A dependência do crack fez Morgana perder a guarda da filha. Bob, um vira-lata encardido que ela chamava de “meu anjo de patas”, nunca mais deu as caras. Seu companheiro, um mestre de capoeira que ela tirou do crime e virou o galã do pedaço, escafedeu-se também. Nome de bruxa ela tem, mas não descobriu mandinga que o traga de volta. Morena, com traços indígenas e cabelos lisos e compridos até a cintura, Morgana não é de se jogar fora. Mas as marcas nos braços e nas pernas traem o que lhe rói por dentro. Ela costuma cortar a própria carne à navalha.
Morgana passa boa parte dos seus dias na Cracolândia, a região degradada do Centro de São Paulo em que dependentes de crack se reúnem ao ar livre para consumir a droga. Numa tarde de sábado em junho, ela estava ali sentada no chão quando as atrizes Vera Abbud e Juliana Gontijo se aproximaram. Juliana abriu uma pequena caixa de madeira cheia de papéis coloridos dobrados e pediu que Morgana escolhesse um. Ela pegou um papel, abriu e viu a palavra “estrela” escrita ali. Juliana recitou então um poema de Manuel Bandeira:
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos, meus inimigos
Procurem a estrela da manhã.
Morgana, que já estava com os olhos esverdeados mareados, desandou a chorar. Uma colega sentada ao seu lado tentou confortá-la. “A vida é assim. Deu certo, beleza. Não deu, paciência”, disse, a boca sem vários dentes aberta num sorriso e com os lábios cobertos de batom. “E olha, sempre vai ter alguém que te ache bonita”, arrematou enquanto lambuzava as pernas com creme hidratante. Guardou o tubo numa bolsa cheia de cosméticos e pegou um frasco de rímel para pintar os olhos. Produto de beleza ela compartilha com Morgana, mas cachimbo de crack cada uma que garanta o seu. “Não peço e não dou”, foi logo avisando.
As duas atrizes trocaram mais dois dedos de prosa com Morgana e sua amiga. Vera, que tinha um violão pendurado no ombro, sacou uma canção de Itamar Assunção antes de se despedir:
Sei dos caminhos que chegam,
Sei dos que se afastam
Conheço como começa,
Como termina o que faço
Só não sei como chegar
Ao nosso próximo passo.
Durante três semanas, Vera e Juliana participaram de um projeto da companhia de teatro Pessoal do Faroeste, que organizou uma turma de dez artistas para levar música, poesia e dança à Cracolândia. O objetivo das intervenções era reduzir os danos causados pelo crack e diminuir o sofrimento dos dependentes da droga, nem que fosse por alguns minutos. Batizado de Luz Solar, o projeto foi desenvolvido em parceria com o programa “De Braços Abertos”, lançado em janeiro pela Prefeitura de São Paulo para oferecer assistência aos dependentes.
Muitos se acostumaram com a presença das atrizes na região. Bastava a dupla aparecer com o violão e a caixinha de madeira para Paulinha vir correndo. Conhecida como Calopsita por causa do corte de cabelo, raspado nas laterais e todo espetado no meio, a moça já fugiu de três internações para tratar o vício e voltou à Cracolândia em todas as ocasiões. “Aqui tem tudo que gosto”, disse. “Mulher, rock e drogas.”
“Olha só! Hoje você está toda de mulherzinha, vestindo até camiseta com a cor rosa”, provocou um travesti quando ela chegou. Paulinha sorriu, abaixou os óculos escuros espelhados até a ponta do nariz e respondeu olhando nos olhos da outra, com um sorriso maroto. “Tô mesmo bem mulherzinha. Só hoje apanhei três vezes.” Como prova, exibiu um furo que a namorada fez com um alicate de unha em seu braço, um arranhão perto dos olhos e uma marca roxa na perna.
Voltando-se para as duas atrizes em busca de simpatia, Paulinha atribuiu as agressões a um ataque de ciúmes da namorada. Vera brincou com ela: “Também, com você andando com 500 mulheres por aí, a oficial tem toda a razão para ficar cabreira.” Paulinha estufou o peito, toda gabola, e a atriz começou a dedilhar no violão, como um convite ao canto. Com a voz que era um fiapo, de quem já queimou muita pedra de crack, a garota arriscou uma canção de Seu Jorge:
Tive razão, posso falar
Não foi legal, não pegou bem
Que vontade de chorar, dói.
Paulinha cantou marcando o compasso com o dedo indicador em riste e balançando o corpo, alternando o peso sobre as pernas a cada movimento. Vera a acompanhou ao violão, enquanto Juliana, segurando sua caixinha, seguia o ritmo com a cabeça. A canção teve que ser interrompida algumas vezes, porque Paulinha esquecia a letra. “Tô sequelada”, desculpava-se, antes de retomar o fio da meada.
Aos poucos, a roda foi ganhando novos participantes. Um sujeito vestindo gorro com o desenho do músico jamaicano Bob Marley apareceu com uma gaita. Outro apenas parou ali e acompanhou o ritmo com o pé. O som de uma sirene atrapalhou a música quando uma ambulância do Samu estacionou por perto e os funcionários pegaram a maca para recolher um usuário que passara mal no meio da rua.
Uma mulher, com a foto 3x4 do filho na mão, apareceu perguntando se alguém sabia do paradeiro do rapaz. Ninguém tinha notícia. Uma moça, toda tatuada e com um skate na mão, aproximou-se das duas atrizes e pediu “cinco contos”. Em vez de dinheiro, Vera e Juliana ofereceram poesia e música. Feito. A garota aceitou a proposta. Pegou o microfone imaginário da mão de Paulinha e, “dando uma de MC”, como disse, improvisou um rap na hora:
Ei, me responde
Se você discrimina a mina
O crack
Se ela passa fome
Se gosta de mulher ou gosta de homem
Fuja do preconceito
Viva a união racial
Agora, me passa 1 real?
“MC” agradeceu as atrizes e os aplausos inclinando o tronco para a frente. Jogou o skate no chão, pulou sobre ele e pegou embalo se agarrando à traseira de um ônibus que passava.
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