Tesouros do Caraça
Santuário religioso, turístico e ambiental, na Região Central de Minas, comemora 240 anos de história e preserva patrimônio no complexo arquitetônico localizado entre montanhas e florestas
Gustavo Werneck
Estado de Minas: 25/05/2014
Formação rochosa que se assemelha a rosto e dá
nome ao santuário impressiona visitantes: no detalhe, o biólogo Gabriel
Tonelli em foto que turistas costumam fazer |
A diversidade permeia todos os espaços desse patrimônio incrustado no topo do maciço do Espinhaço, tendo a Serra do Caraça como sentinela, e localizado a 120 quilômetros de Belo Horizonte. No prédio, que foi seminário e colégio até 1968, está a pinacoteca, com quadros, relíquias e alfaias (paramentos) catalogados e guardados com máxima segurança, mas ainda de porta trancada. Segundo padre Lauro, há estudo para que as peças possam ser apreciadas por visitantes brasileiros e estrangeiros. Só em 2013 eles chegaram de 39 países, incluindo Cazaquistão, Malásia e África do Sul. No período da Copa do Mundo, o Caraça será ótimo destino para quem quiser mergulhar no íntimo das Gerais ou ficar bem longe dos gritos de gol.
Tombado desde 1955 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Caraça fabrica vinhos, tem biblioteca com 25 mil livros, entre eles o Incunábulo, de 1489, e outro com anotações feitas a bico de pena por dom Pedro II, conforme mostra a bibliotecária Vera Lúcia Garcia, mantém as velhas catacumbas e se orgulha da tradicional visita noturna ao adro do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), sempre pronto para devorar pedaços de frango postos numa bandeja pelos padres vicentinos. A programação comemorativa do aniversário compreende lançamento do livro Serra do Caraça, de Christiano Ottoni , e uma revista, encontro promovido pela Associação dos Ex-alunos Lazaristas e Amigos do Caraça (Aealac), exposição fotográfica sobre a biodiversidade, já em cartaz na biblioteca, e outros eventos no segundo semestre.
OLHOS QUE ATRAEM Fundado em 1774 pelo português Carlos Mendonça Távora, chamado de Irmão Lourenço de Nossa Senhora, e hoje pertencente à Província Brasileira da Congregação da Missão, o santuário reserva surpresas e mistérios. Não é à toa que seu apelido é porta do céu. O importante é ter calma para desvendá-lo e sensibilidade para mantê-lo na memória. Na igreja, está a Santa Ceia, pintada por Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), “amigo e testamenteiro do Irmão Lourenço”, explica padre Lauro. Para os curiosos, vale a pena, assim que começar a ver a tela, mirar o rosto de Judas e ver que os olhos dele vão acompanhá-lo até o fim do curto trajeto. É a técnica denominada “menina dos olhos”, que seduz à primeira vista e obriga a repetir a dose com bom humor.
Pelo corredor formado entre os bancos da igreja, caminha-se até o altar e se depara com a primeira relíquia de um santo que chegou ao Brasil, mais exatamente em 1797, depois de uma viagem de cinco anos. Deitado numa vitrine, está o corpo de São Pio Mártir, encontrado na catacumba de Santa Ciríaca, em Roma, com os ossos cobertos de cera. Num cálice, um pouco do sangue e areia do túmulo de um soldado romano cristão, morto ao confessar a fé. Como era costume na época em que o corpo foi encontrado, ele recebeu o nome do papa Pio VI (1717-1799), que então governava a Igreja.
Elevando-se um pouco os olhos, vê-se o vitral, tendo na base o desenho da coroa de dom Pedro II e a imagem portuguesa de Nossa Senhora Mãe dos Homens, que chegou em 1784. Sem dúvida, natureza e religiosidade comandam a vida no Caraça. Anualmente, em 7 de setembro, às 17h, a luz solar bate diretamente sobre o sacrário, conta padre Lauro. “A data é fruto do acaso”, diz. Também nos solstícios, época em que o Sol passa pela sua maior declinação boreal ou austral, há espetáculos de beleza: no inverno, a luz incide sobre a imagem de São Francisco, enquanto no verão sobre São Vicente, fundador da congregação dos lazaristas.
Na entrada ou na saída do templo neogótico, projetado pelo padre francês Jules Clavelin, e construído entre 1876 e 1883 em substituição à ermida primitiva, há dois altares barrocos originais. À direita, o dedicado a Nossa Senhora da Piedade, e, à esquerda, o do Sagrado Coração de Jesus, de autoria do entalhador e escultor português Francisco Vieira Servas (1720-1811), dono de um estilo próprio na construção dos retábulos. Na parte de baixo, está o espaço vazio, no qual ficava a relíquia de São Pio Mártir.
CAMÉLIAS BRANCAS Depois da igreja, é hora de conhecer a adega, descendo uma escadaria de pedra, contornando o relógio de sol e se encantando com as camélias brancas do jardim. À frente, segue o administrador do santuário, padre Luís Carlos do Vale. No subterrâneo, há tonéis de madeira com os vinhos de jabuticaba e uva e uma garrafa com a bebida, mas, nessa época, não existe fabricação. O passo seguinte será a catacumba, sob o claustro, pouco visitada mas caminho precioso para o visitante conhecer o Caraça por inteiro. Padres e diretores, muitos deles europeus, estão ali sepultados. Surpreende o piso, rocha pura. “Estamos exatamente sobre a montanha”, observa padre Lauro.
Sempre citado pelos vicentinos, o Servo de Deus dom Antônio Ferreira Viçoso (1781-1875), ex-bispo de Mariana e diretor do colégio de 1837 a 1842, está enterrado em Mariana, e não na cripta do Caraça. Mas muitas das relíquias de dom Viçoso se encontram na pinacoteca, que mantém o quadro do Irmão Lourenço pintado por Ataíde; óleo sobre tela retratando dom João VI; e Santo Antônio de Pádua, obra do alemão Jorge Grimm, que esteve no Caraça em 1885. É dele também o quadro com o santuário e as montanhas na parede do refeitório.
Riqueza natural
A exposição Caraça é nota 10, com 75 registros da biodiversidade da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), está em cartaz no prédio do museu e biblioteca do Santuário do Caraça, cujo reitor é o padre Wilson Belloni. A mostra reúne flagrantes da fauna e da flora clicados pelo padre Lauro Palú e encanta estudantes que visitam a instituição diariamente. Depois de ver a exposição, nada melhor do que sair a campo – sempre com um guia, se for para mais longe – a fim de conhecer o centro de visitantes, trilhas, cachoeiras, e demais belezas naturais desse patrimônio localizado numa área de transição entre mata atlântica e cerradoe distribuído pelos municípios de Catas Altas e Santa Bárbara – para maior exatidão, o complexo arquitetônico está nos limites de Catas Altas. Padre Lauro, que completa 50 anos sacerdócio em setembro e estudou no Caraça durante seis anos, conta que há 79 espécies de mamíferos, entre eles o lobo-guará, onças preta e parda e anta, 600 tipos de besouros, “200 deles encontrados aqui ou pela primeira vez aqui”, 386 aves, com destaque para o jacu e as águias chilena e cinzenta, 19 beija-flores e 25 falcões e gaviões.
A flora também prima pela exuberância: 210 espécies de orquídeas documentadas, 241 de samambaias e ainda plantas medicinais, com pesquisa feita por equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sempre com dados superlativos, a reserva natural do Caraça tem os dois picos mais altos do Espinhaço, o Pico do Sol, com 2.072 metros e o Inficionado, com 2.068m; a segunda e terceira grutas de quatzolito mais profundas do país, a Centenário, com 484m e a Bocaina, com 404m e três grandes abismos, com 120m, 116m e 94m. Como Caraça significa “cara grande”, é recomendado conferir a formação rochosa que batiza o santuário e fica a 50 minutos de caminhada da igreja.
Lobo-guará
Café da manhã, almoço e jantar saborosos, servidos sobre o fogão a lenha, aumentam o charme do Caraça, que tem missas diariamente na igreja neogótica e chá com pipoca após a celebração. Mas um dos momentos mais esperados é a “hora do lobo”, no início da noite, quando o guará surge da escuridão para receber pedaços de frango e bananas oferecidos na bandeja pelos padres. “Ele vem há 32 anos e não tem falhado. Às vezes chega mais cedo, às 3h da madrugada…“, diz o padre Paulo Lauro.
PASSEIO PELA HISTÓRIA
Vitrais da igreja %u2013 A peça central foi presente do imperador dom Pedro II, durante visita em 1881 |
>> Vitrais da igreja – A peça central foi presente do imperador dom Pedro II, durante visita em 1881
Relíquia %u2013 No altar, fica o corpo de São Pio Mártir, achado na catacumba de Santa Ciríaca, em Roma |
>> Relíquia – No altar, fica o corpo de São Pio Mártir, achado na catacumba de Santa Ciríaca, em Roma
Pinacoteca %u2013 Em obras e fechada para visitação, reúne quadros, alfaias e relíquias de dom Viçoso |
>> Pinacoteca – Em obras e fechada para visitação, reúne quadros, alfaias e relíquias de dom Viçoso
>> Herança – São da antiga ermida, os altares de Nossa Senhora da Piedade e Sagrado Coração de Jesus
>> Aroma – Na adega do santuário, são fabricados vinhos de uva e jabuticaba
Santa Ceia %u2013 Tela pintada por Manuel da Costa Ataíde (1762- 1830). Está no lado esquerdo da igreja |
>> Santa Ceia – Tela pintada por Manuel da Costa Ataíde (1762-1830). Está no lado esquerdo da igrejaaR
>> Silêncio – Nas catacumbas sobre a rocha da montanha, estão sepultados padres do velho seminário
>> Raros – Na biblioteca, há raridades como um livro de 1489 e outro com anotações de dom Pedro II
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