sábado, 17 de maio de 2014

Livro de aprendizagens [João Anzanello Carrascoza] - André di Bernardi Batista Mendes

O premiado contista João Anzanello Carrascoza mostra lirismo e talento no seu segundo romance, Caderno de um ausente, uma busca desesperada pelo diálogo


André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 17/05/2014 0


O narrador de João Anzanello Carrascoza dialoga com a filha por meio de sua ficção desassossegada   (Renata Massetti/Divulgação)
O narrador de João Anzanello Carrascoza dialoga com a filha por meio de sua ficção desassossegada

A Editora Cosac Naify acaba de lançar Caderno de um ausente, de João Anzanello Carrascoza, segundo romance do escritor paulista. Em sua nova aventura literária, Carrascoza trabalha priorizando a estrutura formal, que continua a ser a sua principal pesquisa literária. O narrador da história, um homem de 50 e tantos anos, escreve em um caderno anotações de vida para sua filha recém-nascida. “Nome do bebê: Beatriz; sexo: feminino; tamanho: 50 centímetros; cor da pele: branca; cor dos olhos: cinza; cor dos cabelos: preto; dia de chegada: 31 de abril; ano: 2012; horário: 14h21; lugar: Maternidade Santa Catarina; cidade: São Paulo; país: Brasil; nome da mãe: Juliana; nome do pai: João.”

Tão poucas, tão frias palavras servem para incendiar uma vida. Temeroso de que não acompanhará a maturidade da filha, uma vez que a diferença de idade é muito grande, o homem se põe a narrar a história da família entremeando impressões filosóficas e poéticas. A intenção do pai, porém, não é mostrar uma verdade, mas sim a delicadeza: “Eu só sei, Bia, que, em breve, não estaremos mais aqui, e, enquanto estivermos, eu quero, humildemente, te ensinar umas artes que aprendi, colher a miudeza de cada instante, como se colhe o arroz nos campos, cozinhá-la em fogo brando, e, depois, fazer com ela um banquete”.

Mas mesmo essas palavras, que compõem pequenos trechos escritos ao longo do primeiro ano de vida da criança, não são suficientes para satisfazer o pai: “Eu ia te contar o segredo do universo como quem sussurra uma canção de ninar, mas eu não posso, filha, eu só posso te garantir, agora que chegastes a certeza da despedida”.

Caderno de um ausente é um livro de ensinamentos. Ali, o leitor acompanha também as inquietações do pai, ao longo de um ano, pela saúde da mãe de Bia, que vive doente e requer cuidados tanto quanto a criança. O texto de Carrascoza deixa brechas, margens inteiras para o sonho, ao ser diagramado com espaços em branco.

Assassino, louco, carrasco de si mesmo; lúcido de vários sóis, Carrascoza se coloca diante de um abismo, diante de nossa verdade mais absurda. Ele chega perto, muito perto da vida e encara sua própria falência futura e, através desse tanto, busca transcender. E é justamente Beatriz quem lhe empresta ferramentas de ternura para o surgimento de permanências. Beatriz empresta ao pai uma corda luminosa que, a todo momento, a qualquer hora, o recoloca, ampliando liames e limites, “no espanto de te descobrir finita, no aprendizado do amor”.

Carrascoza inventa um laço de desdar nós, inventa um jeito, inventa um rio para pai e filha, mesmo que existam náufragos e naufrágios. Sophia de Mello Breyner: “Mar, metade de minha alma é feita de maresia”. Na outra metade, diria João, brincam para sempre os filhos.

Caminho da cria Dentro de um livro persistem, existem doses de sede e tempo capazes de acender um tanto. Por exemplo, o tempo que bebe o homem, o homem que bebe o tempo, num desassossego de dar dó. Toda relação profunda, todo amor cresce no inverso da sorte, para dentro, para os lados, para o mais alto, que são os filhos. Diante disso, Carrascoza, diante dessa forma peculiar de desespero, procura iluminar, pela lente do amor, o caminho de sua cria.

O autor fala sobre um tema espinhoso. Sobre vulnerabilidades que ampliam fragilidades. Mas, passa longe de ser pesado este enredo feito de ternura. Não existe nas palavras de Carrascoza, no livro, qualquer resquício de tristeza, mágoa ou ressentimento.

Porque os filhos são a nossa mais alta patente. Vencer a guerra (vencer a morte), para Carrascoza, é o mesmo que escrever. O pai, ao imaginar (e aceitar?) a sua ausência, ao deixar escrito, planta sementes peculiares. Aquele que escreve sobre perdas, de certa forma descredencia tamanho absurdo. As palavras, a poesia torna tudo mais leve, torna mais comprida essa sina que vem da família, que vem dos pássaros.

Já sei, me veio agora, um indício para aquelas brechas, para aqueles espaços em branco, pouco decifráveis, deixados no texto do livro de Carrascoza. Juntando tudo, o branco ao branco, surge, enorme, o desejo. Uma esperança de permanência, mas não uma estada expressa em números, valores, troféus e prêmios. Mas uma verdade erguida diante das simplicidades do cotidiano partilhado, uma verdade feita de amor que cresce a partir de um filho, ou uma filha, que nasce, naquela “hora primeira”, e o pai ali, “nas águas daquele momento inicial”.

A gente se despede aos poucos, entre beijos e brigas, e partilhamos esperanças diante do medo e do desamparo. A invenção do provisório deve ser uma das sutilezas, uma das maldades de Deus. Logo Ele, que tem fé e filhos.

Carrascoza inventou um jeito, uma coreografia literária para este seu caderno. Trata-se de um livro-terra, trata-se de um livro-cova, onde cabem as melhores sementes. Todo livro é uma fonte inesgotável de lembranças.

É de uma beleza ímpar este tipo único de discernimento. De um pai, para uma filha: “Acabas de nascer e eu tenho de te explicar, como se já pudesse entender”. Para logo adiante: “Eu farei parte, pra sempre, só do início de tua história”. Tais palavras são lume e estilete: “Mas tu, não. Vens com esta marca, de minha ausência, a envolver inteiramente a tua vida, e este é um dos primeiros sustos que temos nesta existência, como o que somos, não há como alterar a nossa história, sobretudo se ela já começa no meio, ou mais próxima do fim”. São altas estas palavras: “não há como esconder a morte ante a estreia de uma vida”.

João Anzanello Carrascoza nasceu em Cravinhos, interior de São Paulo. Escritor e professor universitário, estreou com o livro Hotel solidão (1994). Publicou várias coletâneas de contos, entre elas, O volume do silêncio (2006, Prêmio Jabuti) e Aquela água toda (2012, Prêmio APCA). Aos 7 e aos 40 foi o seu primeiro romance.

CADERNO DE UM AUSENTE
• De João Anzanello Carrascoza
• Editora Cosac Naify
• 128 páginas, R$ 34,90

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