João Paulo
Estado de Minas: 12/07/2014
Há muitas maneiras de encarar as derrotas. A mais sábia delas continua sendo a vertente estoica, escola filosófica grega que remonta ao século 3 a.C. E tem mais a ver com futebol – e com a política – do que parece à primeira vista. Talvez por isso valha a pena retroceder um pouco no tempo em busca de uma tentativa de “explicar o inexplicável”, como disse Júlio César, o goleiro, não o imperador; ou para apaziguar Dante, o zagueiro que abriu o caminho do inferno ao time brasileiro, descrito poeticamente por seu xará.
Para os antigos pensadores gregos e latinos (o estoicismo teve uma longa continuidade que chegou ao Império Romano), o que importava era a paz de espírito. Ao lado dos epicuristas e cínicos, os pensadores estoicos tinham um horizonte bem problemático à frente. Para dar conta da insegurança em que viviam, escolheram o caminho da sabedoria. E ser sábio, durante os quase seis séculos de estoicismo, era importar com o que era importante, e não valorizar o que não tinha valor.
O ser humano costuma viver no negativo: tem medo da dor, da humilhação, do desejo, do amor não correspondido, da pobreza, da decadência física e da morte. Um conjunto de defeitos que parecem cercar todas as nossas atitudes e dirigir nossas ações e reações. O homem comum é um escravo de seus temores e uma vítima de seu ressentimento. Fica paralisado frente ao destino, esquece que é livre. Padece da servidão voluntária.
Para o estoico, o verdadeiro sábio é o que não se deixa escravizar pelas coisas ou fatos sobre os quais não tem poder: somos falhos, mortais, feios, pobres e obscuros e não podemos fazer nada contra isso. A atitude mais sensata é a indiferença, ou adiaphoros, até conquistar um estado de tranquilidade da alma, a ataraxia. Isso não significa que o nosso filósofo é um alienado, pelo contrário, ele se conhece tão bem que sabe o que vale sua atribulação e o que deve ser deixado de lado. Na verdade, os estoicos são os mais corajosos de todos os homens, já que não ficam esperando que a cura venha de fora e, muito menos, culpando as contingências do mundo.
Nós, homens modernos, acreditamos que todo defeito tem remédio. A técnica, herdeira da modernidade, parece desconhecer a liberdade humana: somos obrigados a exercer determinados comportamentos sob o crime de sermos considerados alienados. Para o estoico, a grande aliança deve se dar entre o homem e si mesmo e, em seguida, com a natureza. Exatamente por isso, foram os primeiros pensadores a propor uma natureza universal e uma unidade para o gênero humano.
Assim, o sábio não se preocupa com os bajuladores, os maus, os criminosos e os que põem a ambição à frente da ética. Esses não fazem mal ao mundo, mas a si mesmos, na medida em que negam sua própria humanidade. Na concepção estoica, o mundo é uma festa cheia de possibilidades, inclusive a de se retirar dela. Não precisamos ser ricos, poderosos ou puxa-sacos. Essa escravidão não cabe no figurino do sábio, mas do escravo do desejo do outro.
Aceitação consciente do destino. Essa é a máxima estoica que pode nos guiar em muitos momentos difíceis. Não como uma capitulação, uma entrega às forças do fado, mas como uma compreensão do que de fato nos cabe fazer. Quem se atribui uma importância além da conta nada mais faz que se atormentar. A maior herança da escola filosófica antiga não foi a fuga à ação, mas a defesa da ética como princípio de universalidade. A compreensão da liberdade que nos constitui nos obriga a expandir esse princípio para toda a sociedade. Os estoicos eram políticos até a raiz da alma e se preocupavam em educar os governantes.
Fim e justiça O estoico, por exemplo, não está nem aí para a derrota da Seleção Brasileira para a Alemanha. Primeiro, porque um jogo de futebol é apenas um jogo de futebol; em seguida, pelo fato de que o adversário jogou melhor; por fim, pela simples razão de que há coisas mais importantes a serem feitas com nossa inteligência e vontade. O jogo, em si, passa a ser preocupação dos que vivem dele. Para o público, o melhor já ocorreu: como todo jogo, esse também teve seu fim. E foi justo.
No entanto, toda a movimentação em torno da Copa do Mundo merece atenção. Há aspectos políticos a serem destacados, méritos a serem reconhecidos, falhas a serem superadas. Entre as maiores vitórias está o fato de o Brasil ter, à frente de vários países que vinham tentando há anos, ajudado a criminalizar de forma objetiva uma quadrilha que vinha contaminando o futebol com interesses particulares, antidesportivos e autoritários, com o uso de todo tipo de tráfico de influência, inclusive do dinheiro.
A Fifa sai manchada da Copa. A entidade, que de certa maneira simboliza alguns aspectos do neoliberalismo (como a mercantilização de todas as relações e o apego ideológico a certa competência fundada no autoritarismo), mostrou que nem aceitar as leis de mercado ela é capaz. Brigou com ambulantes para garantir reserva de mercado para depois assumir o papel de cambista. Daqui pra frente, a relação com a federação vai ser outra, passível de controles dirigidos mais pelo interesse público e soberania dos países do que pelo mercado patrocinador. Além disso, um figurão ligado à entidade passou o dia no Copacabana Palace e a noite na cadeia. O que não deixa de ser exemplar.
Outro fator positivo foi a perspectiva de igualdade sentida pelas pessoas. O brasileiro gostou de receber os estrangeiros e se sentiu perto deles. Não valia mais o sentimento de inferioridade, já que, como nós outros, os turistas ficaram tanto em hotéis estrelados como em pensões baratas, quando não dormindo dentro dos carros e nas praias. Além disso, a comunicação foi possível, altiva e divertida. Não é preciso ir aos EUA comprar fronhas de mil fios em liquidações para se sentir pertencente ao gênero humano, basta tomar uma cerveja no mercado.
Mas não se pode deixar de chamar a atenção para o excesso de importância dada ao torneio em todo o mundo. Há um tipo de profecia autorrealizada ou efeito Pigmalião, que confere ao evento um valor que ele objetivamente não tem e que acaba conquistando em razão de estratégias de mercado e propaganda. O futebol é o esporte mais popular do mundo, mas não pelas razões que os patrocinadores da Copa elegeram. Até o hino vira peça de marketing ao ponto de, da emoção da primeira vez em que foi entoado a capela, se tornar uma obrigação antipática e ufanista.
Outra questão evidenciada com o Mundial foi o paralelismo entre o processo eleitoral e a realização do torneio. Nesse aspecto, é preciso que as coisas sejam bem distintas. A capacidade de organizar um campeonato de seleções, mesmo dando a ele uma dimensão exagerada, é atribuição do Estado. Nesse aspecto nos saímos bem. Por outro lado, a vitória no campo, é atribuição de um time convocado de acordo com os padrões de organização do próprio setor de esporte. Nesse campo o resultado foi muito ruim.
Nem a boa organização – com seus limites – é tento para o governo, nem o fracasso do time pode ser munição para a oposição. O momento eleitoral é de apresentação de projetos para o país, de exercício do debate político responsável, de construção de propostas para política públicas, de planejamento da economia e de profissionalização do Estado para atender ao cidadão. Algo milhões de vezes mais importante que uma Copa do Mundo, ainda que com um charme infinitamente menor.
A regra não é clara Sobre a derrota em si, ela mostra o que, agora, todos estão dizendo que já sabiam: que o time era fraco, que a grana deu as cartas, que o técnico é convencional e pensa pequeno. No entanto, até se consolidar a humilhação no campo, valia o pensamento mágico e o roteiro que os meios de comunicação serviram ao público a mando de patrocinadores. Quando as crianças e os jogadores choraram, ao fim da partida, estava claro que o território estava tomado pelo infantilismo. A infância é a fase da vida (em todas as idades) em que as demandas do real são substituídas por fantasias de onipotência. São pessoas que não aceitam que seus sonhos não se realizem, que se acham portadoras do dom.
Toda derrota mobiliza emoções. A pior delas é o ressentimento. Ele ocorre quando as pessoas sentem que algo maior que elas tomou conta de sua liberdade e deixou o sujeito sem ação. Fica o discurso do coitado, do lamento desmobilizador, da caça aos culpados. O ressentimento, como destaca a psicanalista Maria Rita Kehl, é o avesso da política. Quem acredita na ação política não aceita a derrota nem hipertrofia o poder que enfrenta: junta forças, age, combate. O ressentido depõe as armas. No entanto, é sempre bom lembrar que a atitude política carrega em si o risco (quando não o projeto) de desestabilizar a ordem. Quem faz política quer exercer o poder a partir de seus valores. Há mudanças dentro da ordem e momentos em que o imperativo é quebrar a ordem para estabelecer novas bases de relacionamento. Na política, no futebol e até na vida pessoal. Nesses momentos de crise, a regra nunca é clara.
O estoico nos ensinou muitas coisas com seu elogio da ataraxia, mas deixou portas abertas para a atitude no campo da moral e da educação do líder. Sobretudo na capacidade de mudar a ordem das coisas quando elas afrontam com a liberdade e a natureza. Por isso, perder, quando se é pior, é o melhor resultado possível. Não houve a tragédia que nos querem fazer engolir, apenas um péssimo resultado construído com muito esforço pela nossa cegueira voluntária.
As tarefas agora estão dadas. Sabemos onde mancam nossas certezas e arrogâncias. Já é meio caminho andado.
Torcedor experimenta a solidão depois da derrota do Brasil no Mineirão: aprendizagem para vida toda e hora de procurar sua turma |
Há muitas maneiras de encarar as derrotas. A mais sábia delas continua sendo a vertente estoica, escola filosófica grega que remonta ao século 3 a.C. E tem mais a ver com futebol – e com a política – do que parece à primeira vista. Talvez por isso valha a pena retroceder um pouco no tempo em busca de uma tentativa de “explicar o inexplicável”, como disse Júlio César, o goleiro, não o imperador; ou para apaziguar Dante, o zagueiro que abriu o caminho do inferno ao time brasileiro, descrito poeticamente por seu xará.
Para os antigos pensadores gregos e latinos (o estoicismo teve uma longa continuidade que chegou ao Império Romano), o que importava era a paz de espírito. Ao lado dos epicuristas e cínicos, os pensadores estoicos tinham um horizonte bem problemático à frente. Para dar conta da insegurança em que viviam, escolheram o caminho da sabedoria. E ser sábio, durante os quase seis séculos de estoicismo, era importar com o que era importante, e não valorizar o que não tinha valor.
O ser humano costuma viver no negativo: tem medo da dor, da humilhação, do desejo, do amor não correspondido, da pobreza, da decadência física e da morte. Um conjunto de defeitos que parecem cercar todas as nossas atitudes e dirigir nossas ações e reações. O homem comum é um escravo de seus temores e uma vítima de seu ressentimento. Fica paralisado frente ao destino, esquece que é livre. Padece da servidão voluntária.
Para o estoico, o verdadeiro sábio é o que não se deixa escravizar pelas coisas ou fatos sobre os quais não tem poder: somos falhos, mortais, feios, pobres e obscuros e não podemos fazer nada contra isso. A atitude mais sensata é a indiferença, ou adiaphoros, até conquistar um estado de tranquilidade da alma, a ataraxia. Isso não significa que o nosso filósofo é um alienado, pelo contrário, ele se conhece tão bem que sabe o que vale sua atribulação e o que deve ser deixado de lado. Na verdade, os estoicos são os mais corajosos de todos os homens, já que não ficam esperando que a cura venha de fora e, muito menos, culpando as contingências do mundo.
Nós, homens modernos, acreditamos que todo defeito tem remédio. A técnica, herdeira da modernidade, parece desconhecer a liberdade humana: somos obrigados a exercer determinados comportamentos sob o crime de sermos considerados alienados. Para o estoico, a grande aliança deve se dar entre o homem e si mesmo e, em seguida, com a natureza. Exatamente por isso, foram os primeiros pensadores a propor uma natureza universal e uma unidade para o gênero humano.
Assim, o sábio não se preocupa com os bajuladores, os maus, os criminosos e os que põem a ambição à frente da ética. Esses não fazem mal ao mundo, mas a si mesmos, na medida em que negam sua própria humanidade. Na concepção estoica, o mundo é uma festa cheia de possibilidades, inclusive a de se retirar dela. Não precisamos ser ricos, poderosos ou puxa-sacos. Essa escravidão não cabe no figurino do sábio, mas do escravo do desejo do outro.
Aceitação consciente do destino. Essa é a máxima estoica que pode nos guiar em muitos momentos difíceis. Não como uma capitulação, uma entrega às forças do fado, mas como uma compreensão do que de fato nos cabe fazer. Quem se atribui uma importância além da conta nada mais faz que se atormentar. A maior herança da escola filosófica antiga não foi a fuga à ação, mas a defesa da ética como princípio de universalidade. A compreensão da liberdade que nos constitui nos obriga a expandir esse princípio para toda a sociedade. Os estoicos eram políticos até a raiz da alma e se preocupavam em educar os governantes.
Fim e justiça O estoico, por exemplo, não está nem aí para a derrota da Seleção Brasileira para a Alemanha. Primeiro, porque um jogo de futebol é apenas um jogo de futebol; em seguida, pelo fato de que o adversário jogou melhor; por fim, pela simples razão de que há coisas mais importantes a serem feitas com nossa inteligência e vontade. O jogo, em si, passa a ser preocupação dos que vivem dele. Para o público, o melhor já ocorreu: como todo jogo, esse também teve seu fim. E foi justo.
No entanto, toda a movimentação em torno da Copa do Mundo merece atenção. Há aspectos políticos a serem destacados, méritos a serem reconhecidos, falhas a serem superadas. Entre as maiores vitórias está o fato de o Brasil ter, à frente de vários países que vinham tentando há anos, ajudado a criminalizar de forma objetiva uma quadrilha que vinha contaminando o futebol com interesses particulares, antidesportivos e autoritários, com o uso de todo tipo de tráfico de influência, inclusive do dinheiro.
A Fifa sai manchada da Copa. A entidade, que de certa maneira simboliza alguns aspectos do neoliberalismo (como a mercantilização de todas as relações e o apego ideológico a certa competência fundada no autoritarismo), mostrou que nem aceitar as leis de mercado ela é capaz. Brigou com ambulantes para garantir reserva de mercado para depois assumir o papel de cambista. Daqui pra frente, a relação com a federação vai ser outra, passível de controles dirigidos mais pelo interesse público e soberania dos países do que pelo mercado patrocinador. Além disso, um figurão ligado à entidade passou o dia no Copacabana Palace e a noite na cadeia. O que não deixa de ser exemplar.
Outro fator positivo foi a perspectiva de igualdade sentida pelas pessoas. O brasileiro gostou de receber os estrangeiros e se sentiu perto deles. Não valia mais o sentimento de inferioridade, já que, como nós outros, os turistas ficaram tanto em hotéis estrelados como em pensões baratas, quando não dormindo dentro dos carros e nas praias. Além disso, a comunicação foi possível, altiva e divertida. Não é preciso ir aos EUA comprar fronhas de mil fios em liquidações para se sentir pertencente ao gênero humano, basta tomar uma cerveja no mercado.
Mas não se pode deixar de chamar a atenção para o excesso de importância dada ao torneio em todo o mundo. Há um tipo de profecia autorrealizada ou efeito Pigmalião, que confere ao evento um valor que ele objetivamente não tem e que acaba conquistando em razão de estratégias de mercado e propaganda. O futebol é o esporte mais popular do mundo, mas não pelas razões que os patrocinadores da Copa elegeram. Até o hino vira peça de marketing ao ponto de, da emoção da primeira vez em que foi entoado a capela, se tornar uma obrigação antipática e ufanista.
Outra questão evidenciada com o Mundial foi o paralelismo entre o processo eleitoral e a realização do torneio. Nesse aspecto, é preciso que as coisas sejam bem distintas. A capacidade de organizar um campeonato de seleções, mesmo dando a ele uma dimensão exagerada, é atribuição do Estado. Nesse aspecto nos saímos bem. Por outro lado, a vitória no campo, é atribuição de um time convocado de acordo com os padrões de organização do próprio setor de esporte. Nesse campo o resultado foi muito ruim.
Nem a boa organização – com seus limites – é tento para o governo, nem o fracasso do time pode ser munição para a oposição. O momento eleitoral é de apresentação de projetos para o país, de exercício do debate político responsável, de construção de propostas para política públicas, de planejamento da economia e de profissionalização do Estado para atender ao cidadão. Algo milhões de vezes mais importante que uma Copa do Mundo, ainda que com um charme infinitamente menor.
A regra não é clara Sobre a derrota em si, ela mostra o que, agora, todos estão dizendo que já sabiam: que o time era fraco, que a grana deu as cartas, que o técnico é convencional e pensa pequeno. No entanto, até se consolidar a humilhação no campo, valia o pensamento mágico e o roteiro que os meios de comunicação serviram ao público a mando de patrocinadores. Quando as crianças e os jogadores choraram, ao fim da partida, estava claro que o território estava tomado pelo infantilismo. A infância é a fase da vida (em todas as idades) em que as demandas do real são substituídas por fantasias de onipotência. São pessoas que não aceitam que seus sonhos não se realizem, que se acham portadoras do dom.
Toda derrota mobiliza emoções. A pior delas é o ressentimento. Ele ocorre quando as pessoas sentem que algo maior que elas tomou conta de sua liberdade e deixou o sujeito sem ação. Fica o discurso do coitado, do lamento desmobilizador, da caça aos culpados. O ressentimento, como destaca a psicanalista Maria Rita Kehl, é o avesso da política. Quem acredita na ação política não aceita a derrota nem hipertrofia o poder que enfrenta: junta forças, age, combate. O ressentido depõe as armas. No entanto, é sempre bom lembrar que a atitude política carrega em si o risco (quando não o projeto) de desestabilizar a ordem. Quem faz política quer exercer o poder a partir de seus valores. Há mudanças dentro da ordem e momentos em que o imperativo é quebrar a ordem para estabelecer novas bases de relacionamento. Na política, no futebol e até na vida pessoal. Nesses momentos de crise, a regra nunca é clara.
O estoico nos ensinou muitas coisas com seu elogio da ataraxia, mas deixou portas abertas para a atitude no campo da moral e da educação do líder. Sobretudo na capacidade de mudar a ordem das coisas quando elas afrontam com a liberdade e a natureza. Por isso, perder, quando se é pior, é o melhor resultado possível. Não houve a tragédia que nos querem fazer engolir, apenas um péssimo resultado construído com muito esforço pela nossa cegueira voluntária.
As tarefas agora estão dadas. Sabemos onde mancam nossas certezas e arrogâncias. Já é meio caminho andado.
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