O FUTEBOL DEVASSA E ENGRANDECE O HUMANO PORQUE REPRODUZ UM ESPELHO DE SUAS LIMITAÇÕES
É densa e cheia de conflitos a relação
do brasileiro com o futebol.
Quando vencemos, a glória.
Quando perdemos, a vergonha.
Não existe meio termo e essa é a
crueldade. Agora que a Copa do
Mundo se aproxima, a ambivalência se evidencia,
mais uma vez, nos preparativos da festa. Paixão,
mas também ódio. Adesão, mas também repulsa.
Apesar disso, ou por isso, o futebol, esse
mito que nunca se completa, está, mais do que
nunca, arraigado ao espírito do brasileiro. Dessa
paixão difícil, quinze escritores arrancam agora
quinze relatos breves. Eles estão reunidos em
“Entre as quatro linhas — Contos sobre futebol”,
volume organizado para a editora DSOP por
Luiz Ruffato.
O futebol devassa e engrandece o humano
porque reproduz — na moldura implacável das
quatro linhas — um espelho de suas limitações.
Mas também de seus sonhos de vitória. É o que
acontece com Robertson, o craque decadente
de “Uma questão moral”, conto de Cristovão
Tezza narrado na perspectiva do juiz João Batista.
Atuando em um time da divisão inferior, ele
estanca na grande área adversária à espera da
sorte. No último minuto, consegue (quase sem
saber como) fazer um gol salvador. Robertson é
apenas um dos elementos da mente do juiz que,
enquanto apita o jogo, divide seus pensamentos
entre o que se passa em campo e os impasses de
sua vida afetiva.
O futebol invade o que temos de mais íntimo.
Transpõe os limites dos esportes para se instalar
em nosso mundo interior. Na mente do juiz, futebol
e vida amorosa se mesclam como que feitos
da mesma matéria. O brasileiro — e não só
ele — pratica o futebol com um espírito passional.
Ao ler o livro organizado por Ruffato, recordo
minhas experiências de jovem torcedor apaixonado,
carregando uma imensa bandeira tricolor,
perdido nas arquibancadas do Maracanã.
Perdido, mas irmanado — igualado — pela fúria
da torcida. Ali o lúdico e o pessoal se misturaram
de modo inseparável. Ali aprendi, ultrapassando
minhas próprias fronteiras, a me entregar ao rol
atordoante das paixões.
Durante longos anos, salvo honrosas exceções, a
literatura brasileira não soube dar conta do futebol.
Fugiu dele. “‘Entre as quatro linhas’ é a prova de que
o cenário de rejeição ao futebol como tema, principal
ou secundário de boas histórias
de ficção está mudando”, diz
Ruffato em sua introdução. E por
que essa rejeição? Talvez a palavra
mais correta seja medo. É
muito difícil dar conta de um esporte
que, ao se transformar em
mito, revolve os fundamentos do
indivíduo. Quando se trata do futebol,
não é só dele que se trata,
mas da difícil exaltação que ele
arrasta consigo.
Um exemplo aparece em “O
dono da bola”, conto de Eliane Brum, relato no qual
o amor pelo futebol se transforma em matéria de
manipulação e de morte. Sob a desculpa de organizar
uma partida na selva, um homem deseja, na verdade,
derrubar um imenso castanhal. Raimundo, o
protagonista, “se lembra de uma vez ter perguntado
ao pai se verde era a cor do mundo inteiro”. O pai foi
duro: “É melhor que a gente não conheça”. A descoberta
do futebol o conduz, porém, por caminhos
inesperados. Guardada em um velho baú, uma bola
se torna um veículo de paixão, mas também de estrago.
Raimunda, sua mulher, tem um vínculo ambíguo
com certo Regatão, Raimundo também. “Ela
gostava e não gostava do Regatão. Tinha medo dos
olhos que o Raimundo de fora
deitava nela e ao mesmo tempo
um alvoroço que era quase bom”.
Regatão é o mundo externo, desprovido
do verde, que é substituído
pelo sangue. É Regatão quem
traz para a mata certo Valdir, por
quem Raimunda se apaixona. A
própria mulher se torna instrumento
da invasão. Valdir promete
o futebol — mas em seu lugar traz
o aniquilamento.
O futebol é um esporte que
não aceita a indiferença — como se expressa em
“Reverso do jogo”, conto de Carola Saavedra. É um
jogo que confere identidade: “Por um instante, em
cada rosto, surgia o nosso próprio rosto”. A surpresa
dos desconhecidos que se encaram e se reconhecem
é só um dos efeitos que o futebol consegue
produzir. Uma festa que não aconteceu se passa
um tanto à margem do narrador distraído,
mas ainda assim envolvido. Só o futebol é capaz
de produzir essa sensação de compartilhamento.
“A realidade é sempre algo irreal. A realidade
é sempre algo desconhecido”. O reverso do jogo é
a dor que ele pode produzir. Dor de uma contínua
espera: “De nada adiantava esperar, que era
isso, que seria sempre assim, aquela expectativa,
aquele instante repetindo-se indefinidamente”.
Sentimentos árduos que observamos em “Magarefe”,
conto de Ronaldo Correa de Brito, que
conta a história de um time de futebol composto
por açougueiros. De um lado, os jogadores “barulhentos
pela calçada, (...), sem camisa e sem
banho, o suor escorrendo do peito, costas e axilas,
os açougueiros exalavam um odor forte como
o do amoníaco, (...), homens brutos, magarefes
acostumados ao manuseio de carnes”. De outro,
os rebanhos bovinos subindo tristes, mas resignados,
para o matadouro. “Urubus espreitavam
aparas de couro e vísceras jogadas nos arredores”.
Aqui o futebol expõe seu lado bruto e algo
sanguinolento, expõe-se como uma paixão radical.
Ao trocar o ofício de açougueiro pelo de jogador,
o personagem descobre, enfim, algo que os
iguala. Um grande vazio os sustenta. “Se perguntassem
o que fantasiava ao fechar os olhos, responderia:
nada”.
É o que se vê em “O filho negro de deus”, conto
de Rogério Pereira. Relato de um pai que acompanha
o filho pequeno em uma visita a um velho
ídolo esportivo. A lembrança remota não combina
com a história do jogador. “Quando o vi, imaginei
que não daria muito certo. Era apenas um
esboço de jogador”. Agora que visita o velho W.,
entende como o futebol é capaz de tirar vantagem
da imperfeição. O reencontro traz o passado
de volta. “O mesmo corpo magricelo, agora encurvado,
incômodo na cadeira de rodas”. O pai
obriga o filho a sorrir. “O menino tem pouco
mais de 5 anos e parece assustado. W. não se mexe”.
Ele tem seu primeiro contato, precoce e dolorido,
com a fragilidade da paixão. Que, nem por
isso, menos paixão é.
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