O músico malinês Bassekou Kouyate é uma das atrações do Festival Mimo, em Ouro Preto.Instrumentista e compositor, é comparado a Jimi Hendrix e defende a raiz africana no blues
Eduardo Tristão Girão
Estado de Minas: 29/07/2014
"No Mali, devido à nossa cultura griot, sempre fazemos música com a família, especialmente com os filhos, porque eles vão ficar e levar a música para frente" - Bassekou Kouyate, músico |
O Jimi Hendrix do Mali. Isso é o que o Google costuma retornar aos que querem saber quem é Bassekou Kouyate, que tocará no fim do mês que vem em Ouro Preto, durante a 11ª edição do Festival Mimo. Comparações são sempre úteis, apesar de sempre causarem discussão.
Ambos são negros, estão intimamente ligados ao blues, são bons de riffs e usam pedais wah wah e de distorção. Só que em vez de guitarra, o virtuose malinês (que passa longe do rock) toca ngoni, um secular instrumento de corda feito com cabaça.
O ngoni é utilizado por músicos de vários países da África ocidental e Kouyate é, hoje, seu maior nome. Não é exagero. Além de veloz nas notas, o talentoso compositor sabe usá-las como poucos. Ao ouvir sua música, fica a impressão de que ele está intimamente ligado à rica tradição musical do seu país. Realmente está, mas os LPs dos artistas de gerações anteriores do Mali não deixam dúvida de que suas canções são contemporâneas. Ou seja, velho e novo em perfeita harmonia. São músicas bem arranjadas e vibrantes.
Os vocais são um capítulo à parte, a cargo de Amy Sacko, mulher do artista: de grande expressão, variam do doce ao penetrante, com letras escritas num dos idiomas nativos, o bambara. Vale destacar que ambos descendem de famílias de griots, os respeitados contadores de histórias africanos responsáveis por perpetuar a cultura dos locais onde vivem. O casal conta com a presença dos dois filhos na banda, Moustafa e Mamadou, que tocam ngonis de tamanhos e alcances harmônicos diferentes (uns mais graves, outros mais agudos).
“No Mali, devido à nossa cultura griot, sempre fazemos música com a família, especialmente com os filhos, porque sabemos que são eles que vão ficar e levar a música para frente, sempre manteremos esta tradição. Toquei com meu avô e com meu pai. Cada um de nós toca a mesma música com seu estilo, com seu jeito, mas sempre tocamos juntos. Às vezes, há um ou outro convidado, mas a base é o grupo familiar”, conta Kouyate. Acostumado a rodar o mundo para tocar, ele visitará o Brasil pela primeira vez.
Batizado de Ngoni Ba, o grupo que o acompanha só tem ngonis e percussão, com outros instrumentos marcando presença pontualmente. Kouyate foi pioneiro ao propor que fosse tocado de pé e na frente do palco, como qualquer guitarrista. Consequentemente, inovou também ao criar um grupo só com eles, explorando as múltiplas possibilidades de arranjo e solo. Aliás, esse é outro ponto alto dos seus discos. Os improvisos são marcados não só pelo timbre e articulação típicos, mas pela musicalidade e (recentemente) incremento de efeitos.
Ele conta que a ideia de plugar o ngoni com pedais de efeito usados em guitarra surgiu das participações em festivais mundo afora. “Depois que fiz meu primeiro CD, comecei a tocar em muitos festivais e fui constatando que podia aproveitar algumas coisas para fazer meu som mais audível, mais próprio para os lugares onde me apresentava. Aí coloquei o wah wah no segundo álbum e fui experimentando vários pedais. Se funciona, vou usando”, diz.
RAÍZES Bassekou Kouyate afirma que a tradição musical que lhe serve de base é muito antiga e peculiar. “Todos nós tocamos basicamente a mesma música. Às vezes, em meus concertos, toco temas com mais de 700 anos, que vêm da tradição. Todo mundo pensa que é blues, mas é a mesma música tocada para os reis africanos há séculos. É por isso que temos de preservar esta tradição, nos manter com uma certa pureza. É certo que tocamos cada um a seu jeito, porém mantemos essa pureza”, afirma.
O artista tem três discos lançados – Segu blue (2007), I speak fula (2009) e Jama ko (2013) – e em todos faz questão de manifestar sua relação com o blues em ao menos uma faixa. Melhor dizendo, ele defende a música do Mali como a origem do blues que se desenvolveu nos Estados Unidos. De fato, Kouyate não precisou de guitarra ou gaita para criar composições como Segu blue (Poyi), Bambugu blues e a hipnótica Mali koori, que realmente ajudam a endossar seu discurso.
“Todo o som negro que se desenvolveu nos Estados Unidos veio da África, não há dúvida. A raiz é a música pentatônica, ou seja, de cinco notas. O banjo é uma evolução do ngoni, que foi para a América com os escravos do Mali, da Costa do Marfim e da Guiné-Bissau. E o blues tem exatamente o mesmo jeito, a mesma forma da música que se ouve e se toca no estado malinês de Segu”, explica.
Não por acaso, anuncia para o ano que vem disco que evidenciará a ligação entre o Mali e os Estados Unidos por meio do blues. O trabalho ainda está em fase de produção, mas um importante convidado especial já garantiu que estará presente no estúdio: o cantor e guitarrista Taj Mahal. Não será a primeira vez que os dois tocarão juntos, pois o norte-americano já havia gravado em Poye 2, faixa do disco mais recente de Kouyaté.
Parceria em meio a conflitos
Jama ko, mais recente disco de Bassekou Kouyate, foi gravado durante o golpe de Estado que sacudiu o Mali em março de 2012. O ataque dos militares rebelados a vários pontos da capital do país, Bamako, ocorreu justamente no dia em que o produtor canadense Howard Bilerman (ex-baterista da banda Arcade Fire) havia chegado. A proximidade do estúdio em relação aos locais de conflito (menos de um quilômetro) dificultou muito o trabalho dos músicos.
“Senti-me culpado por ter levado tantas pessoas a uma situação de risco, de perigo real. Fiquei realmente na pior, porque faltava luz, água e, muitas vezes, os veículos eram atacados. Do alto da colina podíamos ver o palácio presidencial sendo bombardeado. Um carro com 30 pessoas, a caminho da gravação, quase foi incendiado. Toda hora tínhamos que interromper, foi muito complicado. Mas agora tudo está normal, a gente sabe que esta disputa é política e pelo dinheiro do petróleo”, conta Kouyate.
Com discos bem-acabados e calcados na tradição, a exemplo de Jama ko e dos outros dois que lançou, o artista ajuda a realimentar a curiosidade pela cultura do Mali, um dos países musicalmente mais interessantes do continente e que já deu ao mundo nomes do quilate de Salif Keita e Ali Farka Toure (talvez os mais conhecidos do país), além do grupo Tinariwen, dos instrumentistas Toumani Diabate e Rokia Traore e da dupla Amadou et Mariam, entre outros.
Músicas
Para conhecer Bassekou Kouyate
» Jonkoloni
» Bassekou
» Sinsani
» Segu blue (Poyi)
» Falani
» Musow (For our women)
» Torin torin
» I speak fula
» Bambugu blues
» Sinaly
» Jama ko
» Madou
» Moustafa
» Mali koori
» Ne me fatigue pas
FESTIVAL MIMO
O Mimo chega à 11ª edição como o maior festival gratuito de música instrumental do Brasil. O evento é realizado em cidades reconhecidas pela preservação do patrimônio cultural, com apresentações em praças, museus e igrejas. Todos os concertos são gratuitos. A programação deste ano chega a Ouro Preto (29 a 31 de agosto), Olinda (4 a 7 de setembro), Paraty (10 a 12 de outubro) e, pela primeira vez, a Tiradentes (17 a 19 de outubro). Um dos maiores músicos do jazz contemporâneo, o pianista e compositor americano Chick Corea se apresenta em Ouro Preto e Olinda. Outros nomes que integram a programação são o catalão Jordi Savall, o percussionista e compositor indiano Trilok Gurtu e o cantor jamaicano Winston McAnuff, entre outros artistas de 10 países. O instrumentista e compositor mineiro Toninho Horta fará concerto acústico de abertura do Mimo, em Ouro Preto, ao lado da Orquestra Fantasma.
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