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sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Fernanda Torres

folha de são paulo
Pecado mortal
O revelador encontro que Sérgio Cabral travou com o papa daria uma pantomima medieval
Voltei de viagem. Como é bom voltar de viagem.
Trocaram as maçanetas da casa na minha ausência. As antigas rangiam, saíam na mão, pulavam longe, ejetadas num simples abrir de porta. Com essas, passeio pelos cômodos, entro e saio só para testar o engenho. A humanidade caminhou muito, basta comparar as maçanetas de hoje com as de outrora.
Três milhões de peregrinos lotavam a praia da Copacabana para ver o Santo Padre e eu agradecida às maçanetas. Deus perdoa. É a carne.
No estrangeiro, ouvi relatos sobre as barricadas do Leblon. Terminei de ler "Os Miseráveis" pouco antes de embarcar, a palavra barricada me remeteu ao pivete Gavroche, a Marius e Javert; mas eu desconhecia o rosto dos incendiários do Leblon.
Cabral abusou do direito de ir e vir de helicóptero, da intimidade com o setor privado, houve descontrole da polícia nos enfrentamentos com os manifestantes, além de acasos e tragédias que levaram à vigília eterna de sua residência. Como se não bastasse, o desaparecimento do pedreiro Amarildo veio agravar o quadro de rejeição.
Mas foi sob o comando de Cabral que José Mariano Beltrame implantou uma estratégia de reocupação de vastas áreas dominadas pelo tráfico no Rio de Janeiro. Algo impensável, desde os tempos de Brizola. A atitude lhe valeu uma reeleição folgada.
A assumida arrogância pela esmagadora vitória, somada aos desvios já citados, contribuiu para o caos armado do Leblon. Mas surpreende que "Fora Cabral" vire jargão nas reivindicações da capital paulista.
Há décadas, a riqueza exponencial tornou São Paulo indiferente às mazelas políticas da Guanabara. E elas não foram poucas. Jamais presenciei um "Fora Garotinho", "Rosinha" ou "Brizola" no planalto paulista. O que acontece na Bahia, em Pernambuco, Minas e Goiás tem mais relevância para São Paulo do que as agruras da faixa de Gaza do vizinho.
De repente, "Fora Cabral" vira slogan na garoa. Quem carrega o andor? É impressão minha ou houve uma mudança radical no perfil das manifestações?
As novas mídias viabilizaram a insurreição súbita das massas. Agora, a política ajusta os métodos, criando partidos de Anonymous a serviço, precisa saber de quem. Está difícil distinguir o que é espontâneo do que é orquestrado.
Na primeira vez que vi na televisão o nome de Sérgio Cabral surgir ao lado do de Geraldo Alckmin, esperei pelo esquadrão anti-Haddad, mas ele não apareceu. Estranhei. Ninguém vai pedir o pescoço do prefeito?
Ainda presa ao apartidarismo das passeatas de julho, achei que o repúdio amplo, geral e irrestrito continuaria vigorando. No lugar de Renan Calheiros, um senador da República nacionalmente chamuscado, reluzia, agora, o nome de Sérgio Cabral. E Haddad, que, se não me engano, figurou nas primeiras revoltas, estava com a cabeça a salvo.
Quem afia a guilhotina?
Sérgio Cabral foi o melhor governador que o Rio elegeu em décadas --o que não é muito, quando se pensa nos anteriores, mas foi um avanço. Hoje, um ano antes de encerrar o segundo mandato, enfrenta a danação bíblica pela soberba e a usura.
O revelador encontro que travou com o papa daria uma pantomima medieval. A Virtude e o Poder, algo assim.
O voto de simplicidade de Francisco se opõe à idolatria do dinheiro, pregada nos quatro cantos do planeta, inclusive no Vaticano. Há santos na Cúria, afirma o papa, e prova que há, sendo.
Francisco foi eleito em meio a tormentas internas e externas da igreja, em uma Europa em recessão desde 2008. Como poucos, soube, através de ações práticas, traçar uma conduta moral para os que detêm o poder em tempos de crise.
Aqui, e especialmente na Guanabara, vivia-se a euforia da promessa do capital. Trocávamos as maçanetas, os carros, as geladeiras, construíamos estádios. A percepção do retrocesso econômico aconteceu antes do previsto na população e flagrou os governantes ajoelhados aos pés do bezerro de ouro.
Cabral é a Cúria que Francisco pretende reformar. Mesmo ungido, o governador deverá arder nesse inferno por, pelo menos, mais um ano, ou até que outro venha assumir o papel de Judas. Enquanto isso, Garotinho sobe nas pesquisas de intenção de voto.
A política é um pecado mortal.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Fernanda Torres

folha de são paulo

O Rebu



Eu ia fazer um elogio a Baby do Brasil, cujo show, ao lado do filho, Pedro, é um acontecimento de dimensões míticas. Mas guardei o impacto para o nível cósmico. Sucumbi ao drama terreno.
O quebra-quebra da quinta-feira histórica comia solto na retrospectiva da TV quando foi interrompido pelo intervalo comercial. Um reclame sobre a inclusão social exibia torcedores de verde e amarelo, a pátria de chuteiras tomando as ruas a caminho da Copa das Confederações.
Diante da violência do noticiário, a alegria dos figurantes soava mais como uma piada de mau gosto.
A famosa marca de carro seguiu na mesma linha, convocando a população a tomar as esquinas. Multidões gritavam o gol das telefônicas, todo o planejamento publicitário, realizado com base na cartilha do que feliz é quem tem, desafinava no "Jornal das Dez".
Lembrei de uma aula do Mobral do Millôr Fernandes, onde a professora primária prima por não ensinar coisa nenhuma. A lição termina com um primor de paradoxo sobre o Brasil: "É, enfim, um país do futuro, sendo que esse se aproxima a cada dia que passa".
Passou mais rápido do que eu imaginava.
Um mês antes da Primavera Tropical, eu estava no carro, engarrafada, a caminho não sei do quê, quando os acordes de "O Guarani" anunciaram "A Voz do Brasil". A locutora elencou os tópicos do dia, com destaque para o Bolsa Mobília. Gente humilde agradecia a chance de trocar os móveis e a televisão. A próxima eleição está resolvida, pensei.
Vale-Consumo, emprego em alta, Eike na Forbes e Anderson campeão invicto, não havia motivo para insatisfação, só indícios. Pouco antes da grita, ouvi uma senhora distinta se referir a Mantega como Margarina. Não era um bom sinal. O trocadilho ácido me fez lembrar da descrença jocosa com que tratávamos o Funaro e o Maílson, do ódio que tínhamos da Zélia. Temi o retorno do bicho-papão.
O aparelhamento político das empresas estratégicas, a crise na infraestrutura, o inchaço da máquina governamental, o PIBinho e o retorno do zumbi inflação, até ontem assuntos por demais elitistas, irrelevantes para o perde e ganha do jogo democrático, de repente se tornaram questões mais que urgentes.
A rede de Anonymous as colocou em pauta, atropelando a versão arco-íris dos tradicionais meios de propaganda; públicos e privados.
As agências de publicidade enfrentam, agora, o desafio de substituir a imagem do consumidor ávido por carro, fogão e geladeira, pela do patriota consciente. Terão que moderar o orgulho cívico esportivo com certa dose de engajamento.
A política, tão ligada à propaganda, encara a pressão de, um ano antes da eleição, espelhar a vontade do povo. O problema é que a vontade do povo parece exigir o fim da própria política; ou, pelo menos, da política pela política.
A praça pede mais administração e menos política. A redução dos 39 ministérios, criados para satisfazer alianças partidárias, seria um gesto bem-vindo.
Suspeito do plebiscito redigido a toque de caixa, para ser votado logo e posto em prática já nas próximas eleições. A precipitação tem sido a marca das ações do Planalto.
Nos dias seguintes ao estouro da boiada, aguardei com ansiedade o pronunciamento oficial. Ele veio frio, protocolar. Lamentei que Dilma não tivesse memorizado, ou mesmo redigido, o texto.
A garantia de que estava atenta à voz da nação, e acredito que estivesse, e esteja, esbarrava na leitura pausada e vacilante, no sorriso triste e na falta de convicção do conteúdo da fala. Pareceu discurso de candidato.
Faltou a estadista e sobrou o assessor de marketing.
Se o Congresso insistir em levar a família para passear de jato, temo que algum bufão travestido de Henrique 5º com o discurso do dia de São Crispim bem decorado na boca se aproprie da indignação da plebe e nos arraste para o horror populista.
Sou grata a quem saiu às ruas contra a PEC 37 e espero que as manifestações não sirvam de trampolim para o chavismo endêmico na América Latina.
Aí, vai ser a bancarrota.
Fernanda Torres
Fernanda Torres é atriz e colunista da Folha desde 2010. Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa do caderno "Ilustrada".

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Folhetim - Fernanda Torres

folha de são paulo
Folhetim
Por que não retratamos o Congresso à maneira dos americanos, seja para enaltecê-lo ou dissecá-lo?
É voz corrente que o melhor da dramaturgia americana se encontra, hoje, na televisão. O custo estratosférico da sétima arte eliminou o risco do "grand écran". Com raras exceções, os filmes seguem uma receita previsível de explosões, risos, tiros e romance, capaz de atrair o gosto médio do espectador.
O legado de diretores autorais como Scorsese, Cassavetes, Coppola, Kubrick e Polanski, quem diria, vingou como produto não no cinema independente, mas nos seriados de TV.
O fim do celuloide destruiu a fronteira que separava o vídeo do cinema. Vingou o vídeo. O detalhe técnico influenciou o processo criativo. O cinema privilegiou o artifício dos efeitos especiais, enquanto a TV se livrou da inferioridade artística, abandonando a herança da radionovela, erguendo a quarta parede e tirando as câmeras da boca de cena.
Um piloto para televisão tem um custo muito menor que o de um longa. Apostam-se menos fichas na roleta e, em caso de acerto, os dividendos se perpetuam ao longo de infinitas temporadas.
A balança comercial favorável libertou a autoria. "Breaking Bad", "Família Soprano" e "House of Cards" são obras que, apesar de experimentais, virulentas e amorais, obtiveram êxito de audiência.
O longa "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, baseia-se nos fatos reais que levaram à captura de Osama bin Laden, mas a paranoia novelesca de "Homeland" traduz melhor a realidade da América. Claire Danes, a agente bipolar, encarna o parafuso persecutório da segurança pública, enquanto o herói de guerra, após sofrer uma lavagem cerebral do jihad, descobre Deus em Alá. É um enfoque bem mais instigante do que o caça ao tesouro de Bigelow.
"House of Cards" se inspira em Shakespeare para traçar o perfil do Congresso americano. Kevin Spacey faz apartes para a câmera com a elegância de Ricardo 3º. A relação entre os políticos e a imprensa, as ONGs e as campanhas eleitorais, a ganância da distribuição de cargos, a manipulação da opinião pública, tudo é revelado com franqueza educativa.
Impossível assistir a "House of Cards" sem se perguntar o porquê de a política ser um tema tão bissexto na dramaturgia nacional. As pesquisas de opinião afirmam que o brasileiro rejeita o mote, mas será que a aversão não se deve, justamente, à falta de obras relevantes sobre o assunto?
Por que não retratamos o Congresso à maneira dos americanos, seja para enaltecê-lo ou dissecá-lo? As ditaduras recorrentes e a instabilidade democrática não ajudaram, mas o que nos impede agora?
O Estado tutela a produção cultural do Brasil. As TVs são concessões públicas dependentes da boa relação com o Planalto. Seja lá o partido que ocupe o trono, é preciso desenvolver um bom diálogo para ver seu direito de transmissão assegurado. E o cinema, assim como o teatro, se sustenta graças à renúncia fiscal.
José Padilha promete, no último plano de "Tropa de Elite 2", chegar a Brasília na sequência da série. O êxito da franquia brinda com esse tipo de liberdade. Mas o tema mereceria o horário nobre da TV, com longos meses para desenvolver a saga de cada facção, cada secretária, cada adjunto de ministro e cada ministro.
Os americanos atingiram um grau de maturidade cívica que lhes permite falar do exercício do poder sem se comprometer com esse ou aquele partido. Aqui, parece impossível tocar no assunto sem ofender as partes. Ainda preservamos a herança pessoal, coronelista.
"House of Cards" é uma aula prática sobre o poder ministrada por um democrata. A série consegue o feito de revirar o bom partido do avesso, sem privilegiar os republicanos. Não há ingenuidade ideológica, divisão entre esquerda e direita, bem e mal. A política segue a sua própria agenda moral, mais próxima de Maquiavel do que de Marx ou Adam Smith.
No dia em que a política brasileira virar matéria de ficção, a democracia terá dado um passo importante por aqui.
Caso aconteça o milagre, o PMDB será o partido mais indicado para protagonizar um folhetim dessa natureza. O PMDB exerce a arte da política por excelência, ocupando todos os cargos estratégicos e participando de todas as decisões importantes, independentemente do rei.
O PMDB é o genérico, o fundamento, o caráter puro da política brasileira. Daria um novelão.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Piaget - Fernanda Torres

folha de são paulo

Piaget
Quando era alegre e jovem, o construtivismo traduzia os valores contrários à nefanda censura
Pirro de Élis, sábio grego que visitou o Oriente na companhia de Alexandre, julgava ser impossível conhecer a verdade absoluta do que quer que seja. Pirro fundou a doutrina do ceticismo, contrária ao dogmatismo.
Toda certeza é perigosa, bem faz o filósofo em desconfiar delas. Para uma mãe, no entanto, é impossível atingir a placidez dos céticos.
A maternidade é irmã da angústia. O antídoto mais comum para a impotência perante o destino, o acaso e as intempéries é a religião. Como alternativa, Pirro sugere um estado de indiferença consciente: a ataraxia.
A pequenez humana requer serenidade. Pirro deve ter aprendido sobre o desapego com os orientais, era homem e não teve filhos. Eu sigo engalfinhada com os dilemas insolúveis, sou mulher, ocidental e mãe de dois. Teimo no ideal.
Ouço os que defendem o ensino tradicional e concordo com os catedráticos, a disciplina é a ponte para o saber. Troco duas ideias com os construtivistas e me convenço de que a cartilha repetida à exaustão é um atentado à criatividade infantil. O espírito investigativo é a porta do conhecimento.
À eficácia relativa das diferentes correntes de educação soma-se a pressão da fluência no inglês. Colégios bilíngues forjam bebês poliglotas, provando que o domínio de um idioma exige prática intensiva na infância. Corra e garanta vaga. A comunicação é a ferramenta do futuro.
Mas o porém de criar um ser alheio à própria cultura e dotado de um português de segunda invade a alma. E volto à estaca zero da incerteza sem fim.
Venho de uma família de artistas autodidatas, franco-atiradores guiados pelo instinto. São péssimos exemplos. Dos parentes, só um primo fez faculdade.
Como se não bastasse a falta de acadêmicos no DNA, sou cria de Piaget, ou do que aqui se convencionou chamar de método Piaget. Quando eu era alegre e jovem, o construtivismo traduzia os valores contrários à nefanda censura. A escola experimental prometia dar aos alunos a liberdade negada aos pais.
Quarenta anos depois, Steven Pinker condena Piaget com a mesma ferocidade com que desdenha de Oscar Niemeyer. Em um discurso disponível no site da TED (fundação privada sem fins lucrativos dedicada à disseminação de ideias), o psicólogo americano, personificação do pragmatismo científico, garante que não há apuro sem treino árduo.
Creio na ciência e no sacrifício, mas o argumento do cientista remete às mães chinesas, fábricas de infantes virtuoses, mas donas de uma severidade que põe em xeque o valor do gênio engendrado a fórceps.
Em "Bouvard e Pécuchet", Gustave Flaubert denuncia as fragilidades da ciência e da arte, fazendo, dos dois personagens centrais, cobaias voluntárias dos compêndios de saber do século 19. Nada escapa: a agricultura, a arqueologia, a política, a literatura, a religião, a medicina.
No capítulo dedicado à educação, os copistas tornam-se preceptores de um casal de irmãos rebeldes. Convencidos de que a boa formação é a única saída para o descaminho da humanidade, aplicam as inúmeras teorias educacionais nos pivetes. Nenhuma age sobre a índole das pestes. Após o fracasso com a matemática, a gramática, a música, a história e a geografia, desistem da experiência ao dar com os pupilos no fogão, cozinhando o gato da casa em água fervente.
Flaubert era cético. E cínico. Morreu de sífilis, contraída nos bordéis que frequentou com afinco, não casou e nunca foi pai. Mais uma vez, é fácil exercer a descrença quando não há crias por perto.
Fui devota de Flaubert na juventude. Hoje, impedida pelo amor materno de ser niilista e mordaz à sua maneira, leio "Os Miseráveis" e invejo o positivismo romântico de Victor Hugo.
A Revolução Francesa é mãe da eloquência de Hugo. Flaubert a admira, embora confesse em "A Educação Sentimental" que não arriscaria uma unha por suas bandeiras.
O mundo anda mais para Flaubert do que para Hugo. Menos dado a grandes causas e mais afeito à ataraxia estatística.
O espírito demolidor do francês é mais fiel à crise moral do presente. Talvez a dificuldade em definir a escola de meus rebentos seja reflexo desta dualidade. Quando nasci, a ideologia fundada em 1798 ainda guiava a política, a economia e a educação.
Não mais.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Fernanda Torres

folha de são paulo

Humilha, São Paulo
Grande parte das fundações culturais brasileiras adquiriu obras com o auxílio das leis de incentivo
Vivo em uma beira de praia na zona rural do país. É a certeza que me vem cada vez que boto os pés em São Paulo.
Subi o planalto para um jantar em benefício da Amfar, organização de apoio à pesquisa da Aids que angaria fundos pelo planeta. Sharon Stone, dando provas de seu QI de mais de 150, comandou a festa.
Belíssima, madura e emocionada, a americana de peitos de Barbie subiu ao palco para comemorar a cura da primeira criança vítima da doença. Há 20 anos como embaixadora da instituição, cargo anteriormente ocupado por Elizabeth Taylor, a estrela mantém uma militância ativa e questionou a Amfar por não se envolver na terapia de bebês.
Em 2008, em Cannes, Sharon cavou US$ 10 milhões (cerca de R$ 20 milhões) em uma noitada semelhante, alavancando o trabalho de cientistas que, hoje, retribuem com a cura da menina do Mississipi.
A musa liderou o leilão com uma categoria assombrosa. Diante da timidez momentânea da plateia, provocava com o vozeirão dolby surround: "Come on, Brazil, show your generosity!". Impossível resistir. Que o diga o empresário que arrematou um beijo de língua de Kate Moss por US$ 45 mil.
A gala acabou com um strip da inesquecível Dita. A dívida moral pelo fausto foi quitada com os 2 milhões de doletas arrecadadas.
Acordei e rumei para o MAC a fim de ver a "Sala de Espera" de Carlito Carvalhosa. No táxi, em um cruzamento dos Jardins, uma escultura de dois ossos gigantes, ladrilhados a la Gaudí, encostados no muro de uma mansão de esquina me chamou a atenção. Ao lado da obra, uma placa: Dog Bar. Era um spa de luxo para cachorros de madame. Só aqui.
A etérea instalação de postes suspensos, "como se estivessem prestes a desencarnar", diz Carvalhosa, já me satisfaria os sentidos. Mas era o dia da abertura do novo prédio do museu, e lá fui eu para o sétimo andar do edifício de Niemeyer, recém-liberto dos labirintos tristes do Detran.
A reforma é exemplar, só falta aparar a grama. Mas o que impressiona é a sensibilidade da curadoria de Tadeu Chiarelli. Foi confiada ao professor doutor em artes plásticas da USP a missão de organizar a exibição permanente do imenso acervo da universidade.
Em vez de ocupar o prédio todo de uma vez, pendurando quadros sem formar um pensamento crítico sobre o que é exposto, o curador optou por começar com uma pequena mostra do que poderemos esperar do MAC.
As 85 obras de "O Agora, o Antes: Uma Síntese do Acervo do MAC USP" propõe um diálogo entre as diversas épocas, estilos e artistas que compõem a coleção.
"Toda obra de arte ganha novas possibilidades de interpretação a partir do espaço que compartilha com outra", avalia Chiarelli na apresentação. "Perturbar e ressignificar verdades consagradas são as funções de uma universidade preocupada com o devir do conhecimento."
Rever "Minha Mãe Morrendo", de Flávio de Carvalho, e saber que ela estará ali sempre que eu precisar, me fez invejar um Estado que conta com pessoas com a formação de Chiarelli, fruto da solidez acadêmica das universidades paulistas.
Muitas das obras expostas pertencem ao espólio do Banco Santos, de Edemar Ferreira, e esperam a decisão da Justiça para definir seu destino. O leilão das peças serviria para cobrir parte da dívida, mas o MAC, que preserva a coleção desde 2005, também se vê como credor e anseia ser ressarcido com parte do precioso arquivo.
Torço pelo MAC. Grande parte das fundações culturais brasileiras adquiriu obras de arte com o auxílio das leis de incentivo. Devolvê-las ao público através de entidades de responsa, como a USP, seria salvá-las do esquecimento.
Chiarelli sabe que a melhor maneira de preservar um patrimônio é expô-lo. As placas de metal informando que certas peças estão sob tutela do MAC, mas fazem parte do ativo do Banco Santos retido na Polícia Federal, completam "O Agora, o Antes", e me deram o gosto de um discreto e imponente ato político.
No adeus, um Bacon de uma dúzia de milhões de dólares, retratando um elefante que atravessa uma floresta escura, diferente de tudo que eu já vi dele, estava lá para quem quisesse ver, na SP-Arte.
Humilha, São Paulo.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Fernanda Torres

folha de são paulo

Vale-TV
O público não está trocando de canal, mas de mídia. Foi-se o tempo dos 100% de ibope
QUANDO EU era pequena, sabia pela voz do Cid Moreira se era hora da janta, pela do Chico Anysio se era hora de dormir, e pelo riso do Dick Vigarista se era hora de ir para a escola. A TV, como os primeiros relógios públicos da idade média, regulava a vida dos brasileiros.
Esse fenômeno não existe mais na geração dos meus filhos. O cotidiano deles é pautado por desenhos animados e filmes, pelos realities e programas de curiosidade científica. Todos veiculados na TV paga.
Mas a TV por assinatura dá traço de audiência no Brasil. Como explicar? Pode ser que minha família faça parte de uma elite sem nenhum significado para a economia, mas sempre que olho o meu guri entretido com o computador e a TV, me pergunto se esse zero está correto.
Os "gatonets" conectam os bairros populares há tempos e nunca foram contabilizados. Para combater as redes clandestinas, comandadas por milícias organizadas, foram oferecidos contratos a um custo de R$ 30 às comunidades pacificadas do Rio de Janeiro.
Que mudança trará a legalização e subsequente inclusão da TV paga nas pesquisas?
O público não está trocando de canal, mas de mídia. Foi-se o tempo dos 100% de ibope. O número de aparelhos ligados segue uma tendência de queda, enquanto os milhares de sites de relacionamento e vídeo games on-line se multiplicam. Em um quadro tão pulverizado, o pequeno resultado tem relevância.
Antes, as empresas de telecomunicações controlavam o conteúdo e a emissão de sinal. Hoje, a telefonia detém a transmissão, enquanto as antigas emissoras se consolidam como produtoras de programação.
A TV por demanda aponta um futuro em que o espectador monta a sua própria grade. Algo já praticado na internet, onde os comerciais são destinado a um público alvo e os navegadores trocam indicações entre si. Porta dos Fundos é um fenômeno de views.
Perde-se por um lado, ganha-se por outro. Uma empresa que produz novelas, séries, programas de esporte e notícia não contará apenas com as 24 horas do dia, os sete dias da semana, ela possuirá um catálogo disponibilizado em incontáveis janelas simultâneas.
A concorrência com os importados será ainda mais dura. As dezenas de seriados americanos entram aqui pagos e com um nível de qualidade que ainda não possuímos. A TV americana está na vanguarda da cultura de massa. É experimental e popular, arriscada e bem-sucedida.
Se a ampliação do mercado não servir para fortalecer o que se faz no Brasil, serviremos apenas de pasto, não criaremos nada capaz de dialogar com o que é feito no resto do planeta.
Na contramão da ameaça estrangeira, raras multinacionais coproduzem séries brasileiras. É um modelo. Mas a maioria dos programas nacionais exibidos na TV fechada é de entrevistas, realities e alguma ficção de baixo custo. Ela ainda é um celeiro de ideias subutilizado no Brasil.
A ministra Marta Suplicy voltou atrás na decisão de incluir a TV por assinatura na lista de beneficiados do Vale-Cultura. A classe artística respirou aliviada, era uma competição desleal. Mas a proposta, não sei se consciente, ou inconscientemente, fez circular a ideia do Vale-TV e mostrou que o MinC deseja influir no setor.
Caso o faça, é preciso cuidado para que não só as duas extremidades da transação, o povo e as "über" "teles", saiam ganhando, mas também a faixa intermediária, que inclui os grandes e pequenos produtores de TV.
O modelo de atender à base e ao topo da pirâmide social, jogando o miolo para escanteio, faz parte da nova ordem econômica mundial.
Remando contra a maré, François Hollande conseguiu que o Google ressarcisse os periódicos franceses pela exibição de links de notícia nos resultados de busca. Foi firmado um acordo para aumentar a receita de publicidade on-line e criou-se um fundo de € 60 milhões (cerca de R$ 156 milhões) para fortalecer as mídias digitais.
É preciso preservar o mundo material. É ser Hollande, ou assistir, agora com a televisão, único setor cultural do país que vingou como negócio, a tragédia vivida pela música. Nela, ganharam as empresas de tecnologia e o internauta, enquanto a indústria fonográfica amargou perdas irreparáveis.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Fernanda Torres

folha de são paulo

Jane Eyre
A igualdade nas relações entre senhor e escravo, entre homem e mulher, sustenta o duelo verbal
Trabalho em um roteiro de terror. A conselho materno, aluguei uma adaptação de 2001 do romance de Charlotte Brönte, "Jane Eyre", que poderia vir a servir de referência.
O filme tem direção segura de Cary Fukunaga, uma baita fotografia do brasileiro Adriano Goldman e traz Michael Fassbender e Judi Dench no elenco. Não li o livro, mas percebe-se, na dubiedade, na crueza e no desamparo dos personagens, a boa literatura.
Seduzida pelo ameaçador patrão e aprisionada à posição de serva, Eyre diz se dirigir não à pessoa do poderoso Rochester, mas ao seu espírito. "É o meu espírito que fala ao seu", diz ela, eliminando, entre os dois, as barreiras sociais, os impedimentos formais e a cerimônia entre gêneros.
A igualdade nas relações entre senhor e escravo, entre homem e mulher, sustenta o ferino duelo verbal. Para alcançá-lo, é preciso falar ao espírito.
Michael Fassbender é um ator vertical. Seu Rochester é vil e apavorante, e não menos violento quando apaixonado. Ataca baixo e pausadamente a longa fala em que confessa sentir-se atado a Eyre por um fio ligado ao plexo, e teme que a distância arrebente o fio, deixando aberta uma ferida incurável.
Ninguém diz isso a passeio. É preciso estar imbuído de alguma grandeza, ser capaz de delinear a vastidão da dependência amorosa sem cair em choros fúteis. Cabe ao intérprete investir no caráter trágico, viril do romantismo.
Orson Welles, em 1943, foi o Rochester de Joan Fontaine. William Hurt o encarnou em 1996, sob a direção de Franco Zeffirelli, ao lado de Charlotte Gainsbourg. Fui atrás de Welles, mas só encontrei trechos na internet -na falta, me contentei com Hurt.
Vale o exercício. Assista Fassbender, Welles e, depois, Hurt.
Welles é louco, tem a coragem do canastrão, a voz de um cantor de ópera e a esperteza do gênio. É dele o melhor beijo final, um primor de voracidade, que Fassbender, contrário a todas as expectativas, executa reservado e cortês.
Hurt age como se estranhasse o próprio castelo. Nota-se que não é nobre e muito menos inglês. Faz de Rochester um homem amuado, ranzinza e abatido.
De cócoras, abraçado aos joelhos em posição fetal, dá as costas para Eyre, enquanto declama indefeso a jura de amor sobre o fio que o liga à jovem preceptora.
Gainsbourg tem mais pena do que desejo por Hurt. Falta ao ator a vilania do aristocrata e sobra autopiedade burguesa.
Minha mãe costuma dizer que, com raras exceções, os americanos tendem a ser cronísticos. Não há transcendência, diz ela, se chamar um psicanalista acaba o problema dramático. A melancolia do Rochester de Hurt seria aliviada com um antidepressivo. A fúria de Welles, exceção à regra, e Fassbender, não.
Essa divisão entre o que é crônica, trama, e o que é pathos, drama, norteia o julgamento crítico de dona Fernanda. E com ela fui assistir "A Hora mais Escura", de Kathryn Bigelow.
O filme busca a neutralidade dos fatos. É jornalístico. Faz a retrospectiva dos dez anos que levaram até a captura de Osama bin Laden, encena torturas e atentados realistas, além de uma impressionante reconstituição da emboscada ao esconderijo do terrorista. Mas os cabelos anelados da protagonista, alisados na chapinha na passagem de tempo, denunciam a frieza da obra.
Existe um quê de "24 Horas", de "Supremacia Bourne", de 007 em "A Hora Mais Escura". Sua eficiência narrativa satisfaz, e muito, o meu apreço por filmes de ação, mas carece de uma visão humana da Guerra Santa.
Falta o Romantismo.
O que Rochester diz a Eyre bem caberia na boca do torturador. "Você não é naturalmente austera, não mais do que eu naturalmente vil." Ou do torturado. "Você é capaz de se dirigir a mim como a um igual?"
Talvez por isso, a cena em que a agente olha o cadáver do homem que procura há uma década, que ordenou a morte de milhares de pessoas e acabou com a vida de muitos de seus amigos, surge protocolar. Ela está certa no lugar em que está, é bem enquadrada, sóbria, econômica, mas não há catarse.
Falta a doença do Romantismo.

    sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

    Fernanda Torres

    FOLHA DE SÃO PAULO

    Pagãos
    Passei dias atormentada com a ceia, pensando no quanto a arte perdeu terreno para a tecnologia
    Um rapaz de 15 anos, abastado, inteligente e educado, me disse que pagar R$ 0,99 por uma música na internet era uma exploração sem precedentes.
    Graças a um certo atraso geracional, vivo alheia às questões de direitos autorais das novas mídias, mas, dessa vez, me senti algo indignada. Rebati perguntando o porquê de ele achar correto o preço de uma barra de chocolate e se sentir tão ultrajado com o singelo custo da composição. Ele respondeu que não teria como arcar com as mais de 2.500 músicas arquivadas no seu drive.
    Sugeri que quem possui um computador caríssimo, jeans custosíssimos, além de iPads, iTouches e afins na sua parafernália de entretenimento, tem, sim, condições de arcar com o ônus de uma canção.
    Com a calma de quem vive uma realidade que eu desconheço, o infante me explicou que a internet dá ao artista a chance de divulgar seu trabalho e não há lógica em cobrar por uma oportunidade.
    Um outro jovem, esse com tendências mais à esquerda do que o primeiro, completou aos brados que o verdadeiro artista não trabalha por dinheiro e lembrou que os pobres devem ter acesso à cultura tanto quanto os endinheirados. Essa alegação empurrou a discussão para o campo da insensibilidade social, emudecendo a velha guarda.
    Os adultos só tiveram chance porque a babá de um dos imberbes se manifestou, afirmando que toda a vez que um rico quer defender o seu ponto de vista apela para o direito dos menos favorecidos. "Pobre não tem computador." Lembrou ela.
    Animados com o apoio da classe trabalhadora, os de maior contra-atacaram dizendo que o que parecia cultura para todos não passava de uma apropriação indevida das grandes corporações que faturavam trilhões em cima do conteúdo de terceiros.
    "E os milhões que os cantores acumulam nos shows?" Devolveram os adolescentes. "E o direito autoral dos compositores?!" Vociferaram os mais velhos. "Eles não entendem", concluíram os menores, como se os nascidos antes da virada do milênio fossem matusaléns sem cura, presos ao tempo em que era possível numerar o vinil, o livro ou o celuloide.
    Um dos poucos antenados da segunda idade lembrou que Gilberto Gil, o mais apto membro da MPB a lidar com as novas diretrizes do mercado fonográfico, liberou parte de sua obra para ser "downloadada" de graça, ao mesmo tempo que protegeu o melhor de sua discografia da ferocidade da pirataria. Hipócrita! Bradou ultrajado o mais à esquerda dos pequenos.
    A noite terminou em lágrimas, com os pais afrontados com as crias e os de menor aviltados pelo atraso das gerações pregressas.
    Passei dias atormentada com a violência da ceia, pensando no quanto a arte perdeu terreno para a tecnologia. E assim entramos na Scuola di San Rocco, em Veneza, onde Tintoretto preencheu cada milímetro de parede do exuberante prédio renascentista com a sua extraordinária versão da Bíblia. E descemos a bota com os rebentos, arrastando-os por capelas cobertas por Giotto, Michelangelo, Da Vinci e
    Fra Angelico.
    É impressionante como esse levante de artistas, bancados pela igreja e por "dodges" e príncipes alinhados com o Papa, conseguiram se superar diante de uma restrição temática tão acirrada. E tome madona, crucificação e santa ceia, ressurreição e batismo, manjedoura e Menino Jesus.
    A arte sempre caminhou entre a marginalidade e o sistema. O século 20 foi o último a viver sobre a influência do humanismo, cuja explosão ocorreu lá, no renascimento. Hoje, vivemos um ateísmo tecnológico sem precedentes, tão bem representado pela indiferença do rapaz que despreza o conteúdo artístico e venera sua nave virtual.
    Fiz essa viagem para apresentar às crianças o berço do Ocidente, que pode até ter sido a Grécia, mas que se desenvolveu à plena potência na Itália. Depois de uma via crucis por igrejas, notei o ar de vingança no rosto dos moleques ao adentrarem o Coliseu.
    O sofrimento cristão é mesmo de uma melancolia sem fim, admirar o vigor das estátuas realistas de Trajano, Adriano e Marco Aurélio encoraja o espírito. Mas as novas gerações não se miram nem em Roma nem em Cristo, seu paganismo é de outra ordem.
    O iPhone é a nova Pietá.

      sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

      Fernanda Torres

      FOLHA DE SÃO PAULO

      "Ben-Hur"
      A posição do dominante e do dominado independe de credo ou etnia. É uma questão de ocasião histórica
      EU SEI que não é de bom tom gostar de Charlston Heston. Mas como controlar as impressões da infância? Amo Charlston Heston à loucura, especialmente a fase bíblica e a sua filmografia niilista, pós-Guerra Fria, comendo Soylent Green e apanhando no "Planeta dos Macacos".
      Revi "Ben-Hur" com meu filho pequeno. Os olhos nórdicos de Heston contrastaram com a morenice do Crescente Fértil, seu corpo musculoso arqueou, colapsando a cabeça sobre o peito, enquanto elevava a corcova para sustentar o peso do sofrimento humano. Heston se contorce quando ama e quando odeia e se desloca em câmera lenta, como se o ar fosse feito de gelatina.
      São cenas de uma dificuldade ímpar para o intérprete. Falar em pausas solenes, reagir em "big close" à notícia de que a mãe e a irmã contraíram lepra na masmorra, exibir-se em tanga acorrentado ao remo e conduzir a biga. A biga! Quem da Royal Shakespeare Company comandaria os cavalos com a dramaticidade de Heston?
      A representação mais poética que o cinema já produziu do mito da caverna de Platão está em "Ben-Hur". Do fundo escuro da gruta dos leprosos, uma gigantesca boca negra exibe uma paisagem ao sol, estática, como nuvem, em contraste com o breu da cova. A mãe leprosa balbucia um "tenho medo", enquanto a futura nora a leva em direção ao luminoso Paraíso. "O mundo é muito mais do que se vê", assegura Esther.
      Chorei e emendei com "Os Dez Mandamentos", onde o saiote egípcio e a peruca em tufo lateral não ajudam o ianque. Yul Bryner leva vantagem em trajes típicos. Mas o anacronismo vai além das vestes.
      As convicções pessoais do astro contradizem o discurso misericordioso de seus personagens. A águia romana fez ninho na América e Heston, bélico e republicano, encarna seu poderio. Ele é mais alto, mais forte e atlético do que todos os figurantes a quem chama de sua gente.
      Após o fim da Segunda Guerra, os americanos foram elevados à condição de escolhidos de Deus.
      Heston encarna Judá, o príncipe hebreu, com a convicção de que representa o bem e a justiça. Mas a mesma potência que ajudou a derrotar Hitler arrasou Hiroshima com a determinação das Legiões e, depois, exportou o "american way of life" à maneira de Roma.
      Em "A Vida de Brian", obra prima dos Monty Python, radicais palestinos debatem sobre a vilania do Império de César. O que Roma nos deu? Indaga um revolucionário.
      Estradas, responde alguém. E aquedutos! Mais outro. A arquitetura! Saneamento básico, educação e progresso! A arte e os banhos! A lista não tem fim.
      O movimento sionista, fundado para dar um ponto final às perseguições milenares às juderias, recebeu o apoio de homens como o barão de Rothschild, cujas doações à causa arremataram 125 mil acres de terra prometida.
      Israel trouxe desenvolvimento e riqueza para a região, mas também segregação, injustiça, insatisfação e revolta. É o enredo de "Ben-Hur" só que ligeiramente fora de ordem, com os judeus no papel de romanos e os árabes no papel de judeus. É estranhíssimo.
      A maior afronta do mundo árabe, segundo Hany Abu Assad, meu amigo palestino de Nazaré, é resistir ao consumismo imposto pelo Ocidente. Sua postura é similar à de Ben-Hur perante Messala, que recusa a exigência do tribuno de se transformar em romano. Hany diz que a burca é uma bênção para as mulheres feias e provoca afirmando que a escravidão da eterna juventude, pregada pela Max Factor, é um mal igualmente deplorável.
      E ainda lança uma profecia digna das Sete Pragas do Egito: as catástrofes naturais obrigarão o homem a retornar à sua origem primitiva, na qual pastores, agricultores e artesãos resistirão às vacas magras enquanto os que sucumbiram à luxúria da modernidade, não.
      Dá o que pensar. Eu, por preconceito gerado pelo fato de os muçulmanos não se parecerem comigo, acreditei que o terno bem cortado de Bashar-al-Assad e o Louboutin de sua esposa seriam garantias de civilidade, mas sua elegância inglesa foi proporcional à ferocidade.
      A posição do senhor e do escravo, do dominante e do dominado, independe de credo ou etnia. É tudo uma questão de ocasião histórica. Basta ver "Ben-Hur" com a perspectiva dos últimos 50 anos.

      sexta-feira, 23 de novembro de 2012

      Fernanda Torres


      O Mercador de Veneza
      Como em "Édipo Rei", aquele que mais procura a justiça descobre ser ele mesmo o culpado
      Cruzei com Barbara Heliodora em uma estreia de teatro. Barbara declamou para mim um trecho da cena um do quarto ato de "O Mercador de Veneza", onde Pórcia reflete sobre a cobrança de uma libra da carne do devedor, feita pelo judeu agiota Shylock: "A graça do perdão não é forçada; / Desce dos céus como uma chuva fina / Sobre o solo; abençoada duplamente, / Abençoa quem dá e quem recebe".
      "Vou mandar para o Joaquim Barbosa", concluiu a crítica com ironia. Barbosa anda mesmo impiedoso na sua dosimetria.
      É difícil acreditar que José Dirceu vá entrar para a história como o maior corrupto que esse país já conheceu. Não é. Talvez, Dirceu seja o mais heroico dos revolucionários, ao aceitar a culpa para salvar o partido. Ou o mais perigoso dos políticos, ao conduzir um esquema para perpetuar o PT no poder pelas próximas décadas.
      A alegação de que o caixa dois não é corrupção demonstra o quanto o PT operou dentro das controversas regras monetárias que imperam na política. Caso permanecesse fiel à retidão acusatória dos tempos de oposição, o partido enfrentaria o paradoxo do inflexível delegado de "Medida por Medida", do mesmo W. Shakespeare, que descobre ser impossível governar sem violar a lei.
      É melhor fazer cumprir um mandamento que a sociedade não respeita, ou compactuar com o malfeito que não se pode erradicar?
      O valerioduto mineiro do tucano Eduardo Azeredo, tudo indica, serviu de modelo para uma estratégia de âmbito nacional. É grave. Mas por que o PT encara o paredão enquanto as acusações ao PSDB correm o risco de prescrever? Estaria certo Dirceu, ao defender a teoria conspiratória? Ou foi obra do soberano acaso?
      Como em "Édipo Rei", aquele que mais procura a justiça descobre ser ele mesmo o culpado.
      Perguntei a amigos informados o porquê de o mensalinho mineiro ter morrido no tempo, enquanto o mensalão enfrenta a fúria exemplar. Os analistas de quintal apontam para mais de uma razão.
      O PSDB foi obrigado a seguir o moroso caminho da Justiça comum, enquanto o PT foi julgado pelo Supremo. Parte dos magistrados assumiu o cargo durante o governo Lula e, presumivelmente, as chances dos processados, ali, seriam maiores.
      A indignação de Gilmar Mendes com o ex-presidente, provocada pela insinuação de que o ministro teria visitado a Alemanha na companhia de Demóstenes Torres, envolvido no caso Cachoeira, teria contribuído para o endurecimento do STF. E, também, a desastrosa defesa do caixa dois.
      A sequência lógica, repartida em núcleos, imposta pelo relator do processo, tornou difícil a contestação dos fatos e o resultado foi o derramamento de penas.
      Dirceu insiste que o tribunal agiu sob pressão da opinião pública atiçada pela imprensa. Mas quem soltou as feras no Coliseu romano foi Roberto Jefferson, de olho roxo, cantando vingança, depois de dar com a língua nos dentes em cadeia nacional. O tom de escândalo não partiu das Redações. O termo mensalão é de autoria do deputado.
      A crítica mais pertinente sobre o comportamento dos meios de comunicação eu ouvi de Jânio de Freitas, no "Roda Viva". Segundo o oráculo, um veículo pode e deve tomar posição, mas não tem o direito de fingir neutralidade.
      Dirceu e Genoino foram enredados porque soava absurda a explicação de que Delúbio Soares teria sido, à revelia do partido, o arquiteto solitário dos empréstimos milionários e da negociação com a bancada. Mesmo sem provas irrefutáveis, foi preciso responsabilizar o alto escalão. Os autos levaram a isso.
      O Partido dos Trabalhadores sempre se viu como o partido do povo brasileiro. Para o PT, o PT é o povo, nascido dos sindicatos e da mão de obra que ergueu o país. Havia uma simbiose entre a vontade do partido e a da nação que legitimava, para alguns envolvidos, as transações criminosas.
      Nos últimos dez anos, o PT sofreu o linchamento de quadros do calibre de Palocci, Gushiken, Erenice Guerra e sempre se manteve coeso. Se serve de consolo, o mesmo não se pode dizer do PSDB.
      A herança guerrilheira de muitos de seus fundadores sabe que o projeto comum está acima do indivíduo, mesmo quando o custo é uma libra da carne em torno do coração.
      "Data venia".