataram em terceiro, com dois votos. Outras escolhas foram difusas.
"'Construção' é a mais criativa, a mais elaborada de todas as suas composições, ancorada em um arranjo maravilhoso. Representa o lado da inteligência musical de Chico, que é o renascimento de Noel Rosa, só que com um alto nível intelectual, extraordinário", justifica o maestro Júlio Medaglia. Ao saber que seu voto decidira a disputa entre "Construção" e "O que Será", ele se lembrou de um momento marcante. Em 1966, o júri do Festival da MPB da TV Record estava dividido entre "A Banda", de Chico e interpretada por Nara Leão, e "Disparada", de Geraldo Vandré e Theo de Barros, defendida por Jair Rodrigues. "No calor da discussão, Paulo Machado de Carvalho [diretor da emissora] entrou na sala e disse para nós: 'Conversei com Chico. Ele me disse que não quer levar o primeiro lugar sozinho'. Como sabemos, as duas músicas ficaram em primeiro lugar."
"Construção" também mereceu o voto do crítico literário e professor aposentado da USP Carlos Felipe Moisés. Ele avaliou o preciosismo técnico da letra, que disseca cuidadosamente. "São 41 versos escrupulosamente alexandrinos, cesura no lugar certo, e todos terminam com um proparoxítono de três sílabas." A segunda parte, prossegue Moisés, repete a primeira, ou com sutis variações ou substituindo a palavra final por outra de igual medida. "Toda essa engenharia passa despercebida, tão persuasivo é o casamento de letra e melodia, aliás monótona, repetitiva, massacrante, como a vida do cara que 'morreu na contramão'. Ou como a vida do poeta capaz de tal proeza: por trás da ordem aparente, a vigorosa pulsação da raiva mal contida."
A mesma canção, do disco homônimo de 1971, foi a eleita pelo produtor
musical André Midani. "Trata-se de uma escolha pela delicadeza, de
sensações, de intuição, de melodia e de poesia. Não se trata de algo
voltado para indústrias e comércios musicais." Dizer que uma composição é
melhor do que outras, na opinião do crítico musical e historiador
Carlos Calado, é polêmico. Mesmo assim, no caso da obra de Chico
Buarque, ele indica "Construção". "Com uma letra bastante original,
arquitetada em dodecassílabos e rimas proparoxítonas, é um exemplo
perfeito de como uma canção pode se aproximar do requinte da poesia sem
soar artificial."
O escritor, crítico literário e biógrafo de Vinicius de Moraes ("O Poeta da Paixão") José Castello, a princípio, votaria em "Construção", por ser uma música que, além de muito bonita, revela o engajamento social que sempre caracterizou a arte de Chico Buarque. Mas seu voto foi para "O que Será", por expressar a filosofia de vida de Chico, "a ideia de que estamos todos submissos a forças que nos ultrapassam e nos moldam".
O crítico musical Tárik de Sousa prefere as duas. Para ele, "Construção" tem uma meticulosa arquitetura de proparoxítonas, que alicerça esse clássico da metalinguagem. "Na argamassa, virtuosismo estético e a fratura exposta do desnível social do país", destaca. E "O que Será?" tem, para ele, uma estrutura modular e permeável, que faz dela um "móbile musical intempestivo, que driblou a retranca da censura da ditadura disparando indagações como setas em alvos inescapáveis".
O grupo dos eleitores exclusivos de "O que Será" é puxado por Carlos Rennó. Sobre a música, o crítico e compositor cita uma passagem do texto inédito "Jogos e Joias de Chico", que sairá no seu livro "O Voo das Palavras Cantadas", a respeito da poesia de canção, previsto para o próximo mês. "O trunfo dessa música: dizer o que até hoje nenhuma canção disse, insinuando, por meio da grande adivinha a que os versos não respondem (sendo a letra-poema a longa enumeração de perguntas sem resposta que é), o que está dentro de todos os seres humanos, e comunicando assim a dimensão, a mais profunda e mais concreta do amor, de Eros, na nossa experiência." Rennó se empolga tanto que ressalta: "Juntem-se todas as mais importantes canções já compostas até hoje por Porter, os irmãos Gershwin, Rodgers e Hart, Ary, Caymmi, Tom, Dylan, Lennon e McCartney, Caetano, Gil, Benjor, Michael, Stevie, Prince... E entre as maiores das maiores de todos os tempos, em todo o mundo, estará 'O que Será'."
Apreciador dessa composição, Paquito Moura, compositor e colunista musical do site Terra Magazine, lembra que Chico Buarque já escreveu que "Águas de Março" deveria ser escolhida como o samba mais bonito do mundo. "Talvez, porque Tom Jobim consegue falar de quase tudo nessa canção enumerativa, do pequeno ao grande, do desimportante ao que se considera importante - pau, pedra, febre, promessa de vida etc. Enfim, ele roça o absoluto nessa canção." Chico, seu discípulo, fez três letras para uma mesma melodia - composta para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", tem versões que marcam passagens diferentes da trama: "O que Será", canção que, para Paquito, também roça o absoluto. "Em 'À Flor da Terra', a perspectiva é mais geral. Em 'O que Será', individual, lírica. Mas as duas letras fazem uma pergunta para a qual não se tem resposta precisa, talvez por que não exista resposta. Ou respostas que se expressam por negativas: o que não tem receita, censura, juízo, cansaço e, por fim, limite. O ilimitado, o absoluto, o que se diz pelo que não é ou não possui."
"Roda Viva", "Pedro Pedreiro", "Funeral de um Lavrador", "A Banda", "Gota d'Água" e "Cálice". Todas merecem figurar na lista de clássicos de Chico. Mas nenhuma foi mencionada na enquete. Uma canção pouco lembrada, porém, "Olé, Olá", é a melhor - e a mais querida - para duas autoridades em cultura nacional: o crítico e escritor Sérgio Cabral e o diretor de cinema e dramaturgo Domingos Oliveira. "É importante pelas circunstâncias como a conheci, em um momento de grande efervescência musical, que era a época dos grandes festivais, em que fui jurado diversas vezes. Marcou uma época muito forte na vida de todos nós", diz Cabral. "Sempre vivi no meio musical, escrevia sobre música. Era o universo em que eu circulava. É possível que ele me conhecesse de vista. Mas, quando o vi cantar pela primeira vez, veio a certeza de que eu estava diante de um grande compositor." Oliveira ressalta que Chico é o único compositor de sua geração, quando se fala em excelência de conteúdo e autor clássico. "Ele é o melhor do mundo."
Outra que também recebeu dois votos foi "Futuros Amantes". Para o escritor e crítico Nelson Motta, é a melhor por seus critérios técnicos - e também a favorita do coração - em letra e música. "Com forte e refinada influência jobiniana, poderia ser assinada com orgulho pelo próprio maestro soberano. Na verdade, está à altura, profundidade e densidade poética das melhores canções de Tom Jobim. Mas, ao mesmo tempo, marca a maturidade de Chico e de seu estilo autoral em que o virtuosismo formal e o absoluto domínio da sonoridade e das cadências das palavras se somam à riqueza e originalidade das imagens poéticas de um amor imaginado num futuro Rio de Janeiro submerso." O escritor e jornalista Humberto Werneck, autor de "Chico Buarque - Tantas Palavras", também escolheu "Futuros Amantes". "Sem prejuízo de joias que veio a fazer depois, acho que ele, nesta canção de 1993, está no auge de sua maturidade de compositor e letrista, fino e delicado como em raras passagens de sua iluminada carreira."
Poucos conhecem tanto Chico quanto sua biógrafa Regina Zappa, autora de "Chico Buarque - Para Todos" e do indispensável "Chico Buarque - Para Seguir Minha Jornada". Ela escolhe "Paratodos", "música-celebração- da-música desse grande artista brasileiro que vai na estrada há muitos anos". Antes do voto, porém, deixa evidente a intimidade com a obra do músico. Escolher só uma música foi como procurar agulha em um palheiro recheado de agulhas. Pensou nas românticas - "Suburbano Coração", "Futuros Amantes" e "Eu Te Amo". Lembrou das dilacerantes - "Pedaço de Mim", "Atrás da Porta" ou "Angélica". Ou nas músicas que descrevem com verdade e simplicidade a vida real: "Cotidiano", "O Meu Guri", "Construção" e "Pedro Pedreiro". E nos sambas "Quem Te Viu, Quem Te Vê", "Tem Mais Samba", "Ela Desatinou", "Juca", "A Rita", "Homenagem ao Malandro", "Deixa a Menina". Entre as líricas, mencionou "Olê, Olá", "Joana Francesa", "Sonho de um Carnaval" e "As Vitrines". E há as que falam com o coração feminino, como "Olhos nos Olhos", "Folhetim" e a clássica "Com Açúcar e com Afeto".
A feminina "Atrás da Porta", parceria de Chico com Francis Hime, é a primeira das duas escolhas entre as melhores para o músico e jornalista Luiz Chagas. "O que mais me chama a atenção nessa música é o fato de ela começar de chofre. Desconheço se foi uma melodia letrada ou vice-versa." O ápice, diz ele, é o verso "dei para maldizer o nosso lar", em que o primeiro verbo assume o significado de "começar a", em vez do mais chulo e óbvio. "A dramaticidade é exacerbada pela narrativa em voz feminina, uma das especialidades do artista. A canção foi lançada no disco 'Elis Regina', de 1972 - ou seja, no auge da ditadura -, e a Pimentinha dedicou-lhe uma interpretação soberba e repetida nos palcos literalmente à exaustão. Até hoje não entendo como a censura não chiou."
Embora as músicas do disco - que tem "Deus lhe Pague" - sejam chamativas em termos de construção, "Bom Tempo", para Chagas, resume a carpintaria de Chico, que define como o mais legítimo herdeiro de Noel Rosa, um inventor de melodias à maneira de Cartola. "A facilidade com que ele evoca e mistura as dissonâncias da bossa nova com as consonâncias dos dobrados das bandinhas de interior é tocante e inventiva. 'Morena dos Olhos d'Água' e 'Carolina', entre tantas dentre as minhas preferidas, se inserem nesse viés."
Diretor de "Veja Esta Canção" (1994), filme inspirado em quatro canções - entre elas, "Samba do Grande Amor", de Chico -, Cacá Diegues considera "Joana Francesa" inesquecível, bela e inesperada, um ponto de inflexão no cancioneiro de Chico por sua densidade, originalidade e virtuosismo. Walnice Nogueira Galvão, escritora e professora emérita da USP, afirma que, "em meio a um tesouro de obras-primas, que vão do lírico ao trágico, passando pelo grotesco e pelo francamente galhofeiro, a melodia e o ritmo do samba "Acorda Amor" dão a nota brasileira".
Assinada por Julinho de Adelaide (pseudônimo criado por Chico para enganar a censura durante a ditadura), diz ela, tem uma brilhante letra, que critica a ditadura em seu período mais negro. "A notável inversão do clichê se autoexplica: o uivo de agonia que se eleva no refrão ('... chame, chame, chame o ladrão!') encarna o desespero dos acossados pelo terror de Estado. Vinte e um anos de inquebrantável resistência à tirania - tal é o título que ninguém disputa a Chico Buarque."
Tudo de Chico é bom, em letra e música, para o compositor e escritor Nei Lopes, que elegeu o samba-canção "O Meu Guri". "Ela me toca por retratar uma faceta do amor maternal muito evidente nos guetos cariocas, que eu conheço de perto. É o daquela mãe que não vê, nunca, os malfeitos do filho. Nessa letra, o tratamento tragicamente irônico dessa percepção distorcida ('Ele disse que chegava lá!') torna a obra mais do que genial."
"Brejo da Cruz" foi a escolha do jornalista e crítico literário Oscar Pilagallo, autor do livro "Roberto Carlos". Seu critério é particular: uma música que fosse só dele, tivesse tema social - "em que ele se destaca, apesar de cantar tão bem o amor e ser craque na crônica" -, transbordasse lirismo, outra característica de Chico, e fizesse um casamento feliz de letra e melodia. "Brejo da Cruz" é a última de um espécie de trilogia dedicada a crianças de rua. As outras duas são "Pivete" e "O Meu Guri". "É o melhor retrato da indiferença da sociedade ao infortúnio da criançada 'alucinada' que 'se alimenta de luz'."
Crítico musical e autor do blog Quinta Essência, sobre discos pouco comentados ou esquecidos de MPB, Marcelo Pinheiro aponta como sua canção predileta uma dessas que ocupam espaço cativo na memória afetiva. Trata-se de "João e Maria", interpretada por Chico e Nara Leão, em disco da cantora de 1977. "Essa valsinha fez muito sucesso durante minha infância. À melodia engavetada por décadas, composta por Sivuca, em 1947, Chico acrescentou letra repleta de imagens oníricas e lúdicas, que até hoje me remetem aos dias mágicos de quando eu era criança."
Menos famosa foi a apontada como melhor por Ricardo Cravo Albin, enciclopedista musical, produtor e fundador do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio. "'Rancho dos Mascarados' pode não ser a melhor, mas a que mais me impressionou na primeira fase de Chico como compositor. Não sei bem porque a escolho, sei apenas que em cada momento de felicidade que vivi nessas últimas quase cinco décadas da música, eu simplesmente começo a cantarolá-la." Importante historiador musical e crítico, antes de se tornar repórter do programa "Fantástico", Maurício Kubrusly prefere o lado político de Chico. Escolheu duas canções marcantes como símbolos de resistência à ditadura: "Apesar de Você" e "Vai Passar". "Ambas acenam com o fim da ditadura militar que amordaçou o Brasil durante tanto tempo e fizeram parte da nossa história."
A maioria das respostas da enquete, que consultou 40 pessoas, veio acompanhada de ressalvas e explicações das mais divertidas e aceitáveis, antes de aparecer o título e a justificativa da escolha - ou não. Alguns preferiram não votar. O diretor artístico da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp), compositor, violonista, crítico literário e musical, escritor e editor Arthur Nestrovsk, por exemplo, pediu desculpas e não arriscou. "Com toda sinceridade, acho impossível atender seu pedido. Não existe 'a' melhor." Houve quem brincasse que se alguém pedisse para fazer uma lista das dez melhores de Chico, acabaria apontando 40 e, por fim, entregaria 60 indicações. Foi o que disse o compositor, biógrafo e produtor Hermínio Bello de Carvalho. Além de ter dirigido shows de Chico, os dois compuseram "Chão de Esmeraldas", faixa que abre o disco "Chico Buarque de Mangueira" (1997). Sua escolha foi "Eu Te Amo" como a melhor. "Chico tem tantas composições geniais, mas essa me diz muito pessoalmente. Além disso, como letrista, ele é perfeito nessa canção. É a que eu gostaria de ter feito. Pode não ser a melhor para alguns, mas para mim é."
O jornalista, escritor e biógrafo Ruy Castro preferiu se abster de votar, em virtude do posicionamento de Chico contra as biografias não autorizadas, ao defender o direito dos artistas de preservar sua vida pessoal. "Já fui da opinião de que, se se fizesse uma lista dos cem melhores sambas de todos os tempos, Chico Buarque apareceria com pelo menos 10 ou 15. Mas depois da vergonhosa atuação dele no caso das biografias, resolvi dar um tempo na minha apreciação por sua obra", diz. Enquanto isso, Maria Bethânia afirma, entusiasmada: "Rosa dos Ventos". "Para mim, é a mais importante, mais bonita e inesquecível. Título do espetáculo criado por Fauzi Arap e Flávio Império para mim. Uma música épica, forte, brasileira. Chico é o máximo."
O escritor, crítico literário e biógrafo de Vinicius de Moraes ("O Poeta da Paixão") José Castello, a princípio, votaria em "Construção", por ser uma música que, além de muito bonita, revela o engajamento social que sempre caracterizou a arte de Chico Buarque. Mas seu voto foi para "O que Será", por expressar a filosofia de vida de Chico, "a ideia de que estamos todos submissos a forças que nos ultrapassam e nos moldam".
"'Rosa dos Ventos' é a mais importante, mais
bonita e inesquecível. Uma música épica, forte, brasileira. Chico é o
máximo", afirma Maria Bethânia
O crítico musical Tárik de Sousa prefere as duas. Para ele, "Construção" tem uma meticulosa arquitetura de proparoxítonas, que alicerça esse clássico da metalinguagem. "Na argamassa, virtuosismo estético e a fratura exposta do desnível social do país", destaca. E "O que Será?" tem, para ele, uma estrutura modular e permeável, que faz dela um "móbile musical intempestivo, que driblou a retranca da censura da ditadura disparando indagações como setas em alvos inescapáveis".
O grupo dos eleitores exclusivos de "O que Será" é puxado por Carlos Rennó. Sobre a música, o crítico e compositor cita uma passagem do texto inédito "Jogos e Joias de Chico", que sairá no seu livro "O Voo das Palavras Cantadas", a respeito da poesia de canção, previsto para o próximo mês. "O trunfo dessa música: dizer o que até hoje nenhuma canção disse, insinuando, por meio da grande adivinha a que os versos não respondem (sendo a letra-poema a longa enumeração de perguntas sem resposta que é), o que está dentro de todos os seres humanos, e comunicando assim a dimensão, a mais profunda e mais concreta do amor, de Eros, na nossa experiência." Rennó se empolga tanto que ressalta: "Juntem-se todas as mais importantes canções já compostas até hoje por Porter, os irmãos Gershwin, Rodgers e Hart, Ary, Caymmi, Tom, Dylan, Lennon e McCartney, Caetano, Gil, Benjor, Michael, Stevie, Prince... E entre as maiores das maiores de todos os tempos, em todo o mundo, estará 'O que Será'."
Apreciador dessa composição, Paquito Moura, compositor e colunista musical do site Terra Magazine, lembra que Chico Buarque já escreveu que "Águas de Março" deveria ser escolhida como o samba mais bonito do mundo. "Talvez, porque Tom Jobim consegue falar de quase tudo nessa canção enumerativa, do pequeno ao grande, do desimportante ao que se considera importante - pau, pedra, febre, promessa de vida etc. Enfim, ele roça o absoluto nessa canção." Chico, seu discípulo, fez três letras para uma mesma melodia - composta para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", tem versões que marcam passagens diferentes da trama: "O que Será", canção que, para Paquito, também roça o absoluto. "Em 'À Flor da Terra', a perspectiva é mais geral. Em 'O que Será', individual, lírica. Mas as duas letras fazem uma pergunta para a qual não se tem resposta precisa, talvez por que não exista resposta. Ou respostas que se expressam por negativas: o que não tem receita, censura, juízo, cansaço e, por fim, limite. O ilimitado, o absoluto, o que se diz pelo que não é ou não possui."
"Roda Viva", "Pedro Pedreiro", "Funeral de um Lavrador", "A Banda", "Gota d'Água" e "Cálice". Todas merecem figurar na lista de clássicos de Chico. Mas nenhuma foi mencionada na enquete. Uma canção pouco lembrada, porém, "Olé, Olá", é a melhor - e a mais querida - para duas autoridades em cultura nacional: o crítico e escritor Sérgio Cabral e o diretor de cinema e dramaturgo Domingos Oliveira. "É importante pelas circunstâncias como a conheci, em um momento de grande efervescência musical, que era a época dos grandes festivais, em que fui jurado diversas vezes. Marcou uma época muito forte na vida de todos nós", diz Cabral. "Sempre vivi no meio musical, escrevia sobre música. Era o universo em que eu circulava. É possível que ele me conhecesse de vista. Mas, quando o vi cantar pela primeira vez, veio a certeza de que eu estava diante de um grande compositor." Oliveira ressalta que Chico é o único compositor de sua geração, quando se fala em excelência de conteúdo e autor clássico. "Ele é o melhor do mundo."
Outra que também recebeu dois votos foi "Futuros Amantes". Para o escritor e crítico Nelson Motta, é a melhor por seus critérios técnicos - e também a favorita do coração - em letra e música. "Com forte e refinada influência jobiniana, poderia ser assinada com orgulho pelo próprio maestro soberano. Na verdade, está à altura, profundidade e densidade poética das melhores canções de Tom Jobim. Mas, ao mesmo tempo, marca a maturidade de Chico e de seu estilo autoral em que o virtuosismo formal e o absoluto domínio da sonoridade e das cadências das palavras se somam à riqueza e originalidade das imagens poéticas de um amor imaginado num futuro Rio de Janeiro submerso." O escritor e jornalista Humberto Werneck, autor de "Chico Buarque - Tantas Palavras", também escolheu "Futuros Amantes". "Sem prejuízo de joias que veio a fazer depois, acho que ele, nesta canção de 1993, está no auge de sua maturidade de compositor e letrista, fino e delicado como em raras passagens de sua iluminada carreira."
Poucos conhecem tanto Chico quanto sua biógrafa Regina Zappa, autora de "Chico Buarque - Para Todos" e do indispensável "Chico Buarque - Para Seguir Minha Jornada". Ela escolhe "Paratodos", "música-celebração- da-música desse grande artista brasileiro que vai na estrada há muitos anos". Antes do voto, porém, deixa evidente a intimidade com a obra do músico. Escolher só uma música foi como procurar agulha em um palheiro recheado de agulhas. Pensou nas românticas - "Suburbano Coração", "Futuros Amantes" e "Eu Te Amo". Lembrou das dilacerantes - "Pedaço de Mim", "Atrás da Porta" ou "Angélica". Ou nas músicas que descrevem com verdade e simplicidade a vida real: "Cotidiano", "O Meu Guri", "Construção" e "Pedro Pedreiro". E nos sambas "Quem Te Viu, Quem Te Vê", "Tem Mais Samba", "Ela Desatinou", "Juca", "A Rita", "Homenagem ao Malandro", "Deixa a Menina". Entre as líricas, mencionou "Olê, Olá", "Joana Francesa", "Sonho de um Carnaval" e "As Vitrines". E há as que falam com o coração feminino, como "Olhos nos Olhos", "Folhetim" e a clássica "Com Açúcar e com Afeto".
A feminina "Atrás da Porta", parceria de Chico com Francis Hime, é a primeira das duas escolhas entre as melhores para o músico e jornalista Luiz Chagas. "O que mais me chama a atenção nessa música é o fato de ela começar de chofre. Desconheço se foi uma melodia letrada ou vice-versa." O ápice, diz ele, é o verso "dei para maldizer o nosso lar", em que o primeiro verbo assume o significado de "começar a", em vez do mais chulo e óbvio. "A dramaticidade é exacerbada pela narrativa em voz feminina, uma das especialidades do artista. A canção foi lançada no disco 'Elis Regina', de 1972 - ou seja, no auge da ditadura -, e a Pimentinha dedicou-lhe uma interpretação soberba e repetida nos palcos literalmente à exaustão. Até hoje não entendo como a censura não chiou."
Embora as músicas do disco - que tem "Deus lhe Pague" - sejam chamativas em termos de construção, "Bom Tempo", para Chagas, resume a carpintaria de Chico, que define como o mais legítimo herdeiro de Noel Rosa, um inventor de melodias à maneira de Cartola. "A facilidade com que ele evoca e mistura as dissonâncias da bossa nova com as consonâncias dos dobrados das bandinhas de interior é tocante e inventiva. 'Morena dos Olhos d'Água' e 'Carolina', entre tantas dentre as minhas preferidas, se inserem nesse viés."
Diretor de "Veja Esta Canção" (1994), filme inspirado em quatro canções - entre elas, "Samba do Grande Amor", de Chico -, Cacá Diegues considera "Joana Francesa" inesquecível, bela e inesperada, um ponto de inflexão no cancioneiro de Chico por sua densidade, originalidade e virtuosismo. Walnice Nogueira Galvão, escritora e professora emérita da USP, afirma que, "em meio a um tesouro de obras-primas, que vão do lírico ao trágico, passando pelo grotesco e pelo francamente galhofeiro, a melodia e o ritmo do samba "Acorda Amor" dão a nota brasileira".
Assinada por Julinho de Adelaide (pseudônimo criado por Chico para enganar a censura durante a ditadura), diz ela, tem uma brilhante letra, que critica a ditadura em seu período mais negro. "A notável inversão do clichê se autoexplica: o uivo de agonia que se eleva no refrão ('... chame, chame, chame o ladrão!') encarna o desespero dos acossados pelo terror de Estado. Vinte e um anos de inquebrantável resistência à tirania - tal é o título que ninguém disputa a Chico Buarque."
Tudo de Chico é bom, em letra e música, para o compositor e escritor Nei Lopes, que elegeu o samba-canção "O Meu Guri". "Ela me toca por retratar uma faceta do amor maternal muito evidente nos guetos cariocas, que eu conheço de perto. É o daquela mãe que não vê, nunca, os malfeitos do filho. Nessa letra, o tratamento tragicamente irônico dessa percepção distorcida ('Ele disse que chegava lá!') torna a obra mais do que genial."
"Brejo da Cruz" foi a escolha do jornalista e crítico literário Oscar Pilagallo, autor do livro "Roberto Carlos". Seu critério é particular: uma música que fosse só dele, tivesse tema social - "em que ele se destaca, apesar de cantar tão bem o amor e ser craque na crônica" -, transbordasse lirismo, outra característica de Chico, e fizesse um casamento feliz de letra e melodia. "Brejo da Cruz" é a última de um espécie de trilogia dedicada a crianças de rua. As outras duas são "Pivete" e "O Meu Guri". "É o melhor retrato da indiferença da sociedade ao infortúnio da criançada 'alucinada' que 'se alimenta de luz'."
Crítico musical e autor do blog Quinta Essência, sobre discos pouco comentados ou esquecidos de MPB, Marcelo Pinheiro aponta como sua canção predileta uma dessas que ocupam espaço cativo na memória afetiva. Trata-se de "João e Maria", interpretada por Chico e Nara Leão, em disco da cantora de 1977. "Essa valsinha fez muito sucesso durante minha infância. À melodia engavetada por décadas, composta por Sivuca, em 1947, Chico acrescentou letra repleta de imagens oníricas e lúdicas, que até hoje me remetem aos dias mágicos de quando eu era criança."
Menos famosa foi a apontada como melhor por Ricardo Cravo Albin, enciclopedista musical, produtor e fundador do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio. "'Rancho dos Mascarados' pode não ser a melhor, mas a que mais me impressionou na primeira fase de Chico como compositor. Não sei bem porque a escolho, sei apenas que em cada momento de felicidade que vivi nessas últimas quase cinco décadas da música, eu simplesmente começo a cantarolá-la." Importante historiador musical e crítico, antes de se tornar repórter do programa "Fantástico", Maurício Kubrusly prefere o lado político de Chico. Escolheu duas canções marcantes como símbolos de resistência à ditadura: "Apesar de Você" e "Vai Passar". "Ambas acenam com o fim da ditadura militar que amordaçou o Brasil durante tanto tempo e fizeram parte da nossa história."
A maioria das respostas da enquete, que consultou 40 pessoas, veio acompanhada de ressalvas e explicações das mais divertidas e aceitáveis, antes de aparecer o título e a justificativa da escolha - ou não. Alguns preferiram não votar. O diretor artístico da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp), compositor, violonista, crítico literário e musical, escritor e editor Arthur Nestrovsk, por exemplo, pediu desculpas e não arriscou. "Com toda sinceridade, acho impossível atender seu pedido. Não existe 'a' melhor." Houve quem brincasse que se alguém pedisse para fazer uma lista das dez melhores de Chico, acabaria apontando 40 e, por fim, entregaria 60 indicações. Foi o que disse o compositor, biógrafo e produtor Hermínio Bello de Carvalho. Além de ter dirigido shows de Chico, os dois compuseram "Chão de Esmeraldas", faixa que abre o disco "Chico Buarque de Mangueira" (1997). Sua escolha foi "Eu Te Amo" como a melhor. "Chico tem tantas composições geniais, mas essa me diz muito pessoalmente. Além disso, como letrista, ele é perfeito nessa canção. É a que eu gostaria de ter feito. Pode não ser a melhor para alguns, mas para mim é."
O jornalista, escritor e biógrafo Ruy Castro preferiu se abster de votar, em virtude do posicionamento de Chico contra as biografias não autorizadas, ao defender o direito dos artistas de preservar sua vida pessoal. "Já fui da opinião de que, se se fizesse uma lista dos cem melhores sambas de todos os tempos, Chico Buarque apareceria com pelo menos 10 ou 15. Mas depois da vergonhosa atuação dele no caso das biografias, resolvi dar um tempo na minha apreciação por sua obra", diz. Enquanto isso, Maria Bethânia afirma, entusiasmada: "Rosa dos Ventos". "Para mim, é a mais importante, mais bonita e inesquecível. Título do espetáculo criado por Fauzi Arap e Flávio Império para mim. Uma música épica, forte, brasileira. Chico é o máximo."
Chico Buarque, de todas as maneiras
Por Gonçalo Junior
Filho de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) - um dos intelectuais
mais importantes do país e autor do clássico "Raízes do Brasil" -, Chico
Buarque cresceu lendo autores franceses, russos e alemães, em um
ambiente intelectual e musical privilegiado. Ao mesmo tempo, amava os
sambas de Noel Rosa, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Nelson
Cavaquinho e muitos outros que ouvia no rádio ou na vitrola de sua
casa. Mais tarde, passou a imitar, ao violão, João Gilberto e Tom Jobim,
ídolos de adolescência.
O marco zero de sua carreira como compositor começou há 50 anos, ao compor "Tem Mais Samba". Em 1965, gravou o primeiro compacto, aos 21 anos, com as faixas "Pedro Pedreiro" e "Um Sonho de Carnaval". No ano seguinte, veio a consagração: "A Banda" passou a ser cantada em todo país e dividiu com "Disparada", de Geraldo Vandré, o primeiro lugar no Festival da Record. "Viva a música, o sopro de amor que a música e banda vêm trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando a confiança perdida nos homens e em suas promessas", escreveu Carlos Drummond de Andrade, no "Correio da Manhã", em 1966.
A canção em ritmo de marcha cantada por Nara Leão foi o suficiente para o fundador do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, Ricardo Cravo Albin, dobrar o conselho da instituição a colher um depoimento dele para a posteridade, aos 22 anos - um documento de valor inestimável para a história. "Tive de convencer pesos pesados, pois eles achavam um absurdo convidar alguém tão jovem, sem histórico musical relevante, enquanto outros nomes importantes ainda vivos não tinham sido ainda ouvidos por nós", diz Albin.
Ele conta que usou um argumento "velhaco e verdadeiro", porém necessário, movido por sua intuição e empolgação. "Lembrei que Noel Rosa tinha morrido com apenas 27 anos, em 1937, depois de levar uma vida desregrada, com muita bebida e cigarro, e que pouco havia de registro sobre sua vida. E que o mesmo poderia acontecer com Chico, que tinha uma rotina de boemia semelhante. Insisti que não podíamos perder a chance de um registro histórico urgente. Claro que não era assim, que exagerei, mas eu estava entusiasmado, tinha uma admiração imediata pela sua pequena obra, que me comoveu profundamente."
No mesmo ano de 1966, o cantor lançou o primeiro álbum: "Chico Buarque de Hollanda". Além de "A Banda", o disco traz outros clássicos, "A Rita", "Pedro Pedreiro" e "Olé, Olá". Na volta do exílio voluntário de 15 meses na Itália, iniciado em 1969, quando "comeu a pizza que o Diabo amassou", segundo Nelson Motta, Chico voltou transformado. Fez o compacto simples que trazia as faixas "Apesar de Você" e "Desalento", esta em parceria com Vinicius de Moraes.
O disco de nº 365.315, da Philips, foi recolhido por ordem da censura, depois de vender 100 mil cópias em apenas três semanas. "Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão", diz a letra de "Apesar de Você", que deveria fazer parte das faixas de "Construção" (1971). Com sofisticada combinação de rebeldia e lirismo, o disco é, para muitos, sua obra-prima, com canções inovadoras, marcadas pela ironia de um compositor maduro, que rompia com a imagem de bom moço.
Ao voltar do exílio, Chico parecia cansado de ser tratado como discípulo ou uma espécie de "Noel Rosa contemporâneo". A faixa-título - eleita sua melhor composição, segundo enquete publicada nesta edição - descrevia a existência ignorada e a morte trágica de um operário, homem simples que vivia à margem da euforia econômica artificial da ditadura, em uma letra poderosa, cantada como faziam os velhos menestréis da Idade Média ou os autores de cordéis nordestinos. Só que com altíssima sofisticação poética. O arranjo fabuloso, do maestro tropicalista Rogério Duprat, deu a forma acabada de um marco da MPB.
Chico voltou a criticar o regime com "Cálice", cantada com Milton Nascimento, com letra de confronto político, cheia de trocadilhos contra a censura e que foi vetada em 1973. "Meus Caros Amigos" (1976) tornou-se uma coleção de hits. Além das censuradas "Apesar de Você" e Cálice", trazia a segunda colocada na enquete do Valor "O que Será", mais "Mulheres de Atenas", "Olhos nos Olhos", "Vai Trabalhar, Vagabundo" e "Meu Caro Amigo".
A mensagem de "O que Será" foi entendida como senha para o engajamento na luta pela democracia. Chico daria ainda o tiro de misericórdia na ditadura, ao compor um tipo de hino da missa de sétimo dia do regime, enquanto este ainda não tinha baixado a sepultura, com "Vai Passar" (1984), samba acelerado e contagiante que varreu o país de uma euforia incontida quando se lutava pelas eleições diretas para presidente da República.
Chico Buarque continuou a fazer grandes discos, como "Paratodos" (1993), enquanto iniciava uma bem-sucedida carreira de escritor de romances (leia texto na pág. 14). A essa altura, construíra a trilha sonora de duas gerações, cujas existências seriam relembradas por suas canções eternamente. No ano passado, porém, criou um ruído em sua imagem: foi apontado de ser a favor da "censura", ao se manifestar contra as biografias não autorizadas e defender o direito dos artistas de preservar sua vida pessoal.
O marco zero de sua carreira como compositor começou há 50 anos, ao compor "Tem Mais Samba". Em 1965, gravou o primeiro compacto, aos 21 anos, com as faixas "Pedro Pedreiro" e "Um Sonho de Carnaval". No ano seguinte, veio a consagração: "A Banda" passou a ser cantada em todo país e dividiu com "Disparada", de Geraldo Vandré, o primeiro lugar no Festival da Record. "Viva a música, o sopro de amor que a música e banda vêm trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando a confiança perdida nos homens e em suas promessas", escreveu Carlos Drummond de Andrade, no "Correio da Manhã", em 1966.
A canção em ritmo de marcha cantada por Nara Leão foi o suficiente para o fundador do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, Ricardo Cravo Albin, dobrar o conselho da instituição a colher um depoimento dele para a posteridade, aos 22 anos - um documento de valor inestimável para a história. "Tive de convencer pesos pesados, pois eles achavam um absurdo convidar alguém tão jovem, sem histórico musical relevante, enquanto outros nomes importantes ainda vivos não tinham sido ainda ouvidos por nós", diz Albin.
Ele conta que usou um argumento "velhaco e verdadeiro", porém necessário, movido por sua intuição e empolgação. "Lembrei que Noel Rosa tinha morrido com apenas 27 anos, em 1937, depois de levar uma vida desregrada, com muita bebida e cigarro, e que pouco havia de registro sobre sua vida. E que o mesmo poderia acontecer com Chico, que tinha uma rotina de boemia semelhante. Insisti que não podíamos perder a chance de um registro histórico urgente. Claro que não era assim, que exagerei, mas eu estava entusiasmado, tinha uma admiração imediata pela sua pequena obra, que me comoveu profundamente."
No mesmo ano de 1966, o cantor lançou o primeiro álbum: "Chico Buarque de Hollanda". Além de "A Banda", o disco traz outros clássicos, "A Rita", "Pedro Pedreiro" e "Olé, Olá". Na volta do exílio voluntário de 15 meses na Itália, iniciado em 1969, quando "comeu a pizza que o Diabo amassou", segundo Nelson Motta, Chico voltou transformado. Fez o compacto simples que trazia as faixas "Apesar de Você" e "Desalento", esta em parceria com Vinicius de Moraes.
O disco de nº 365.315, da Philips, foi recolhido por ordem da censura, depois de vender 100 mil cópias em apenas três semanas. "Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão", diz a letra de "Apesar de Você", que deveria fazer parte das faixas de "Construção" (1971). Com sofisticada combinação de rebeldia e lirismo, o disco é, para muitos, sua obra-prima, com canções inovadoras, marcadas pela ironia de um compositor maduro, que rompia com a imagem de bom moço.
Ao voltar do exílio, Chico parecia cansado de ser tratado como discípulo ou uma espécie de "Noel Rosa contemporâneo". A faixa-título - eleita sua melhor composição, segundo enquete publicada nesta edição - descrevia a existência ignorada e a morte trágica de um operário, homem simples que vivia à margem da euforia econômica artificial da ditadura, em uma letra poderosa, cantada como faziam os velhos menestréis da Idade Média ou os autores de cordéis nordestinos. Só que com altíssima sofisticação poética. O arranjo fabuloso, do maestro tropicalista Rogério Duprat, deu a forma acabada de um marco da MPB.
Chico voltou a criticar o regime com "Cálice", cantada com Milton Nascimento, com letra de confronto político, cheia de trocadilhos contra a censura e que foi vetada em 1973. "Meus Caros Amigos" (1976) tornou-se uma coleção de hits. Além das censuradas "Apesar de Você" e Cálice", trazia a segunda colocada na enquete do Valor "O que Será", mais "Mulheres de Atenas", "Olhos nos Olhos", "Vai Trabalhar, Vagabundo" e "Meu Caro Amigo".
A mensagem de "O que Será" foi entendida como senha para o engajamento na luta pela democracia. Chico daria ainda o tiro de misericórdia na ditadura, ao compor um tipo de hino da missa de sétimo dia do regime, enquanto este ainda não tinha baixado a sepultura, com "Vai Passar" (1984), samba acelerado e contagiante que varreu o país de uma euforia incontida quando se lutava pelas eleições diretas para presidente da República.
Chico Buarque continuou a fazer grandes discos, como "Paratodos" (1993), enquanto iniciava uma bem-sucedida carreira de escritor de romances (leia texto na pág. 14). A essa altura, construíra a trilha sonora de duas gerações, cujas existências seriam relembradas por suas canções eternamente. No ano passado, porém, criou um ruído em sua imagem: foi apontado de ser a favor da "censura", ao se manifestar contra as biografias não autorizadas e defender o direito dos artistas de preservar sua vida pessoal.
Cronista das imperfeições da vida
Por José Castello
Uma marca - uma ferida - se derrama sobre toda a literatura de Chico
Buarque: a instabilidade. Nada é garantido. A insegurança predomina. A
falta de solidez interior e o mascaramento definem os personagens. São
seres volúveis, que atravessam a vida como podem, arrastando consigo
suas dúvidas e suas perguntas. Não há um solo, mas um pântano. Basta
lembrar o que ocorre com Eulálio Montenegro d'Assumpção, o personagem
central de "Leite Derramado", romance de 2009. Enquanto agoniza em um
leito de hospital, ele tenta reconstituir sua história de vida - que se
mistura à história da República brasileira - ditando-a para alguém que
tanto pode ser sua filha, Maria Eulália, sua ex-mulher Matilde, ou uma
enfermeira. Alguém que é só uma máscara. Não é certo sequer que ele dite
a história, talvez apenas delire. Claudicando, derrapando em
incertezas, mas maravilhados, nós a lemos.
Nesses relatos quebrados, com idas e vindas, cortes, deslizes, em que predominam não a visibilidade, mas a cegueira, o personagem se constrói. Nada mais temos que pedaços de uma vida, ou vislumbres, partes que nem sempre se conectam e se completam - exatamente, aliás, como acontece na vida de qualquer um. A vida não é perfeita e Chico Buarque faz da imperfeição um dos elementos cruciais de sua escrita.
Eulálio dita suas memórias, ou imagina que as dita? Até que ponto devemos confiar nas lembranças de um homem que, agonizando, em vez de ganhar corpo, se fragmenta? A memória é uma armadilha, feita de lapsos, deslizes, furos. É, porém, tudo o que Eulálio tem - e é, de certo modo muito doloroso, também tudo o que temos. A agonia do personagem de Chico não é uma agonia de morte, mas de vida. Sustentando seu relato, está o sonho de sair do hospital, de se casar e morar numa fazenda. Os sonhos são a cola que confere alguma densidade às lembranças. Pois, na medida em que é incoerente, a memória destrói a história, em vez de construí-la. Tanto que, quanto mais Eulálio recorda, mais perdido ele está e mais capenga é sua narrativa. A figura da mulher Matilde, fugidia, e da filha, que teria sido encontrada no lixo, acentuam esse derramamento. Nada se sustenta. No fundo, o relato de Eulálio é só uma forma de preencher o tempo. Talvez esse seja o papel da literatura: desenrolar narrativas sobre o tempo para que ele se torne mais aceitável e nos forneça a ilusão de um sentido.
Nesses relatos quebrados, com idas e vindas, cortes, deslizes, em que predominam não a visibilidade, mas a cegueira, o personagem se constrói. Nada mais temos que pedaços de uma vida, ou vislumbres, partes que nem sempre se conectam e se completam - exatamente, aliás, como acontece na vida de qualquer um. A vida não é perfeita e Chico Buarque faz da imperfeição um dos elementos cruciais de sua escrita.
Eulálio dita suas memórias, ou imagina que as dita? Até que ponto devemos confiar nas lembranças de um homem que, agonizando, em vez de ganhar corpo, se fragmenta? A memória é uma armadilha, feita de lapsos, deslizes, furos. É, porém, tudo o que Eulálio tem - e é, de certo modo muito doloroso, também tudo o que temos. A agonia do personagem de Chico não é uma agonia de morte, mas de vida. Sustentando seu relato, está o sonho de sair do hospital, de se casar e morar numa fazenda. Os sonhos são a cola que confere alguma densidade às lembranças. Pois, na medida em que é incoerente, a memória destrói a história, em vez de construí-la. Tanto que, quanto mais Eulálio recorda, mais perdido ele está e mais capenga é sua narrativa. A figura da mulher Matilde, fugidia, e da filha, que teria sido encontrada no lixo, acentuam esse derramamento. Nada se sustenta. No fundo, o relato de Eulálio é só uma forma de preencher o tempo. Talvez esse seja o papel da literatura: desenrolar narrativas sobre o tempo para que ele se torne mais aceitável e nos forneça a ilusão de um sentido.
Chico Buarque é um escritor que consegue manejar com firmeza a falta
de consistência e as ambiguidades que caracterizam a vida contemporânea.
Não tem medo dos aspectos dúbios, dos paradoxos, das situações
incompletas; ao contrário, dessa complexidade ele retira a força de seus
relatos. É o que acontece em um romance como "Estorvo", de 1999, uma
sucessão de fatos enigmáticos distantes de qualquer ilusão de coerência.
O que define o homem não é a coerência, mas a incoerência; a literatura
de Chico apenas cede a essa incômoda verdade. Através do olho mágico de
sua porta, o protagonista de "Estorvo" vê um desconhecido. Pode ser que
já tenha visto aquele rosto. Das feições indefinidas e da experiência
do desconhecimento surge uma aventura que nos é oferecida como uma
narrativa. O protagonista de romance habita um limite no qual sonho e
realidade não se separam. Ele vive desse cruzamento. Precisa suportá-lo.
Ele é a própria condição de sua existência. A mistura é o que o impede
de avançar - estorvo, isto é, obstáculo -, mas é também o que o faz
avançar. É no escuro, saltando obstáculos e adversidades, que vivemos.
Os personagens de Chico Buarque têm diante de si, sempre, uma série de desafios intransponíveis. E é porque não podem ser transpostos que eles conferem à vida uma impressão de estabilidade. De paralisia, que se mantém como regra, como destino que devemos aceitar. Paralisia instável, como se caminhássemos (afundássemos) em uma planície inundada. Também o "ghostwriter" José Costa, do romance "Budapeste", de 2003, habita a corda bamba. O caráter duplo de sua vida de escritor por encomenda já é um sinal da volubilidade em que está retido. Na Hungria, ele se transforma em Zsoze Kósta, uma espécie de falsificação da falsificação. Quem é ele, afinal? Eis uma pergunta que Chico nos oferece com grande resignação, já que nem ele mesmo, provavelmente, sabe respondê-la. A realidade é flúida, não é digna de confiança. É imperfeita e mutável, nada é garantido - e isso já começa em nossa vida pessoal, como Kósta nos mostra. Chico coloca em questão a solidez e retidão dos personagens realistas que quase sempre deram a marca da literatura brasileira. Em seus romances, o leitor não está pisando na seca de Graciliano, ou no mundo colorido de Jorge Amado, ou no pampa de Erico Veríssimo - ele nunca sabe onde está pisando. E, em consequência, nunca sabe onde está também.
As perguntas são muito mais frequentes que as respostas. As dúvidas, muito mais comuns que as afirmações. Chico Buarque nos introduz em um mundo no qual nada tem lugar e nome certo. Seus personagens são estrangeiros em um mundo que pisam pela primeira vez. Seus personagens são estrangeiros em um mundo que pisam pela primeira vez. Estão exilados daquelas qualidades - caráter, certezas, nome - que caracterizam o humano. No entanto, e paradoxalmente, essas oscilações são a marca mais fundamental do homem contemporâneo. Todos nos multiplicamos e nos dividimos para viver. Nesse aspecto, a literatura de Chico sincroniza com a vida atual, ela também pulverizada e indecifrável.
Já em "Benjamin", romance de 1995, o protagonista, Benjamin Zambraia, se encontra preso na rede de suas próprias obsessões. Nada em sua existência é muito nítido - e ele descobre que o mundo tem a estrutura de um pesadelo. Tem a impressão de que sua vida é filmada - e que ele não passa de um personagem de si mesmo. Essa duplicação confere ao mundo, mais uma vez, uma grande fragilidade. Se a vida é um filme, onde fica a realidade? Como qualificar de real uma experiência que se dissolve nas sombras e que se disfarça? Em vez de ser acolhedora e digna de confiança, a realidade se mascara - sintoma de nossa época de nomes falsos, de identidades flúidas e de mascarados - e se torna um obstáculo à própria existência. Em quem se pode confiar? Como sustentar a confiança em si mesmo? Sinais do mundo contemporâneo se espalham por toda a obra de Chico Buarque, que, com o avançar do tempo, se torna cada vez mais atual. Ela sincroniza com o mundo líquido que nos cabe viver, sem garantias, sem convicções seguras, sem certezas. Um mundo em que tudo pode ser tudo. Um mundo de que só a literatura, poderoso instrumento de desmascarar o real, consegue dar conta.
Os personagens de Chico Buarque têm diante de si, sempre, uma série de desafios intransponíveis. E é porque não podem ser transpostos que eles conferem à vida uma impressão de estabilidade. De paralisia, que se mantém como regra, como destino que devemos aceitar. Paralisia instável, como se caminhássemos (afundássemos) em uma planície inundada. Também o "ghostwriter" José Costa, do romance "Budapeste", de 2003, habita a corda bamba. O caráter duplo de sua vida de escritor por encomenda já é um sinal da volubilidade em que está retido. Na Hungria, ele se transforma em Zsoze Kósta, uma espécie de falsificação da falsificação. Quem é ele, afinal? Eis uma pergunta que Chico nos oferece com grande resignação, já que nem ele mesmo, provavelmente, sabe respondê-la. A realidade é flúida, não é digna de confiança. É imperfeita e mutável, nada é garantido - e isso já começa em nossa vida pessoal, como Kósta nos mostra. Chico coloca em questão a solidez e retidão dos personagens realistas que quase sempre deram a marca da literatura brasileira. Em seus romances, o leitor não está pisando na seca de Graciliano, ou no mundo colorido de Jorge Amado, ou no pampa de Erico Veríssimo - ele nunca sabe onde está pisando. E, em consequência, nunca sabe onde está também.
As perguntas são muito mais frequentes que as respostas. As dúvidas, muito mais comuns que as afirmações. Chico Buarque nos introduz em um mundo no qual nada tem lugar e nome certo. Seus personagens são estrangeiros em um mundo que pisam pela primeira vez. Seus personagens são estrangeiros em um mundo que pisam pela primeira vez. Estão exilados daquelas qualidades - caráter, certezas, nome - que caracterizam o humano. No entanto, e paradoxalmente, essas oscilações são a marca mais fundamental do homem contemporâneo. Todos nos multiplicamos e nos dividimos para viver. Nesse aspecto, a literatura de Chico sincroniza com a vida atual, ela também pulverizada e indecifrável.
Já em "Benjamin", romance de 1995, o protagonista, Benjamin Zambraia, se encontra preso na rede de suas próprias obsessões. Nada em sua existência é muito nítido - e ele descobre que o mundo tem a estrutura de um pesadelo. Tem a impressão de que sua vida é filmada - e que ele não passa de um personagem de si mesmo. Essa duplicação confere ao mundo, mais uma vez, uma grande fragilidade. Se a vida é um filme, onde fica a realidade? Como qualificar de real uma experiência que se dissolve nas sombras e que se disfarça? Em vez de ser acolhedora e digna de confiança, a realidade se mascara - sintoma de nossa época de nomes falsos, de identidades flúidas e de mascarados - e se torna um obstáculo à própria existência. Em quem se pode confiar? Como sustentar a confiança em si mesmo? Sinais do mundo contemporâneo se espalham por toda a obra de Chico Buarque, que, com o avançar do tempo, se torna cada vez mais atual. Ela sincroniza com o mundo líquido que nos cabe viver, sem garantias, sem convicções seguras, sem certezas. Um mundo em que tudo pode ser tudo. Um mundo de que só a literatura, poderoso instrumento de desmascarar o real, consegue dar conta.
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