Em busca de uma voz
Estudo sobre o livro Quarto de despejo - Diário de uma favelada, de Carolina de Jesus, mostra como o texto foi editado e de que forma a autora se tornou personagem para sempre ligada à obra literária
Ângela Faria
Estado de Minas: 10/05/2014
Carolina de Jesus foi bem aceita pelo público e
pela crítica, mas não repetiu o sucesso com os livros que lançou depois
de Quarto de despejo
|
Bem que a mineira avisou, em 1959, num de seus cadernos: “Vou trabalhar no cinema”. Pena que os leitores, universidades e jovens ativistas da tão badalada cultura da periferia de seu país ignorem a obra da “língua de fogo”, como ela se autoapelidou. Experimente comprar um dos livros de Carolina: a missão é praticamente impossível em BH neste 2014, quando se comemora o centenário de nascimento da autora.
Elzira Divina Perpétua, professora de literatura da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), acaba de lançar o livro A vida escrita de Carolina Maria de Jesus (Nandyala), fruto de mais de 15 anos de estudos dedicados à obra da neta de escravos nascida em Sacramento, no Triângulo Mineiro. O ensaio nos apresenta uma Carolina mais complexa e multifacetada do que a mera “porta-voz dos excluídos” descoberta pelo jornalista Audálio Dantas durante uma visita à favela paulistana do Canindé, em 1958, para fazer uma reportagem. Mais do que isso: a pesquisadora descreve os bastidores do produto Quarto de despejo – termo usado pela humilde mineira para se referir ao lugar destinado a miseráveis como ela na sociedade brasileira. O jornalista e a favelada, às voltas com as armadilhas da palavra, são classificados por Elzira como o autor e a escritora do campeão de vendas, marco da literatura brasileira.
Trechos do diário de Carolina, narrando o dia a dia dos favelados, deram origem a duas reportagens de Audálio, publicadas no jornal Folha da Noite, em 1958, e na revista O Cruzeiro, em 1959. O jornalista, hoje com 84 anos, selecionou o que seria publicado em Quarto de despejo, em 1960, depois de ler os 20 cadernos escritos por Carolina. Surgiu assim um best-seller fruto do rico momento político-cultural do Brasil pré-golpe de 1964. A crueza de Carolina, mãe solteira de três crianças, desconstruiu o morro utópico do samba, descarregou lixo nas praias azuis da bossa nova.
Com seus erros de português, mantidos no livro, e sua “caligrafia nervosa”, Carolina se tornou celebridade internacional e também alvo de polêmica. O crítico Wilson Martins acusou Audálio Dantas de impor um “embuste” ao país, mas o livro ganhou a defesa de Manuel Bandeira e de Rachel de Queirós, entre outros ícones da norma culta. Quarto... chamou a atenção da Time, da Life e do Paris Match. Alberto Moravia assinou o prefácio da edição italiana.
Celebridade fugaz, a “Cinderela negra” indispôs-se com seu “guru” jornalista, fez fama e se mudou da favela – primeiro para a casa de alvenaria no bairro paulistano de Santana, depois para um sítio em Parelheiros, onde morreu, praticamente no ostracismo e sem dinheiro. Ela escreveu também Casa de alvenaria (em 1961, ainda com o auxílio de Dantas), Provérbios (1963) e Pedaços da fome (1963) – nenhum desses livros teve grande repercussão. Depois de sua morte saiu Diário de Bitita, interessante volume de memórias, acessível atualmente graças ao empenho da Editora Bertolucci, da terra natal da autora.
Elzira Perpétua comparou os diários publicados e os manuscritos originais da favelada do Canindé. A vida escrita mostra como foram construídos dois “personagens”: o livro Quarto de despejo e a escritora Carolina Maria de Jesus. A professora da Ufop analisa a conjuntura em que surgiu o fenômeno e destaca a relação de prefaciadores, tradutores e da editoração com a obra. Ressaltando o valor daquela escrita lavrada na oralidade, Elzira mostra como ela foi “moldada” por Audálio Dantas para Quarto de despejo. O ensaio também se deve a ele, que permitiu à professora xerocar os cadernos originais.
Lê-se em Quarto de despejo o diário editado. De acordo com a autora de A vida escrita..., as supressões não se limitaram à eliminação de detalhes sem importância. Deixaram de ser publicadas “observações que apontam o posicionamento político de Carolina e que acompanham seus comentários sobre acontecimentos locais, nacionais e internacionais”, registra ela. Para Elzira Perpétua, houve supressões de tal monta “que, retirando de Carolina o tom agressivo que seria de todo natural diante das experiências vividas por ela diariamente, fizeram com que dois estudiosos de sua vida e obra chamassem a atenção para a passividade demonstrada nos relatos”. Em resumo: ali não estava a Carolina real.
Audálio explica que evitou relatos repetidos. A pesquisadora pondera: “O texto de Carolina será modificado não só em relação à repetição dos atos cotidianos, mas sobretudo no que concerne às reflexões sobre a vida. É aí que reside a maior (ir) responsabilidade da editoração, uma vez que o enunciado que acompanha o dia a dia sempre igual contém riqueza discursiva de observações lúcidas, carregadas de violência, humor, amargura, revolta ou resignação, que foi em grande parte suprimida”.
Ideologia Elzira Perpétua aponta o “recorte ideológico” do editor em passagens referentes a dona Julita, a quem Carolina chama de “minha irmã branca”. Essa personagem, nos originais, surge dedicando palavras de afeto, comida, roupas e pagamentos à catadora de papel. Esse relacionamento, de acordo com a professora, é “quase totalmente apagado no livro”, o que ela atribui ao desejo do editor de “introduzir uma separação entre classes sociais, que no manuscrito de Carolina não são tão impermeáveis quanto sugere Quarto de despejo”.
Ao cotejar as anotações originais com o livro, Elzira conclui: houve a intenção de compor a imagem de uma Carolina “vítima social – objeto, e não sujeito –, desamparada por todos e resignada com sua sorte”. De acordo com ela, “o projeto de Quarto de despejo realizou-se como ato intencionalmente predeterminado de conferir à publicação um valor de representação coletiva da miséria e do abandono do favelado. Para cumprir esse objetivo, foi necessário que o editor adaptasse a narradora a um modelo de sujeito que convergisse para uma personagem que, além de íntegra, forte, resignada e atenta aos problemas da comunidade, fosse também submissa, passiva, sem capacidade de julgamento, sem liberdade interior — enfim, produto e não produtora de um destino”.
Os diários foram escritos em duas etapas: de 15 a 28 de julho de 1955 e de 2 de maio de 1958 a 1º de janeiro de 1960. Elzira Perpétua chama a atenção para a interrupção. Lembra que Carolina nunca deixou de escrever seus poemas, provérbios e romances. A retomada se deu por interferência de Dantas, que a convence de que o diário não é perda de tempo. Carolina chega a registrar por escrito certa resistência em relação à revelação de detalhes e indiscrições do dia a dia de sua comunidade (texto suprimido do livro).
“A escritora tem consciência de que a linguagem que utiliza na escrita do diário não é a idealizada por ela, segundo o juízo de valor que adota, mas a que corresponde aos valores de Audálio Dantas”, anota a pesquisadora. A Carolina de Jesus “off- Audálio” escrevia poemas, provérbios, ficção, não gostava do que chamava de linguagem “pornográfica” para relatar quiproquós da favela. Para o jornalista, esses textos não eram tão valiosos quanto o depoimento, de grande força descritiva .
Carolina chegou a enviar originais da coletânea de poemas Clíris à revista norte-americana Seleções e sofreu ao vê-los rejeitados. Em seus manuscritos, explicitava o desejo de ser reconhecida “não como escritora do diário da favela, mas como poeta”, afirma Elzira Perpétua – que a compara a Pestana, personagem de Machado de Assis. Obcecado em compor grandes peças, ele amarga a infelicidade de ser admirado apenas por suas polcas descartáveis.
Para a professora de literatura da Ufop, sacrificaram-se facetas de uma Carolina de Jesus complexa, atormentada e dividida por contradições em favor de uma persona moldada “em imagem ideologicamente coerente com o modelo configurador de um sujeito a quem era dada voz de protesto contra o modelo econômico brasileiro então vigente”.
Essa “personagem” escritora foi construída pelo jornalista por meio de matérias anteriores ao lançamento de Quarto de despejo. “Como os antigos folhetins, as reportagens seduziram os leitores para o enredo do diário e os prenderam até o clímax do lançamento do livro”. Foi um show de marketing, há meio século. Carolina assinou contrato com a Editora Francisco Alves em meio a um batalhão de repórteres. Já famosa, ela deixou o Canindé devidamente fotografada e filmada pela TV – sob agressões dos vizinhos, indignados com revelações do best-seller sobre os arranca-rabos da comunidade.
Em entrevista concedida à professora, Audálio Dantas explica o processo de elaboração do livro, como se deram as reportagens iniciais e se diz profundamente incomodado ao ser associado a espertalhões que tiraram proveito de Carolina. Enfatiza a importância dos diários, minimiza outros escritos dela e destaca a importância do segundo livro, Casa de alvenaria, que não fez sucesso, segundo ele, “porque as pessoas queriam ali o que chocava no primeiro: ‘a pobre da favelada’”.
Além de lançar outras obras literárias, Carolina de Jesus gravou um disco – sem repercussão. Trinta e sete anos depois de sua morte, seus escritos ainda estão por aí, esperando por quem os decifre e revele a Carolina de verdade. Para nós, que a abandonamos, ela deixou esses versos: “Eu sonhei que estava morta/ Vi o meu corpo num caixão./ Em vez de flores, era um livro/ Que estava na minha mão”.
A VIDA ESCRITA DE CAROLINA MARIA DE JESUS
• De Elzira Divina Perpétua
• Editora Nandyala
• 340 páginas,l R$ 45
• Informações: 31) 3281-5894 e www.nabdyalalivros.com.br
Reconhecimento
“Aprisionada” nos anos 1960, a obra de Carolina de Jesus ganhou a atenção 30 anos depois: os pesquisadores Robert Levine e José Carlos Sebe Bom Meihy lançaram o ensaio Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus (Editora UFRJ), esgotado atualmente. Na Universidade de Brasília, Germana Henriques Pereira escreveu O estranho diário de uma escritora vira-lata. Em BH, a Editora C/Arte lançou a biografia Muito bem, Carolina!, de Marília Novais da Mata Machado e Eliana Moura Castro. Em Carolina Maria de Jesus – Uma escritora improvável (Garamond), Joel Rufino dos Santos traça um perfil da mineira. No início dos anos 1960, a peça Quarto de despejo tinha Ruth de Souza no papel da escritora. Carolina (2003), de Jeferson De, levou o Kikito de melhor curta-metragem em Gramado. Em 1971, a alemã Christa Gottmann-Elter dirigiu o documentário Favela: a vida na pobreza, homenagem à autora. Atualmente, estão disponíveis os livros Quarto de despejo (Editora Ática) e Diário de Bitita (Bertolucci), escritos por ela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário