João Paulo
Estado de Minas: 10/05/2014
A jornalista Karla Monteiro arrumou a mochila e se mandou para a Índia. Voltou cheia de histórias |
A
Índia tem sido, ao longo da história, o destino de muitos viajantes.
Mais que isso, de uma legião de buscadores. Há os que procuram o sentido
da vida, a espiritualidade, o amor, a verdade, a sabedoria ancestral, a
iluminação, o desbunde e até diversão. A jornalista Karla Monteiro
parece ter se nutrido de todos esses motivos. Juntou seus desejos, uma
leve depressão que acomete as pessoas nos dias frios e feios, uma
mochila com poucas roupas e se deu seis meses na Índia de presente.
Karmatopia – Uma viagem à Índia, que ela acaba de lançar, é o seu
presente aos leitores.
O livro é uma espécie de registro de 195 dias passados no país, de 10 de setembro de 2011 a 22 de março de 2012. Karla, que é repórter com passagem em vários jornais e revistas brasileiros, criou um gênero meio compósito, que mescla reportagem, memórias, depoimento, entrevistas, perfis e um tanto de literatura. O resultado é um livro que parece ter sido escrito para uso pessoal, mas que funciona como um diálogo franco com o leitor. Com direito a autocrítica, bom humor e zero de autocomiseração.
Quem quiser conhecer a Índia real, com dados econômicos, políticos e fontes históricas confiáveis, tem uma biblioteca inteira à disposição. Quem está em busca de conhecimentos voltados para o campo espiritual tem milhares de anos de tradição para pesquisar. Outros, ainda, em busca de depoimentos de viajantes-narradores, podem dispor dos melhores escritores do nosso tempo. A Índia não é um mistério por falta de informações sobre ela, mas exatamente porque elas são infinitas. O objetivo de Karla Monteiro é outro. Sua viagem é pessoal, seu lugar ideal tem como alvo o karma. Sua utopia é uma karmatopia.
Talvez seja nessa entrega que o livro tenha sua melhor qualidade. Karla não se apresenta como paradigma para outra experiência que não a sua. Sua jornada na Índia, que ela já conhecia de outras viagens e mergulhos em programas de ioga, responde a uma necessidade humana e legítima de procurar a felicidade onde quer que ela se encontre. Não há um rompimento com o passado – a narradora a todo momento procura um bom capuccino e croissant quando quer se sentir em casa – nem proselitismo. Sua viagem é uma disposição ao encontro.
Uma coisa que chama a atenção no relato de Karla é sua assumida localização como ocidental típica. Ela gosta de coisas bonitas, de lugares confortáveis, de sua cota de delírio, de boas comidas e conforto. Não esconde nem contrapõe sua origem para julgar ou escarnecer. Talvez por isso se disponha a tanta identificação. Poderia ser qualquer um de nós, desde que impulsionado pela mesma disposição em dar o primeiro passo. Karla faz compras e ainda viaja com seus livros, entre eles Flaubert, que parece deslocado naquele roteiro, mas que dialoga simbolicamente com a difícil condição feminina das indianas, condenadas a um eterno bovarismo.
Sem compromisso em contextualizar demais tudo que encontra pela frente, o que é uma forma de justificação, Karla abre seus olhos de repórter para o encontro, deixando o leitor sentir com ela seus espantos para o bem e para o mal. Para a sensibilidade ocidental, não deixa de ser agressivo o barulho, o mau cheiro, a falta de banheiros, a displicência dos serviços, a quantidade de gente, a falta de organização, a miséria ostensiva. Ela conta tudo, por vezes com requintes sinestésicos. É o momento de embate inicial com um universo que é regido por outra lógica. A autora faz questão de viajar sem guias, o que tira a segurança em alguns momentos, mas incorpora surpresas. A partir daí, entram em cena os personagens.
Gente Karmatopia é recheado de encontros com homens e mulheres notáveis, por vários motivos, nem todos veneráveis. Em sua jornada pelo país, além de narrar as peripécias e descobertas, a viajante se dispõe a conversar com gente que tenha o que dizer. Seus interlocutores vão de pessoas como ela, buscadores inveterados, a grandes mestres da yoga, passando por gurus e alguns tipos excêntricos, como os hippies que ainda vivem o sonho sessentista da Nova Era. Sem defender nenhuma filosofia ou religião, Karla faz perguntas essenciais, dessas que todos gostariam de fazer, mas não tiveram a oportunidade ou coragem para tanto.
A viajante vai ao Osho Ashram (é preciso fazer teste de HIV para entrar no local), uma “Disneylândia espiritual”, e conversa com frequentadores. É recebida por B. K. S. Iyengar, o mais importante mestre da yoga (a quem pergunta sobre o tempo e a morte); procura uma inglesa, Tenzin Palmo, que passou 12 anos numa caverna e hoje comanda um mosteiro para mulheres; dialoga com o assessor do dalai-lama, Geshe Lhakdor, sobre budismo tibetano, iluminação e política. Tem altos papos com Bobby Mescalina, que fala de seus amigos artistas, hippies, beatniks e viajandões, que consumiram drogas em escala industrial por décadas. Ao ser perguntado se encontrou a liberdade, Bobby confessa: “Não, não há liberdade neste mundo. Passei a vida inteira em busca de liberdade. O ser humano carrega uma jaula em torno de si. Na morte deve estar a liberdade”.
A autora passa ainda, com direito a muitas recaídas, por processos de purificação, como o milenar detox indiano, o pancha-karma, com suas purgações inacreditáveis, consultas ayurvédicas, programas intensivos de diversos tipos de yoga e meditação. Tudo é sempre motivo para encontrar mais gente e fazer perguntas necessárias e diretas. Uma boa jornalista, como Karla Monteiro se revela em Karmatopia, deve saber três coisas: que não sabe nada, que é preciso fazer as perguntas certas e, por fim, apresentar a resposta de forma compreensível e interessante.
Além das pessoas, os lugares permitem também outro tipo de prazer ao leitor. A autora nos dá suas impressões de Rishkesh, Goa, Varanasi, Dharamsala, Dharamkat, Jalandhar e Varkala, entre outras cidades. Chega sempre sem saber bem o que vai encontrar, o que se torna quase um método, uma estratégia da viajante para manter em alerta a capacidade de se surpreender.
Livro com final anunciado, a autora volta ao “mundo”. Já não é a mesma. O mundo também não. Afinal, para que mais pode servir uma viagem?
KARMATOPIA – UMA VIAGEM À ÍNDIA
• De Karla Monteiro
• Editora Record,
• 288 páginas, R$ 28
O livro é uma espécie de registro de 195 dias passados no país, de 10 de setembro de 2011 a 22 de março de 2012. Karla, que é repórter com passagem em vários jornais e revistas brasileiros, criou um gênero meio compósito, que mescla reportagem, memórias, depoimento, entrevistas, perfis e um tanto de literatura. O resultado é um livro que parece ter sido escrito para uso pessoal, mas que funciona como um diálogo franco com o leitor. Com direito a autocrítica, bom humor e zero de autocomiseração.
Quem quiser conhecer a Índia real, com dados econômicos, políticos e fontes históricas confiáveis, tem uma biblioteca inteira à disposição. Quem está em busca de conhecimentos voltados para o campo espiritual tem milhares de anos de tradição para pesquisar. Outros, ainda, em busca de depoimentos de viajantes-narradores, podem dispor dos melhores escritores do nosso tempo. A Índia não é um mistério por falta de informações sobre ela, mas exatamente porque elas são infinitas. O objetivo de Karla Monteiro é outro. Sua viagem é pessoal, seu lugar ideal tem como alvo o karma. Sua utopia é uma karmatopia.
Talvez seja nessa entrega que o livro tenha sua melhor qualidade. Karla não se apresenta como paradigma para outra experiência que não a sua. Sua jornada na Índia, que ela já conhecia de outras viagens e mergulhos em programas de ioga, responde a uma necessidade humana e legítima de procurar a felicidade onde quer que ela se encontre. Não há um rompimento com o passado – a narradora a todo momento procura um bom capuccino e croissant quando quer se sentir em casa – nem proselitismo. Sua viagem é uma disposição ao encontro.
Uma coisa que chama a atenção no relato de Karla é sua assumida localização como ocidental típica. Ela gosta de coisas bonitas, de lugares confortáveis, de sua cota de delírio, de boas comidas e conforto. Não esconde nem contrapõe sua origem para julgar ou escarnecer. Talvez por isso se disponha a tanta identificação. Poderia ser qualquer um de nós, desde que impulsionado pela mesma disposição em dar o primeiro passo. Karla faz compras e ainda viaja com seus livros, entre eles Flaubert, que parece deslocado naquele roteiro, mas que dialoga simbolicamente com a difícil condição feminina das indianas, condenadas a um eterno bovarismo.
Sem compromisso em contextualizar demais tudo que encontra pela frente, o que é uma forma de justificação, Karla abre seus olhos de repórter para o encontro, deixando o leitor sentir com ela seus espantos para o bem e para o mal. Para a sensibilidade ocidental, não deixa de ser agressivo o barulho, o mau cheiro, a falta de banheiros, a displicência dos serviços, a quantidade de gente, a falta de organização, a miséria ostensiva. Ela conta tudo, por vezes com requintes sinestésicos. É o momento de embate inicial com um universo que é regido por outra lógica. A autora faz questão de viajar sem guias, o que tira a segurança em alguns momentos, mas incorpora surpresas. A partir daí, entram em cena os personagens.
Gente Karmatopia é recheado de encontros com homens e mulheres notáveis, por vários motivos, nem todos veneráveis. Em sua jornada pelo país, além de narrar as peripécias e descobertas, a viajante se dispõe a conversar com gente que tenha o que dizer. Seus interlocutores vão de pessoas como ela, buscadores inveterados, a grandes mestres da yoga, passando por gurus e alguns tipos excêntricos, como os hippies que ainda vivem o sonho sessentista da Nova Era. Sem defender nenhuma filosofia ou religião, Karla faz perguntas essenciais, dessas que todos gostariam de fazer, mas não tiveram a oportunidade ou coragem para tanto.
A viajante vai ao Osho Ashram (é preciso fazer teste de HIV para entrar no local), uma “Disneylândia espiritual”, e conversa com frequentadores. É recebida por B. K. S. Iyengar, o mais importante mestre da yoga (a quem pergunta sobre o tempo e a morte); procura uma inglesa, Tenzin Palmo, que passou 12 anos numa caverna e hoje comanda um mosteiro para mulheres; dialoga com o assessor do dalai-lama, Geshe Lhakdor, sobre budismo tibetano, iluminação e política. Tem altos papos com Bobby Mescalina, que fala de seus amigos artistas, hippies, beatniks e viajandões, que consumiram drogas em escala industrial por décadas. Ao ser perguntado se encontrou a liberdade, Bobby confessa: “Não, não há liberdade neste mundo. Passei a vida inteira em busca de liberdade. O ser humano carrega uma jaula em torno de si. Na morte deve estar a liberdade”.
A autora passa ainda, com direito a muitas recaídas, por processos de purificação, como o milenar detox indiano, o pancha-karma, com suas purgações inacreditáveis, consultas ayurvédicas, programas intensivos de diversos tipos de yoga e meditação. Tudo é sempre motivo para encontrar mais gente e fazer perguntas necessárias e diretas. Uma boa jornalista, como Karla Monteiro se revela em Karmatopia, deve saber três coisas: que não sabe nada, que é preciso fazer as perguntas certas e, por fim, apresentar a resposta de forma compreensível e interessante.
Além das pessoas, os lugares permitem também outro tipo de prazer ao leitor. A autora nos dá suas impressões de Rishkesh, Goa, Varanasi, Dharamsala, Dharamkat, Jalandhar e Varkala, entre outras cidades. Chega sempre sem saber bem o que vai encontrar, o que se torna quase um método, uma estratégia da viajante para manter em alerta a capacidade de se surpreender.
Livro com final anunciado, a autora volta ao “mundo”. Já não é a mesma. O mundo também não. Afinal, para que mais pode servir uma viagem?
KARMATOPIA – UMA VIAGEM À ÍNDIA
• De Karla Monteiro
• Editora Record,
• 288 páginas, R$ 28
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