Jane Eyre
A igualdade nas relações entre senhor e escravo, entre homem e mulher, sustenta o duelo verbal
Trabalho em um roteiro de terror. A conselho materno, aluguei uma adaptação de 2001 do romance de Charlotte Brönte, "Jane Eyre", que poderia vir a servir de referência.O filme tem direção segura de Cary Fukunaga, uma baita fotografia do brasileiro Adriano Goldman e traz Michael Fassbender e Judi Dench no elenco. Não li o livro, mas percebe-se, na dubiedade, na crueza e no desamparo dos personagens, a boa literatura.
Seduzida pelo ameaçador patrão e aprisionada à posição de serva, Eyre diz se dirigir não à pessoa do poderoso Rochester, mas ao seu espírito. "É o meu espírito que fala ao seu", diz ela, eliminando, entre os dois, as barreiras sociais, os impedimentos formais e a cerimônia entre gêneros.
A igualdade nas relações entre senhor e escravo, entre homem e mulher, sustenta o ferino duelo verbal. Para alcançá-lo, é preciso falar ao espírito.
Michael Fassbender é um ator vertical. Seu Rochester é vil e apavorante, e não menos violento quando apaixonado. Ataca baixo e pausadamente a longa fala em que confessa sentir-se atado a Eyre por um fio ligado ao plexo, e teme que a distância arrebente o fio, deixando aberta uma ferida incurável.
Ninguém diz isso a passeio. É preciso estar imbuído de alguma grandeza, ser capaz de delinear a vastidão da dependência amorosa sem cair em choros fúteis. Cabe ao intérprete investir no caráter trágico, viril do romantismo.
Orson Welles, em 1943, foi o Rochester de Joan Fontaine. William Hurt o encarnou em 1996, sob a direção de Franco Zeffirelli, ao lado de Charlotte Gainsbourg. Fui atrás de Welles, mas só encontrei trechos na internet -na falta, me contentei com Hurt.
Vale o exercício. Assista Fassbender, Welles e, depois, Hurt.
Welles é louco, tem a coragem do canastrão, a voz de um cantor de ópera e a esperteza do gênio. É dele o melhor beijo final, um primor de voracidade, que Fassbender, contrário a todas as expectativas, executa reservado e cortês.
Hurt age como se estranhasse o próprio castelo. Nota-se que não é nobre e muito menos inglês. Faz de Rochester um homem amuado, ranzinza e abatido.
De cócoras, abraçado aos joelhos em posição fetal, dá as costas para Eyre, enquanto declama indefeso a jura de amor sobre o fio que o liga à jovem preceptora.
Gainsbourg tem mais pena do que desejo por Hurt. Falta ao ator a vilania do aristocrata e sobra autopiedade burguesa.
Minha mãe costuma dizer que, com raras exceções, os americanos tendem a ser cronísticos. Não há transcendência, diz ela, se chamar um psicanalista acaba o problema dramático. A melancolia do Rochester de Hurt seria aliviada com um antidepressivo. A fúria de Welles, exceção à regra, e Fassbender, não.
Essa divisão entre o que é crônica, trama, e o que é pathos, drama, norteia o julgamento crítico de dona Fernanda. E com ela fui assistir "A Hora mais Escura", de Kathryn Bigelow.
O filme busca a neutralidade dos fatos. É jornalístico. Faz a retrospectiva dos dez anos que levaram até a captura de Osama bin Laden, encena torturas e atentados realistas, além de uma impressionante reconstituição da emboscada ao esconderijo do terrorista. Mas os cabelos anelados da protagonista, alisados na chapinha na passagem de tempo, denunciam a frieza da obra.
Existe um quê de "24 Horas", de "Supremacia Bourne", de 007 em "A Hora Mais Escura". Sua eficiência narrativa satisfaz, e muito, o meu apreço por filmes de ação, mas carece de uma visão humana da Guerra Santa.
Falta o Romantismo.
O que Rochester diz a Eyre bem caberia na boca do torturador. "Você não é naturalmente austera, não mais do que eu naturalmente vil." Ou do torturado. "Você é capaz de se dirigir a mim como a um igual?"
Talvez por isso, a cena em que a agente olha o cadáver do homem que procura há uma década, que ordenou a morte de milhares de pessoas e acabou com a vida de muitos de seus amigos, surge protocolar. Ela está certa no lugar em que está, é bem enquadrada, sóbria, econômica, mas não há catarse.
Falta a doença do Romantismo.
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