"Viver é fácil"
Às vésperas de festejar seus 100 anos, a intelectual Elza de Moura exige mais atenção à educação
e à cultura. Discípula de Helena Antipoff, ela diz que a escola pode salvar o país
Ana Clara Brant
Estado de Minas: 11/01/2015Elza de Moura guarda o retrato da mestra Helena Antipoff em sua biblioteca, no Santa Efigênia |
Num casarão da Rua Tenente Anastácio de Moura, antiga Rua Rio das Velhas, no Bairro Santa Efigênia, a professora, musicista, cientista e regente Elza de Moura vive desde que nasceu. Em agosto, ela vai completar 100 anos. Elza é a única colaboradora viva da pedagoga russa Helena Antipoff, que revolucionou a educação mineira a partir dos anos 1930.
Cheia de saúde e disposição, Elza conta que a rua onde mora leva o nome do pai, militar morto com apenas 42 anos, durante a Revolução de 1932. Nascida numa época em que as mulheres, quando muito, só podiam ser professoras, ela se formou no grupo Henrique Diniz. Em seguida, o tenente Anastácio a matriculou na Escola Normal Modelo, onde hoje está o Instituto de Educação, que preparava moças para o magistério. “Papai nem me perguntou se queria ser professora, mas acertou. Fiz um curso maravilhoso”, recorda.
Diretora de colégio durante 25 anos, a professora lamenta a forma como o ensino brasileiro degringolou – palavra dela – e critica os atuais cursos de pedagogia. “Há um erro tremendo neles. Gente que nunca viu uma sala de aula vai fazer pedagogia e depois se gaba de ser muito importante, mas não é. Não sabem nada, está tudo tão teórico. De vez em quando dou palestras para alunos da Universidade Federal de Minas Gerais e a gente vê aquelas moças que trabalham o dia todo chegando à noite na sala, comendo sanduíche. A que horas elas vão ter cultura? Quando vão estudar? Deveriam modificar a legislação. Não condeno quem trabalha e estuda, mas essas pessoas deveriam dedicar pelo menos um dia da semana à literatura e à cultura dentro do próprio estabelecimento de ensino”, sugere.
Elza credita sua formação aos educadores com quem conviveu: Abgar Renault (que chegou a ministro da Educação e da Cultura), Mário Campos e, claro, Helena Antipoff. As duas se conheceram em meados dos anos 1940. “Dona Helena aplicou uma psicologia completamente diferente daquela que a gente via e ouvia por aí. Ela não adotava livro, mas colocava as alunas em situações de descoberta. Um dia, perguntou: ‘Sabe quantos degraus as senhoras sobem aqui na escola?’. Ninguém sabia. Essas coisas que escapam da gente, as coisas miúdas, transformam-se em grandes. Ela nos colocava em situações de pensamento, de observação”, relembra.
A pedagoga russa se interessou por alunos e docentes da roça, criando uma escola rural em Ibirité, na Região Metropolitana de BH, o famoso Complexo Educacional Fazenda do Rosário. Elza foi uma das ex-alunas convidadas para lecionar lá. Era professora de canto. “A Escola Normal Rural foi uma coisa extraordinária. Dona Helena tinha visão. As meninas vinham de escolas fracas da zona rural, mas passavam por baterias de testes e dona Helena sempre acertava na hora de selecioná-las. As moças tinham acesso à formação completa antes de se tornar professoras”, acrescenta.
Elza diz que nunca teve fama de brava, mas se irrita com a falta de interesse e a ignorância. Ela tem se decepcionado com boa parte das crianças e dos jovens do século 21. “A educação brasileira está no fundo do poço. Precisamos de bons educadores, de mil Helenas Antipoffs, de mil Abgares Renault, mil Mários Casasantas. Dona Helena costumava dizer: quando tudo está perdido, existe a escola. É uma grande verdade”, reitera.
ÓPERA A música teve papel especial na trajetória de Elza. Influenciada pelo pai, que tocava vários instrumentos, desde menina ela ouviu o que havia de melhor. Estudou canto e piano, regeu corais, chegou a cantar ópera ao lado da Orquestra Sinfônica da Polícia Militar. “O piano já foi muito útil, mas virou objeto de decoração. Não tenho tempo para estudar. Dou palestras, escrevo artigos, cuido da casa e, há pouco tempo, fiz um curso de cinema. E olha que sou aposentada, hein?”, conta.
Ela não abre mão das reuniões mensais da Arcádia de Minas Gerais. Nessa academia de letras, artes e ciências humanas, que funciona no Edifício Maletta, médicos, escritores, advogados, arquitetos e pintores se encontram para debater os mais variados assuntos. Elza publicou livros de ciências para as crianças, além de ensaios sobre literatura, música e educação.
A mestra não planeja nada de especial para 4 de agosto, quando vai completar um século de vida. Está pensando até em fugir para o Mato Grosso, onde moram os sobrinhos. “Isso é uma tremenda bobagem. Todo dia é dia de aniversário, é mais um dia de vida”, diz. A professora não se casou. “Tenho mais de mil filhos. São os meus ex-alunos, que até hoje me procuram”, explica. E diz não ter segredos para chegar tão bem aos 100 anos. “Trabalhei no que gosto, defino a hora para almoçar, jantar, dormir e o que comer. Essa coisa de falar que isso e aquilo fazem mal é bobagem. Adoro torresmo e coisas gordurentas, tomo uma latinha de cerveja de vez em quando. A maioria das pessoas acha que velho só pensa em doença. Eu não. Discuto filosofia e literatura. Viver é fácil”, conclui.
Minha madrinha
Affonso Romano de Sant’Anna
“Meu pai, Jorge Sant’Anna, e o pai de Elza, o tenente Anastácio de Moura, eram oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais, vizinhos em Santa Efigênia. Tornaram-se amigos, por isso a escolha da Elza como minha madrinha. Desde menino, ela me mandava livros, cartões nos aniversários e sempre esteve presente. Todas as semanas ligo para ela. Nos anos 1960, morei com a Elza e foi um período ótimo na minha vida. Ela desenvolvia seu trabalho na mítica Fazenda do Rosário com dona Helena Antipoff, que conheci. Minha madrinha é uma pessoa única, extremamente generosa, meio renascentista, com uma cultura impressionante. Sabe tudo de música, de ópera, e, curiosamente, nunca viajou para fora do país. Até hoje é uma pessoa extremamente ativa. Dá palestras, participa de encontros e não para em casa. Elza de Moura é a última sobrevivente de uma época que, infelizmente, não existe mais, e de toda uma geração que revolucionou a educação em Minas Gerais.”
A PIONEIRA
A psicóloga e pedagoga russa Helena Antipoff se mudou para o Brasil em 1929, a convite do governo de Minas Gerais. Na época, articulava-se a Reforma Francisco Campos/Mário Casasanta, que revolucionou o ensino do estado. Pesquisadora atenta à criança portadora de deficiência, foi pioneira na introdução da educação especial no Brasil. Ela fundou a primeira Sociedade Pestalozzi.
A Fundação Helena Antipoff, com sede em Ibirité, na Grande BH, dá prosseguimento às suas ideias.
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