Mariana Peixoto
Estado de Minas: 03/07/2014
"Quando era criança, fingia que estava fazendo um show sozinho quando estava ensaiando no piano. É assim quando estou fazendo show. Ambiento-me com o público e faço o que vem na minha cabeça" . Arnaldo Baptista, músico e compositor |
Lóki? Mas, que nada. Lucky, bicho. Arnaldo Baptista completa 66 anos neste domingo. Com seu jeito de menino grande, faz troça até mesmo do álbum que marcou o fim e o início de tudo. Lóki?, o maior clássico do músico que esteve à frente da mais genial banda brasileira, chegou aos 40 anos. Primeiro disco solo de Arnaldo Baptista, foi concebido em meio a seu então maior revés pessoal e profissional. Em 1974, seu casamento com Rita Lee acabou. Também não havia mais os Mutantes tais como foram criados na década anterior.
“Tinha um envolvimento com a vida que havia acabado: Mutantes, Rita Lee, Sérgio (Dias). Entrei em lóki, que virou lucky (sortudo). Fiquei contente por ter levado adiante a maneira como eu sentia a música, embora o Liminha (baixista, ex-Mutante, que gravou algumas faixas do álbum) achasse que o disco deveria ser meio Sergio Mendes, bossa nova. (O disco) traz, em casa música, um retrato diferente da minha vida na época”, afirma Arnaldo.
Álbum concebido, de acordo com ele, entre uma temporada na casa do artista plástico Antonio Peticov, em Milão (“ele fala de brincadeira que foi feito lá, mas só estudei na casa dele”), e um sítio na Cantareira, onde o então diretor artístico da gravadora Philips, Roberto Menescal, o encontrou arrasado, Lóki? é fruto do abuso das drogas, da desilusão, da tristeza, do desapontamento. A despeito (ou talvez por causa) disso, expressa o artista em seu auge. Sozinho, a bordo de um piano (com um baixo aqui e uma bateria ali, mas sem nenhuma guitarra), Arnaldo fez deste seu maior legado.
São 10 faixas que falam direto do artista em crise: “Venho me apegando ao passado/ E em ter você ao meu lado” (Será que eu vou virar bolor?); “A gente andou/ A gente queimou/ Muita coisa por aí” (Cê tá pensando que eu sou lóki?); “Até quando eu não sei/ sinto o barato de ser ser humano” (Desculpe); “Ontem me disseram que um dia eu vou morrer/ Mas até lá eu não vou me esconder” (Não estou nem aí). A bordo de seu piano, Arnaldo passeia, ora com raiva, ora com tristeza, mas sempre de maneira personalíssima, pelo samba, MPB, funk. “Muito do que aconteceu naquele momento foi em função do improviso, tanto que o LP foi gravado relativamente depressa”, acrescenta ele sobre o álbum registrado em 16 canais nos estúdios Eldorado, em São Paulo.
No entanto, não é Lóki? o álbum preferido de Arnaldo. Para ele, seu melhor registro é o que ocorreu oito anos mais tarde. “Mesmo que Lóki? tenha uma grande comunicação, Singin’ alone foi minha aventura pessoal, pois toquei todos os instrumentos. Foi nele que me encontrei na bateria e no contrabaixo”, acrescenta. Ambidestro – “fumo com a mão esquerda, escrevo com a direita, tenho uma bateria com dois bumbos e dois timbaus, então cada hora uso um lado” – o Arnaldo de hoje olha para o Arnaldo de ontem de maneira carinhosa. “Quando era criança, fingia que estava fazendo um show sozinho quando estava ensaiando no piano. É assim quando estou fazendo show. Ambiento-me com o público e faço o que vem na minha cabeça.” Malandro velho, não se mete no enguiço.
O passado
Diretor artístico da Philips (hoje Universal), Roberto Menescal admite que naquele 1974 havia uma dúvida na gravadora quanto a lançar um álbum solo de Arnaldo Baptista. “O pessoal dizia que ele estava numa fase difícil, não iria valer a pena. Na intuição, eu disse: ‘Quero fazer esse disco’.” Menescal saiu do Rio e foi encontrar Arnaldo num sítio na Cantareira. “Era uma casinha simpática. O Arnaldo realmente estava com um problema grande. Tinha hora que não aguentava, chorava de saudade da Rita. Era impressionante, e eu fiquei muito comovido com aquilo. Como ele estava numa deprê, houve hora que não conseguiu tocar. Liminha, se não me engano, foi quem tocou baixo em algumas músicas.” Para Menescal, Lóki? foi meio que “arrancado a fórceps”. Na ficha técnica de Lóki? Menescal divide a direção de produção com Marco Mazzola, então técnico de gravação em alta no meio graças a Krig-Ha Bandolo (1973), de Raul Seixas. “O que me chamou a atenção naquele momento eram os sons diferentes que ele fazia. Como é que aquele cara conseguia fazer aquilo?”, comenta hoje Mazzola, que acrescenta não ter feito interferência alguma no álbum. “O Arnaldo era muito maluco, mas ele tinha pré-concebido o disco todo na cabeça. O que fizemos foi dar amparo artístico.”
O músico com um amigo, em 1974, na Holanda |
O presente
Há quatro anos representado pela galeria paulistana Emma Thomas, Arnaldo Baptista ganhou sua primeira exposição individual em 2012. Em novembro haverá outra, com curadoria de Márcio Harum. Este ano, ele foi ainda selecionado para ocupar o espaço Solo Project durante a 10ª edição da SP Arte, que ocorreu em abril. “Sua linguagem visual, expressa em desenhos, pinturas e colagens, se dá como contínuo da sua pesquisa musical e não raro são propostas para instrumentos, cantos e sons”, escreveu o curador Rodrigo Moura sobre os trabalhos apresentados na maior feira de arte da América Latina. Para a galerista Juliana Freire, sócia da Emma Thomas, o trabalho de Arnaldo não se encaixa nos padrões. “Esteticamente, ele é muito livre, ainda mais por ser artista autodidata. Seu trabalho fala de cinema, música, filosofia e tem uma maneira de ver o mundo tal qual ele expressa em sua música.” No entanto, Juliana afirma, ainda existe um bloqueio comercial em relação à sua obra. “Seu discurso é um pouco conceitual. Há pessoas que têm dificuldade em entender o Arnaldo. O importante é que mais se escreva sobre sua obra, pois nossa tentativa, junto com a Lucinha, é que seu trabalho seja visto e compreendido.”
Arnaldo Baptista: um artista a ser descoberto |
O futuro
Artistas audiovisuais vão realizar clipes de canções de Lóki? e Singin’ alone (1982). Entre os nomes já confirmados para o projeto estão Paulo Henrique Fontenelle, diretor do documentário Lóki (2008), a mineira Carou Araújo, do Cabeças Flutuantes, e Almir Almas, videoartista e professor de direção da ECA/USP. Almas selecionou as faixas Ciborg e Jesus come back to Earth, ambas de Singin’ alone. “A ideia é fazer uma direção coletiva com um grupo de alunos, a partir do material que o próprio Arnaldo tem. Para os alunos é a oportunidade de conhecer a obra de um cara genial da música brasileira”, diz. Para a realização do projeto será promovida campanha via crowdfunding. Outra iniciativa, que deverá ser lançada no segundo semestre, deve reunir sete artistas convidados para gravarem, em São Paulo, uma música de Arnaldo.
O SHOW
Em 3 de agosto, às 19h, Arnaldo Baptista leva seu Sarau o Benedito? para o Cine-Theatro Brasil. Na apresentação solo, Arnaldo estará ao piano. Ingressos estão à venda – R$ 70 e R$ 35 (meia) – na bilheteria do teatro e no www.ingresso.com
OS DISCOS
A Universal Music lança, em 29 deste mês, caixa dos Mutantes com sete CDs: Os Mutantes (1968), Mutantes (1969), A divina comédia ou Ando meio desligado (1970), Jardim elétrico (1971), Mutantes e seus cometas no país dos Baurets (1972), Tecnicolor (1999) e Mande um abraço pra velha, este uma compilação de raridades. Preço: R$ 180. Relançado em 2009, Lóki? (foto) não ganha nova edição. A gravadora pretende recolocar o álbum em estoque nas lojas por causa da efeméride.
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