O futebol é uma boa metáfora para pensar nossa dificuldade de vencer de goleada os problemas do país
Um ignorante em futebol, como
eu, não pode discutir táticas de jogo. Mas posso dizer qual imagem me
vem, como espectador e torcedor de Copas do Mundo: a de uma tendência de
nossas seleções e times a buscarem o placar estritamente necessário
para vencer. Frequentemente, quando pedimos uma dose de bebida, ganhamos
um "choro", um adicional; mas não no futebol. Se o Brasil precisar de 1
a 0 para vencer a Croácia, não dará o sangue por um segundo gol; se um
empate com o México não nos desqualificar, derrotá-lo não será questão
de vida ou morte. Com isso, perdem-se a arte, a festa. Lembremos quanto
se depreciou o futebol-arte, que dava beleza mas não vitória; no seu
lugar, veio um pragmatismo imediato. Imediato, mas arriscado, porque se
perde, também, a garantia da vitória. A vantagem obtida não é
sustentável. Pode ir para o ralo se, no final do segundo tempo, o
adversário empatar e depois virar o jogo.
Não é assim nossa política, nossa sociedade? Muitos procuram compreender o Brasil tendo o futebol como metáfora de nossa ação, ou inação. Aqui me concentro num ponto só: a satisfação apressada com um trabalho ainda não garantido. Uma certa preguiça de ir além, e de arrematar com fecho de ouro, definitivo, o esforço. Um contentamento com o mínimo. Uma desistência de dar o sangue. Uma indisposição a ir além do exigido. O que traz um risco sério e claríssimo, mas ao qual não prestamos a atenção devida: o de perdermos tudo o que fizemos. Como não completamos o necessário, como minimizamos as tarefas que devemos empreender, acabamos deixando tudo mal amarrado. Talvez o nojento comentário sobre aqueles que, se não sujam na entrada, sujam na saída, seja uma forma de atribuir aos mais vulneráveis dentre os brasileiros - aos mais nobres de nós, aos que com seu trabalho forçado construíram este país e foram mal pagos com séculos de preconceito - uma falha de caráter grave que, na verdade, é de quem poderia ir além, e não vai.
Dou um exemplo da mídia. Dois meses atrás, o jogador Daniel Alves inverteu o gesto racista de torcedores europeus que lançaram uma banana em sua direção e simplesmente a comeu. Desarmou o que era uma metáfora dirigida contra ele - como negro, seria macaco e deveria comer bananas. O genial de seu ato foi reduzir a banana metafórica ao que ela é na realidade, apenas um alimento. Transformou um símbolo hostil em coisa benéfica. O ato, como se diz, bombou. Foi até mesmo aproveitado por uma grife de roupas. Pois bem, uma revista afirmou que esse ato acabou com o racismo. Ora, é óbvio que não. O racismo continua presente em toda a parte e, embora tenha sofrido um golpe com a banana de Daniel Alves, permanece forte e nocivo. Mas o comentário do órgão de imprensa exprime bem essa preguiça brasileira: se temos um problema sério, tentemos dizer que ele já está resolvido. Não nos empenhemos em medir os danos que ele causa, que são altos, em avaliar as medidas requeridas para resolvê-la, que são custosas, ou as compensações a pagar pelo histórico de prejuízos causados, que são elevadas. Uma solução apenas simbólica se torna muito adequada, porque nos desresponsabiliza a todos. Diremos então que não há mais problema, que um único homem, por sua presença de espírito, nos dispensou a todos do trabalho de lutar contra essa praga que nossos antepassados criaram e que continua presente numa hierarquia social em que a maior parte dos negros tem pouco acesso aos escalões superiores da sociedade - uma das exceções sendo, justamente, os jogadores de futebol.
E não é isso o que acontece com a infraestrutura econômica? A região
metropolitana de São Paulo está a um passo do colapso, por falta d'água.
O sistema Cantareira mal aguenta um ano sem chuvas - mas perde 30% da
água em vazamentos nas tubulações da Sabesp. Faltou planejamento? Faltou
ação do poder público, que nos fez reféns de São Pedro. A culpa não é
do acaso pluvial, não é da natureza, mas do trabalho humano
insuficiente, que nos deixou à mercê do calendário das chuvas. Ou
vejamos o mais de que os empresários se queixam: falta de estrutura nas
estradas, energia, educação da mão de obra; de que reclamam os
movimentos sociais: falta de transporte público, educação pública, saúde
pública decentes; e ainda muitos leitores deste jornal: falta de uma
segurança pública suficiente.
Gosto de "Macunaíma", de Mário de Andrade. No "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade vejo um país rico culturalmente, com grandes potencialidades devidas, justamente, a comer, digerir, alterar os insumos que recebe do resto do mundo. Temos uma civilização original, que não por acaso impressiona tantos estrangeiros. Mas uma de nossas falhas graves está nesta preguiça, neste contentamento com o pouco.
Devemos ir além da gambiarra, consertando ou mesmo refazendo tudo o que é preciso. E devemos fazer isso com técnica e arte. Ao contrário de 200 milhões de compatriotas, não sou técnico de futebol, mas - como a maior parte deles - aprecio o empenho, o esforço, a garra, a satisfação do trabalho bem feito. Goleadas são isso. Abastecimento de água e eletricidade suficientes, sistema viário que funcione também são isso. E no trabalho bem feito há arte. Culpa-se muito o impedimento - que a meu ver tem mais o espírito do cricket, esse incompreensível esporte inglês, do que o do futebol... - por não haver mais goleadas. Mas temos de criar goleadas na vida social, conseguindo que nossas políticas sociais e econômicas sejam tão garantidas, tão consolidadas - e tão belas - quanto uma vitória destas que nos enchem o coração.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
Não é assim nossa política, nossa sociedade? Muitos procuram compreender o Brasil tendo o futebol como metáfora de nossa ação, ou inação. Aqui me concentro num ponto só: a satisfação apressada com um trabalho ainda não garantido. Uma certa preguiça de ir além, e de arrematar com fecho de ouro, definitivo, o esforço. Um contentamento com o mínimo. Uma desistência de dar o sangue. Uma indisposição a ir além do exigido. O que traz um risco sério e claríssimo, mas ao qual não prestamos a atenção devida: o de perdermos tudo o que fizemos. Como não completamos o necessário, como minimizamos as tarefas que devemos empreender, acabamos deixando tudo mal amarrado. Talvez o nojento comentário sobre aqueles que, se não sujam na entrada, sujam na saída, seja uma forma de atribuir aos mais vulneráveis dentre os brasileiros - aos mais nobres de nós, aos que com seu trabalho forçado construíram este país e foram mal pagos com séculos de preconceito - uma falha de caráter grave que, na verdade, é de quem poderia ir além, e não vai.
Dou um exemplo da mídia. Dois meses atrás, o jogador Daniel Alves inverteu o gesto racista de torcedores europeus que lançaram uma banana em sua direção e simplesmente a comeu. Desarmou o que era uma metáfora dirigida contra ele - como negro, seria macaco e deveria comer bananas. O genial de seu ato foi reduzir a banana metafórica ao que ela é na realidade, apenas um alimento. Transformou um símbolo hostil em coisa benéfica. O ato, como se diz, bombou. Foi até mesmo aproveitado por uma grife de roupas. Pois bem, uma revista afirmou que esse ato acabou com o racismo. Ora, é óbvio que não. O racismo continua presente em toda a parte e, embora tenha sofrido um golpe com a banana de Daniel Alves, permanece forte e nocivo. Mas o comentário do órgão de imprensa exprime bem essa preguiça brasileira: se temos um problema sério, tentemos dizer que ele já está resolvido. Não nos empenhemos em medir os danos que ele causa, que são altos, em avaliar as medidas requeridas para resolvê-la, que são custosas, ou as compensações a pagar pelo histórico de prejuízos causados, que são elevadas. Uma solução apenas simbólica se torna muito adequada, porque nos desresponsabiliza a todos. Diremos então que não há mais problema, que um único homem, por sua presença de espírito, nos dispensou a todos do trabalho de lutar contra essa praga que nossos antepassados criaram e que continua presente numa hierarquia social em que a maior parte dos negros tem pouco acesso aos escalões superiores da sociedade - uma das exceções sendo, justamente, os jogadores de futebol.
Brasil tem de mirar mais alto seus problemas
Gosto de "Macunaíma", de Mário de Andrade. No "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade vejo um país rico culturalmente, com grandes potencialidades devidas, justamente, a comer, digerir, alterar os insumos que recebe do resto do mundo. Temos uma civilização original, que não por acaso impressiona tantos estrangeiros. Mas uma de nossas falhas graves está nesta preguiça, neste contentamento com o pouco.
Devemos ir além da gambiarra, consertando ou mesmo refazendo tudo o que é preciso. E devemos fazer isso com técnica e arte. Ao contrário de 200 milhões de compatriotas, não sou técnico de futebol, mas - como a maior parte deles - aprecio o empenho, o esforço, a garra, a satisfação do trabalho bem feito. Goleadas são isso. Abastecimento de água e eletricidade suficientes, sistema viário que funcione também são isso. E no trabalho bem feito há arte. Culpa-se muito o impedimento - que a meu ver tem mais o espírito do cricket, esse incompreensível esporte inglês, do que o do futebol... - por não haver mais goleadas. Mas temos de criar goleadas na vida social, conseguindo que nossas políticas sociais e econômicas sejam tão garantidas, tão consolidadas - e tão belas - quanto uma vitória destas que nos enchem o coração.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
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