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O ator norte-americano Robin Williams sofria
de depressão e tinha diagnóstico de mal de Parkinson, duas das grandes
causas de suicídio no mundo, segundo estudo da OMS
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A recente morte do ator
norte-americano Robin Williams lança uma luz sobre o suicídio. Trata-se,
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de uma das quatro
principais causas de morte no mundo. Existe uma crença de que há uma
relação profunda entre suicídio e depressão, como parece ter sido o caso
de Williams, segundo o que foi divulgado pela imprensa. Há, mas a
depressão não é a única causa. O psiquiatra José Manoel Bertolote, autor
do livro O suicídio e sua prevenção, traça um retrato do que é o
suicídio e aponta as alternativas de tratamento para evitar o desfecho
fatal.
A relação entre o suicídio e a depressão é, para muita
gente, inclusive profissionais da saúde e da psicologia, de estreita
correlação, quase sinônimos. Entretanto, na suicidologia, essa relação é
conhecida como "paradoxo da depressão e suicídio". O que significa
isso? Em primeiro lugar, temos que saber do que estamos falando. O que é
depressão? O que é suicídio? Depressão é um termo ambíguo, que pode
designar desde um estado emocional momentâneo e passageiro (a "fossa",
uma "deprê", "dor de cotovelo") até doenças graves (como a melancolia,
caracterizada por angústia e tristeza profundas), doenças estas que
podem ter causas biológicas (como alterações hormonais ou de
neurotransmissores), psicológicas (frustrações, decepções ou a "raiva
dirigida a si mesmo") ou sociais (situações de humilhação, de desonra).
Há casos em que as três ordens de fatores atuam, obviamente aumentado a
gravidade do caso. Já o suicídio é uma das quatro principais formas de
óbito (as demais são as causas naturais, os acidentes e os homicídios),
definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma morte
resultante de um ato executado voluntariamente por um indivíduo com a
intenção de pôr fim à sua existência. E como se formula esse paradoxo?
Segundo ele, há uma fortíssima correlação com a depressão, a qual,
contudo não se verifica na realidade.
De onde vem esse paradoxo?
Podemos
atribuir a origem desse paradoxo à diferença dos pontos de partida da
clínica e da epidemiologia. Psiquiatras e psicólogos clínicos partem de
populações de pessoas enfermas que chegaram aos seus cuidados, grande
parte dos quais portadores de depressão. Já os epidemiologistas, bem
como psiquiatras, psicólogos sociais e suicidólogos, partem da população
geral. De qualquer modo, seja qual for a origem desse paradoxo, ele
pode ser demonstrado a partir de algumas constatações.
O
primeiro aspecto desse "paradoxo da depressão e suicídio" diz respeito à
frequência desse dois fenômenos. As depressões constituem uma das mais
frequentes formas de transtorno mental nos países industrializados, de
alta ou média renda (entre os quais se encontra o Brasil). Um importante
estudo recente (São Paulo Megacity, 2011) indicou que, dos
entrevistados de uma amostra representativa dos adultos residentes na
Região Metropolitana de São Paulo, 10% admitiram ter estado deprimidos
no ano anterior. Não temos estudos comparativos realizados em outras
cidades ou regiões do Brasil, porém, se projetarmos essa porcentagem
para a população brasileira, teremos no mínimo uns 10 milhões de
brasileiros deprimidos.
Já o suicídio, embora seja uma das
principais causas de morte em todo o mundo, é um evento relativamente
raro, medido não em termos de porcentagem (número de ocorrências por 100
pessoas), como a depressão, mas em número de casos por 100 mil pessoas.
Em todo caso, o suicídio é um evento muito mais raro do que a
depressão. Como comparação, no mesmo ano de 2011 houve, em todo o
Brasil, pouco menos de 10 mil (9.852) casos de suicídio.
O
segundo aspecto se refere ao sexo, ou gênero. Praticamente em todos os
estudos epidemiológicos sobre transtornos mentais, realizados no Brasil
ou no exterior, os transtornos depressivos são mais frequentes em
mulheres do que em homens, numa proporção que varia de duas a quatro
vezes, conforme o estudo. Ora, exatamente o contrário é revelado também
pela maioria dos estudos epidemiológicos sobre o suicídio: em todas as
partes do mundo onde isso foi estudado, o suicídio predomina em homens,
também numa proporção de duas a cinco; a única exceção conhecida vem de
certas regiões rurais da China, onde a taxa de suicídio feminina é
levemente superior à masculina.
A realidade Todavia,
onde há fumaça deve haver (ou ter havido) fogo. E, se tanto se fala em
associação entre suicídio e depressão, algo deve haver. E há. A maioria
dos estudos científicos sobre a relação entre o suicídio e a depressão
empregou e emprega o método da autópsia psicológica, que é um tipo de
estudo retrospectivo que investiga, através de registros médicos e
hospitalares do falecido e de entrevistas com seus familiares, amigos e
colegas, a presença nele de algum tipo de transtorno ou doença mental.
Trata-se de um método que, embora não totalmente isento de possíveis
falhas, tem alta validade e fidedignidade, quando bem planejado e
aplicado. É um tipo de estudo delicado, caro e que exige cuidadoso
preparo de seus pesquisadores entrevistadores. Ademais, para que os
dados de um mesmo estudo sejam comparáveis entre si, é preciso que o
tempo entre o óbito e as entrevistas seja mais ou mesmo o mesmo. Em
locais com baixa frequência de suicídio, isso se torna um óbice.
Em
parte por esse motivo, os primeiros estudos que investigaram a relação
entre suicídio e doenças mentais foram realizados na Europa, mais
particularmente no Reino Unido, com poucos casos, e encontraram uma alta
proporção (até 80%) de depressão nas populações estudadas. Esses dados
confirmaram a impressão prévia dos psiquiatras clínicos e consolidaram a
ideia de que realmente havia uma forte associação entre depressão e
suicídio.
Contudo, à medida que o número de casos estudados
aumentou e pesquisadores de outros países passaram a fazer mais estudos
de autópsia psicológica, a proporção de casos de depressão entre pessoas
que haviam se suicidado foi diminuindo. Em 2005 a OMS compilou todos os
estudos de autópsia psicológica publicados em todo o mundo (mais de 16
mil casos) e constatou que, efetivamente, a depressão era o diagnóstico
psiquiátrico mais frequentemente identificado em pessoas que haviam se
suicidado. Não obstante, estava longe de ser encontrado na maioria dos
casos: em pouco menos de apenas um terço (30%) das pessoas que haviam
falecido por suicídio podia-se fazer o diagnóstico de alguma forma de
depressão.
E o diagnóstico dos outros dois terços? Para surpresa
de muitos (e satisfação de outros), o diagnóstico de alcoolismo foi o
segundo mais frequentemente encontrado (em 18% dos casos), seguido pelo
diagnóstico de esquizofrenia (em 14% dos casos). Juntos, a depressão, o
alcoolismo e a esquizofrenia respondem por mais de 60% dos casos de
suicídio.
Resta ainda quase um terço dos casos cujo diagnóstico
se distribui entre diversas categorias, das quais a mais frequente é a
de certos transtornos de personalidade que, embora sejam considerados
transtornos mentais, não constituem exatamente uma doença mental.
É
importante assinalar que em apenas cerca de 5% dos casos não foi
possível fazer-se um diagnóstico retrospectivo de alguma forma de doença
mental. Importante assinalar, ainda, que esse quadro geral foi
observado tanto em estudos com populações de adultos e idosos quanto em
estudos com suicídio de crianças e adolescentes.
Outras doenças Além
do peso da comorbidade - que, em medicina, designa a ocorrência
concomitante de duas ou mais doenças na mesma pessoa, como hipertensão e
diabetes em idosos, ou desnutrição e infecções em crianças -, existe a
comorbidade com doenças físicas. Destas, as mais frequentemente
associadas ao suicídio são aquelas crônicas, incuráveis, incapacitantes
ou dolorosas, como certos cânceres, epilepsia, doença de Parkinson e
doença de Alzheimer, em suas fases iniciais.
Voltando à questão
do "paradoxo da depressão e suicídio", há outro elemento que contribui
para mantê-lo, e que diz respeito ao fenômeno da comorbidade. Ocorre que
depressão e alcoolismo têm uma elevada comorbidade e, quando as duas
doenças estão presentes, o mais provável é que o diagnóstico de
depressão seja registrado, em detrimento daquele do alcoolismo, o que
inflaciona proporcionalmente o primeiro diagnóstico, reforçando, assim, a
impressão inexata de uma associação mais forte entre depressão e
suicídio.
Outro fator que contribui para dar a impressão de
validade ao paradoxo decorre das tentativas de suicídio. Embora tanto o
suicídio (óbito, logo mortalidade), quanto a tentativa de suicídio
(morbidade) façam parte do processo suicida, são fenômenos bastante
distintos em vários aspectos, não apenas em relação ao desfecho: morte
no primeiro (logo, do campo da mortalidade) e sobrevivência no segundo
(logo, da morbidade). O que acontece aqui é que as tentativas de
suicídio - também associadas a quadros depressivos - são mais frequentes
em mulheres jovens, que têm mais depressões que os homens.
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A depressão está presente em cerca de 30% dos
casos de suicídio. Recomendação da OMS é que pacientes com esse
distúrbio sejam tratados pela rede básica de saúde e pelo Programa de
Saúde da Família
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O que fazer? Confirmada
por inúmeros estudos e análises estatísticas, resta a evidência de que
os transtornos mentais, em geral, e a depressão, o alcoolismo e a
esquizofrenia, em particular, são dos mais importantes fatores de risco
para o suicídio. Isso não que dizer, em absoluto, que o suicídio seja
uma doença; é, tão somente, um desfecho possível de determinadas
doenças, particularmente se estas não forem bem tratadas. Tampouco quer
dizer que a depressão (ou o alcoolismo, ou a esquizofrenia) cause o
suicídio; tão somente que é um fator predisponente ao suicídio.
Independentemente
da magnitude e da robustez da associação entre depressão e suicídio,
permanece o fato de que a depressão pode ser uma doença grave o
suficiente para merecer atendimento médico e psicológico. A mais recente
recomendação da OMS a esse respeito afirma que a depressão (assim como
outros nove transtornos psiquiátricos, entre os quais o alcoolismo e a
esquizofrenia) pode ser tratada em locais de cuidados não
especializados, o que, no Brasil, corresponde à rede básica de saúde e
ao Programa de Saúde da Família.
A população espera que as
autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais tomem as
providências necessárias para que isso se torne uma realidade acessível a
todos e a todas. Os benefícios serão notados não apenas na melhoria do
estado da saúde, mas também na redução das taxas de suicídio.
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Depois da depressão, o alcoolismo aparece em
estudo da OMS como a segunda maior causa de suicídios. É preciso que as
autoridades federais, estaduais e municipais de saúde estejam mais
atentas aos fatores que levam uma pessoa a tirar a própria vida
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. José Manoel Bertolote é professor voluntário da Faculdade de Medicina de Botucatu, da
Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e professor visitante
do Instituto Australiano de Pesquisa e Prevenção do Suicídio - Griffith
University, Brisbane, Austrália