Celina Aquino
Estado de Minas: 01/09/2014
"Poderei não curar, pois o câncer é inteligente e cria outros mecanismos, mas vou mudar o curso da doença", Carlos Barrios, diretor do Grupo Latino-americano de Pesquisa em Oncologia (Lacog) e do Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre |
O câncer não é mais visto como uma única doença. Técnicas cada vez mais modernas permitem identificar as alterações genéticas que estimulam o crescimento das células cancerígenas de cada tipo de tumor. Com isso, os tratamentos passam a ser direcionados a alvos específicos e os ganhos na oncologia se mostram expressivos. As novas opções terapêuticas levam esperança para os pacientes e indicam que a medicina personalizada, uma realidade em todo o mundo, pode ser mesmo promissora.
O tratamento do câncer começou a mudar a partir do Projeto Genoma Humano, concluído em 2003, que mapeou toda a sequência do DNA. Em seguida, surgiram análises moleculares precisas, que permitiram dividir a doença de acordo com a alteração genética relacionada a cada tumor. Já se sabe, por exemplo, que existem mais de 30 tipos de câncer de pulmão. “O câncer está sendo estratificado segundo alterações moleculares passíveis de ser tratadas por medicamentos específicos. É como se estivéssemos tratando doenças completamente diferentes, entre elas doenças raras, que atingem 1% dos pacientes”, informa o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Evanius Wiermann.
Os avanços apontam para o que se chama de medicina personalizada, em que medicamentos são desenvolvidos para combater um determinado tipo de tumor. A terapia-alvo é uma das estratégias que revolucionaram o tratamento do câncer, por ser capaz de atingir partes específicas das células cancerígenas, oferecendo menos danos às células saudáveis e reduzindo efeitos colaterais. “Individualizar o tratamento não é nada mais que conhecer melhor a doença, descobrir o que está ocorrendo e usar a droga certa. Se sei que as células cancerígenas precisam de novos vasos sanguíneos para se desenvolver, vou inibir o processo”, esclareceu o diretor do Grupo Latino-americano de Pesquisa em Oncologia (Lacog) e do Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre, Carlos Barrios. “Poderei não curar, pois o câncer é inteligente e cria outros mecanismos, mas vou mudar o curso da doença.”
Os primeiros a se beneficiar da terapia-alvo foram pacientes diagnosticados com leucemia mieloide crônica, que passaram a ser tratados com inibidores de tirosina quinase, remédios que conseguem destruir a proteína ligada ao crescimento das células cancerígenas. A doença é controlada de tal maneira que os pacientes vivem décadas com qualidade de vida e virtualmente curados. As novas drogas também aumentaram a sobrevida de pacientes com câncer de pulmão originado por uma mutação genética específica. Eles chegam a viver três vezes mais. “Estamos caminhando para descobrir outras moléculas que podem ser alvo de bloqueio. Não quer dizer que vamos ficar sem o tratamento convencional com quimioterapia, mas significa que, às vezes, vamos associá-lo com outros medicamentos”, pontua o diretor de relações institucionais do Cetus Hospital Dia, Charles Pádua.
RESULTADOS Duas pacientes do centro de oncologia participam de um estudo internacional que analisa a eficácia de um medicamento oral, testado em estágio avançado de câncer de mama. O tratamento tenta bloquear um mecanismo intracelular intimamente relacionado com a resistência do tumor. “O medicamento está sendo associado à droga convencional para reverter o mecanismo de resistência que é adquirido ao longo do tratamento das mulheres. Em determinado momento, temos que mudar a estratégia, porque o câncer fica resistente à droga”, explica Pádua, o único investigador de Belo Horizonte. O oncologista já utiliza outros medicamentos que interferem em diferentes alterações genéticas ligadas ao câncer de mama.
Outra maneira de personalizar o tratamento do câncer é utilizar a imunoterapia, cujas drogas estimulam o sistema imunológico, em vez de atuar diretamente no tumor. “Por algum motivo que não conhecemos, os mecanismos naturais de defesa acabam falhando no combate à doença. A ideia é fazer com que o corpo reconheça como estranhas as células tumorais e possa combatê-las”, informa o oncologista clínico do A.C. Camargo Cancer Center, Fábio Nasser Santos. Estudos internacionais mostram resultados promissores em pacientes com melanoma, câncer de pele mais agressivo ligado a uma mutação específica. Até então, não havia nenhuma opção terapêutica para eles. Ainda não se pode falar em cura no contexto da doença avançada, mas Santos diz que o novo tratamento consegue controlar o câncer por mais tempo. A sobrevida dos pacientes com melanoma, que antes era, em média, de nove a 10 meses, pulou para 20 meses com a imunoterapia, ganho significativo para a oncologia.
Menos agressivo
Fora do Brasil, é realidade a terapia celular, considerada um estágio mais avançado da imunoterapia. Médicos norte-americanos e europeus podem recorrer a uma droga que funciona como vacina para tratar câncer de próstata avançado. O medicamento é produzido a partir de células do próprio paciente, manipuladas em laboratório para que possam combater o tumor. A vantagem da terapia celular é ser um tratamento pouco agressivo e aumentar em quatro meses a sobrevida dos pacientes.
Além de desenvolver medicamentos dirigidos, individualizar o tratamento é identificar os pacientes que podem se beneficiar dele. O diretor de relações institucionais do Cetus Hospital Dia, Charles Pádua, lembra que, num passado não muito distante, todas as mulheres com câncer de mama eram submetidas à quimioterapia para complementar o tratamento cirúrgico. “Hoje, temos testes genéticos que podem determinar se a pessoa com tumor em estágio inicial está ou não em determinado grupo de risco. Isso nos possibilita avaliar quem vai ser eleito para a quimioterapia”, destaca. O problema é que o exame custa cerca de R$ 10 mil e não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).
“Infelizmente, individualizar o tratamento não é barato. A medicina personalizada economiza recursos, porque você tem a possibilidade de saber quem são os pacientes que vão precisar daquela droga, mas é tudo muito caro”, lamenta o presidente da SBOC, Evanius Wiermann. Considerando que quase 80% da população no Brasil é dependente do SUS, o oncologista percebe que os brasileiros acabam divididos entre os pacientes de convênio, que conseguem ter acesso aos medicamentos, e os da saúde pública, que estão restritos a poucas opções terapêuticas. O desafio dos países em desenvolvimento, de oferecer os novos tratamentos para toda a população, será discutido no congresso da SBOC do ano que vem.
CUSTO ALTO Cada dose do medicamento da linha de imunoterapia que trata pacientes com melanoma custa aproximadamente R$ 70 mil. É preciso tomar pelo menos quatro, o que gera um custo de R$ 280 mil. Alguns convênios cobrem o tratamento, mas o SUS não. Para ter acesso à vacina para câncer de próstata, os brasileiros precisam ir aos Estados Unidos. Wiermann teme que a droga nem chegue ao Brasil, devido ao alto custo (mais de R$ 200 mil por três aplicações). “Muitas das patentes vão cair ao longo do tempo e dar espaço para os medicamentos similares, forçando a queda dos preços”, enxerga. Por enquanto, muitos pacientes precisam recorrer à Justiça para receber do governo o tratamento gratuito.
Por outro lado, o oncologista Charles Pádua acredita que é preciso ter critério para incluir tanto na rede pública quanto na privada tratamentos que realmente deem resultados. “Temos que tirar o foco do valor do remédio e pensar na pessoa que precisa dele. Não importa se custa R$ 1 mil ou R$ 100 mil, desde que mude a vida do paciente”, pontua. No início do ano, foram incluídos no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) vários novos medicamentos para o câncer, que devem ser oferecidos pelos convênios. O SUS também passou a oferecer novas drogas, mas ainda não abrange todos os tratamentos.
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Daqui para o futuro
Novas mutações genéticas
É bem provável que o caminho para a cura do câncer passe pela medicina personalizada. Por isso, o oncologista clínico do A.C. Camargo Cancer Center, Fábio Nasser Santos, lembra que falta aprofundar os estudos de novos medicamentos, pois a solução para o problema não está em simplesmente desenvolver drogas que atuam em determinado mecanismo celular. O desafio, na opinião do especialista, é entender por que certos tratamentos funcionam por um determinado tempo e descobrir uma maneira de combater a resistência do câncer, já que células cancerígenas mais resistentes acabam sobrevivendo e voltam a se multiplicar. Assim, será possível oferecer aos pacientes medicamentos que agem em novas mutações genéticas, permitindo que eles respondam melhor ao tratamento e vivam por mais tempo.
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Personagem da notícia
Ricardo José do Amaral Caldeira
63 anos, coronel reformado
Curado de um melanoma
O diagnóstico se confirmou há nove anos. Ricardo descobriu que uma verruga no braço era sinal de melanoma, câncer de pele mais agressivo. Cinco anos depois, o militar carioca teve que operar para retirar três nódulos nos pulmões e um na coxa direita. Um deles voltou no ano seguinte. Como se recusou a ir de novo para a sala de cirurgia, Ricardo buscou outra alternativa. Começou primeiro pela quimioterapia, mas o tumor voltou a crescer. Foi então que os médicos decidiram testar um novo medicamento com probabilidade de 5% de resultado positivo, e o câncer de Ricardo desapareceu. Nem a equipe responsável pelo exame que constatou o sumiço acreditou, pois nunca tinha visto um melanoma regredir. “Ainda existe uma chance de o câncer voltar, mas do jeito que o remédio atacou meu organismo, não acredito. Em novembro, vai fazer dois anos que não estou tomando mais nada”, comemora. Ricardo conseguiu fazer o tratamento gratuitamente no A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo.
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