Valor Econômico - 16/06/2014
Aécio Neves e Eduardo Campos quiseram explorar politicamente os xingamentos a Dilma Rousseff na abertura da Copa. Podem ter começado aí a perder a eleição. Algum imprevisto pode ainda beneficiá-los. Mas eles foram tolerantes com os insultos, e nisso expuseram uma dificuldade cognitiva de ambos. Mostraram-se em descompasso com os avanços nos costumes ocorridos nas últimas décadas, e que incluem o repúdio ao machismo, aos preconceitos e mesmo à falta de educação.
A primeira exigência para quem quer governar o Brasil é identificar os sinais do novo. O maior deles, no período recente, esteve nas manifestações de 2013, rompendo com a política tradicional. Dentre os presidenciáveis, Marina Silva é a mais apta a decifrá-los, mas está limitada por seu conservadorismo em matéria sexual - aborto, casamento gay. Já Aécio e Eduardo ignoraram as ruas, a não ser para tirar proveito delas com os prejuízos que causaram a Dilma e ao PT. Nenhum deles abriu diálogo com os manifestantes. Eles querem ganhar com o descontentamento, mas têm pouco a lhe propor. Dilma continua sendo, dos três candidatos, o mais capaz de conversar com o novo, ainda que ela própria não faça parte dele.
O episódio revela a pouca sensibilidade dos candidatos homens à renovação dos costumes. Essa nova sensibilidade não se confunde com a direita ou esquerda tradicionais. Aparece no 'El País', no 'New York Times', no 'Guardian', na revista 'Trip'. Repudia o preconceito contra negros, mulheres e homossexuais. Detesta a opressão e a corrupção. Ora, quando os dois candidatos se comprazem com a má educação de um público com dinheiro, eles se opõem a essa nova sensibilidade. Essa dissonância com o novo poderá aparecer em outras questões, fragilizará os dois e fará a festa do PT, que não podia ganhar presente melhor.
Assim, quando Eduardo Campos diz que os xingamentos 'talvez' não
fossem a 'melhor' forma de expressar o mau humor e a discordância com o
governo, ele está indicando que 'talvez' fossem, pelo menos, uma forma
aceitável; perde a chance de ouro de repudiar a forma, ainda que para
elogiar o conteúdo. Aécio não se saiu tão mal, mas na manhã do dia 13
aprovou implicitamente os insultos, somente se distanciando deles à
tarde, quando se corrigiu de sua gafe, mas sem pedir desculpas.
Temos duas agendas distintas na dimensão política da vida social. Uma é centralmente política, enfeixando metas sociais e em meios econômicos. Sobre esta, nossos três candidatos têm muito a dizer. Outra é dos costumes, agenda essa forte especialmente no Brasil: combate preconceitos, opressão e corrupção. É esta agenda que dá o tom do novo, dos jovens - embora não agrade a nenhum dos três candidatos, afeiçoados a uma visão tradicional da política. Mas aqui Dilma se sai melhor, mesmo que só porque não disse, e dificilmente dirá, algo análogo aos dois rivais. Dilma não é a candidata da agenda da vida, como a chamei há algumas semanas, mas não entra em conflito com ela. Será por razões de gênero? Será porque, mulher, não cai na tentação do machismo, que ronda muitos homens, mesmo bem intencionados? Não sei.
Outro erro, esse propriamente político: o Brasil está rachado entre duas interpretações da sociedade. Uma, majoritária na mídia e nas classes endinheiradas, detesta o governo petista. Outra, que venceu as três últimas eleições presidenciais, o apoia. Entre as duas, não há diálogo, nem mesmo sobre fatos básicos. Ora, qualquer político com pretensão de governar sabe que chefiará um país dividido. O vitorioso será legítimo, mas precisará ser respeitado pelos derrotados. Só que o respeito é uma via de mão dupla. A falta dele está desgraçando a Venezuela. E, quando se passa ao palavrão, o desrespeito ao candidato insultado ofende seus eleitores. Uma coisa é criticar, outra é desrespeitar. Alckmin exemplificou isso quando foi grosseiro com Lula, no debate de 2006: o presidente o chamava de "senhor", ele respondia com "Lula, você mente". Ofendeu os simpatizantes de Lula. Deu-lhe votos. Assim Alckmin perdeu sufrágios entre o primeiro e o segundo turnos. Não se ganha eleição, aqui, com a falta de educação. Ela deixou de ser sinônimo de macheza. Tornou-se igual a machismo.
Pior, os dois candidatos fazem a festa do PT! Vestem o figurino conservador em que o PT tenta prendê-los. Pois o que quer o PT, se não mostrar que Aécio e Eduardo não entendem o que a maioria da sociedade deseja? Quando avalizam a falta de educação da "elite branca" (lembro Claudio Lembo e Juca Kfouri), ajudam o PT a ter os votos, não só do seu "terço gordo" de eleitores seguros, mas também entre o terço de eleitores que, por estarem indecisos, decidirão a eleição. Muitos deles não admiram o PT, mas repudiam ainda mais o conservadorismo dos sem educação. O grave, agora, não são tanto os insultos: é que dois candidatos presidenciais não percebam que a minoria de ofensores representa o atraso. Deste, nada sairá. É grave que, nas muitas horas entre o episódio e suas declarações, nem Aécio e Eduardo, nem ninguém de seu círculo próximo, tenha percebido o lado negativo das ofensas.
Para terminar, esta não é uma questão que possa ser brifada por um assessor. Um candidato pode ter gurus sobre a economia, a energia, transportes, saúde, até mesmo educação - mas precisa entender de política, de sociedade, do movimento do mundo. Gurus são para matérias técnicas, os valores são com o líder. Se ele não capta o espirito do tempo, dará problema. Por isso, se os dois erraram na postura sobre esse lamentável episódio, é provável que errem, de novo, quando estiverem em jogo valores.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
Aécio Neves e Eduardo Campos quiseram explorar politicamente os xingamentos a Dilma Rousseff na abertura da Copa. Podem ter começado aí a perder a eleição. Algum imprevisto pode ainda beneficiá-los. Mas eles foram tolerantes com os insultos, e nisso expuseram uma dificuldade cognitiva de ambos. Mostraram-se em descompasso com os avanços nos costumes ocorridos nas últimas décadas, e que incluem o repúdio ao machismo, aos preconceitos e mesmo à falta de educação.
A primeira exigência para quem quer governar o Brasil é identificar os sinais do novo. O maior deles, no período recente, esteve nas manifestações de 2013, rompendo com a política tradicional. Dentre os presidenciáveis, Marina Silva é a mais apta a decifrá-los, mas está limitada por seu conservadorismo em matéria sexual - aborto, casamento gay. Já Aécio e Eduardo ignoraram as ruas, a não ser para tirar proveito delas com os prejuízos que causaram a Dilma e ao PT. Nenhum deles abriu diálogo com os manifestantes. Eles querem ganhar com o descontentamento, mas têm pouco a lhe propor. Dilma continua sendo, dos três candidatos, o mais capaz de conversar com o novo, ainda que ela própria não faça parte dele.
O episódio revela a pouca sensibilidade dos candidatos homens à renovação dos costumes. Essa nova sensibilidade não se confunde com a direita ou esquerda tradicionais. Aparece no 'El País', no 'New York Times', no 'Guardian', na revista 'Trip'. Repudia o preconceito contra negros, mulheres e homossexuais. Detesta a opressão e a corrupção. Ora, quando os dois candidatos se comprazem com a má educação de um público com dinheiro, eles se opõem a essa nova sensibilidade. Essa dissonância com o novo poderá aparecer em outras questões, fragilizará os dois e fará a festa do PT, que não podia ganhar presente melhor.
Como a macheza perdeu prestígio e virou machismo
Temos duas agendas distintas na dimensão política da vida social. Uma é centralmente política, enfeixando metas sociais e em meios econômicos. Sobre esta, nossos três candidatos têm muito a dizer. Outra é dos costumes, agenda essa forte especialmente no Brasil: combate preconceitos, opressão e corrupção. É esta agenda que dá o tom do novo, dos jovens - embora não agrade a nenhum dos três candidatos, afeiçoados a uma visão tradicional da política. Mas aqui Dilma se sai melhor, mesmo que só porque não disse, e dificilmente dirá, algo análogo aos dois rivais. Dilma não é a candidata da agenda da vida, como a chamei há algumas semanas, mas não entra em conflito com ela. Será por razões de gênero? Será porque, mulher, não cai na tentação do machismo, que ronda muitos homens, mesmo bem intencionados? Não sei.
Outro erro, esse propriamente político: o Brasil está rachado entre duas interpretações da sociedade. Uma, majoritária na mídia e nas classes endinheiradas, detesta o governo petista. Outra, que venceu as três últimas eleições presidenciais, o apoia. Entre as duas, não há diálogo, nem mesmo sobre fatos básicos. Ora, qualquer político com pretensão de governar sabe que chefiará um país dividido. O vitorioso será legítimo, mas precisará ser respeitado pelos derrotados. Só que o respeito é uma via de mão dupla. A falta dele está desgraçando a Venezuela. E, quando se passa ao palavrão, o desrespeito ao candidato insultado ofende seus eleitores. Uma coisa é criticar, outra é desrespeitar. Alckmin exemplificou isso quando foi grosseiro com Lula, no debate de 2006: o presidente o chamava de "senhor", ele respondia com "Lula, você mente". Ofendeu os simpatizantes de Lula. Deu-lhe votos. Assim Alckmin perdeu sufrágios entre o primeiro e o segundo turnos. Não se ganha eleição, aqui, com a falta de educação. Ela deixou de ser sinônimo de macheza. Tornou-se igual a machismo.
Pior, os dois candidatos fazem a festa do PT! Vestem o figurino conservador em que o PT tenta prendê-los. Pois o que quer o PT, se não mostrar que Aécio e Eduardo não entendem o que a maioria da sociedade deseja? Quando avalizam a falta de educação da "elite branca" (lembro Claudio Lembo e Juca Kfouri), ajudam o PT a ter os votos, não só do seu "terço gordo" de eleitores seguros, mas também entre o terço de eleitores que, por estarem indecisos, decidirão a eleição. Muitos deles não admiram o PT, mas repudiam ainda mais o conservadorismo dos sem educação. O grave, agora, não são tanto os insultos: é que dois candidatos presidenciais não percebam que a minoria de ofensores representa o atraso. Deste, nada sairá. É grave que, nas muitas horas entre o episódio e suas declarações, nem Aécio e Eduardo, nem ninguém de seu círculo próximo, tenha percebido o lado negativo das ofensas.
Para terminar, esta não é uma questão que possa ser brifada por um assessor. Um candidato pode ter gurus sobre a economia, a energia, transportes, saúde, até mesmo educação - mas precisa entender de política, de sociedade, do movimento do mundo. Gurus são para matérias técnicas, os valores são com o líder. Se ele não capta o espirito do tempo, dará problema. Por isso, se os dois erraram na postura sobre esse lamentável episódio, é provável que errem, de novo, quando estiverem em jogo valores.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
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