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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Entrevista Antonio Patriota - Samy Adghirni

folha de são paulo
Sanções contra o Irã limitam comércio do país com Brasil
para chanceler, medidas são prejudiciais ao povo iraniano
SAMY ADGHIRNIDE TEERÃ
O Brasil considera ineficientes e nefastas contra a população as sanções unilaterais impostas ao Irã pelos EUA e por aliados, segundo o chanceler Antonio Patriota.
Em entrevista à Folha em Teerã, onde participou da posse do presidente Hasan Rowhani, o ministro disse que as sanções afetam interesses econômicos do Brasil.
Folha - Como foi a visita?
Antonio Patriota - A posse de Rowhani representa uma renovação. Fui recebido por Ali Akbar Salehi [chanceler que deixou o cargo] e conversei com o novo chanceler [Mohamad Javad Zarif]. E cumprimentei pessoalmente Rowhani. Foi uma demonstração de apreço.
Ficou para trás o estranhamento no início do governo Dilma Rousseff?
Sempre houve um relacionamento correto com o Irã.
Até no caso do diplomata iraniano em Brasília [acusado de molestar crianças numa piscina], Salehi foi receptivo e deu encaminhamento que nos pareceu adequado.
Há grande sensibilidade no Irã sobre os direitos humanos. No encontro com Salehi, suscitei a questão, encorajando o país a cooperar com o sistema multilateral [Teerã é acusado de não cooperar com investigações da ONU].
O Brasil votou a favor de criar o cargo de relator especial para o Irã. Isso serve para fortalecer o sistema multilateral e obter garantia contra politização indevida.
Também acho equivocada a atitude de Israel de não se ter submetido à revisão periódica universal no Conselho de Direitos Humanos [que visa a submeter todos os países à avaliação sobre a questão].
Há ainda progressos inegáveis em educação e mortalidade infantil.
A ênfase na relação Brasil-Irã hoje está no comércio?
Num momento em que o nosso superavit comercial com o mundo diminui, negócios com o Irã continuam num patamar elevado.
Mas o comércio está limitado pelas sanções unilaterais, um modo de proceder com o qual não concordamos. O Brasil defende que sanções só devam ser adotadas no âmbito da ONU. Sanções unilaterais criam entraves financeiros e de crédito, limitando a cooperação econômica.
Valeu a pena o acordo nuclear de 2010, costurado por Brasil e Turquia, que exigiu muito esforço, gerou atrito com os EUA e acabou dando em nada?
Foram as abordagens alternativas ao acordo que não deram em nada. Houve críticas contra um esforço dentro da legalidade internacional destinado a revisitar uma medida de fortalecimento de confiança [envio do urânio altamente enriquecido para fora do Irã] e obedecendo a parâmetros estabelecidos pelas próprias potências.
Críticos disseram que seria mais produtivo adotar mais sanções. Três anos depois, novas sanções não produziram nenhum resultado e a abordagem das potências hoje é semelhante àquela de Brasil e Turquia. Hoje não se consegue um acordo de compromisso do governo iraniano. O entendimento de 2010 foi um marco na busca de uma solução pacífica.
E a decisão do Congresso dos EUA de iniciar, dois dias antes da posse de Rowhani, trâmites para novas sanções?
Não vou me pronunciar sobre as medidas, sobretudo porque ainda não têm efeito.
Esperamos que o comportamento iraniano e as reações de outros países caminhem rumo à negociação. Essa questão está inscrita na agenda do Conselho de Segurança da ONU por conta das sanções multilaterais que, diga-se de passagem, se restringem a aspectos diretamente associados às alegações de fins não pacíficos do programa nuclear iraniano. Já sanções unilaterais geram efeito negativo sobre a vida da população iraniana.
Senado dos EUA pressiona Obama por punições ao Irã
DE TEERÃ
Na contramão dos acenos apaziguadores generalizados acerca do novo presidente iraniano, Hasan Rowhani, a maioria dos senadores americanos cobrou ontem de Barack Obama que imponha novas sanções e reitere a ameaça militar contra Teerã.
"Senhor presidente, pedimos que o senhor renove o sentido de urgência do processo", disseram 76 dos 100 membros do Senado em carta enviada à Casa Branca.
Tanto rivais republicanos quanto aliados democratas assinaram o documento.
A carta surge um dia após a Casa Branca aceitar dialogar com Rowhani, desde que ele cumpra com "obrigações internacionais."
EUA e aliados acusam o Irã de fabricar secretamente um arsenal nuclear, o que o país persa rejeita.
Um dia após propor ao Parlamento uma equipe ministerial dominada por tecnocratas e pragmáticos, Rowhani escolheu como primeiro vice-presidente o reformista Eshaq Jahangiri, num aceno aos reformistas pró-Rowhani.
AHMADINEJAD
O ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad integrará um dos principais órgãos consultivos do país, anunciou ontem o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei.
"Considerando sua ampla experiência adquirida durante oito anos de dignos esforços, nomeio o senhor membro do Conselho de Discernimento", disse o líder.
O conselho reúne 38 personalidades encarregadas de assessorar Khamenei e arbitrar desacordos entre o Legislativo e o Conselho de Guardiães da Revolução, órgão que avalia a conformidade das leis aos ideais revolucionários de 1979. (SA)

domingo, 30 de junho de 2013

Novo líder do Irã defende liberdades individuais a jovens

folha de são paulo
Humilhar as pessoas não é algo aceitável, mas notificar educadamente é correto', diz Rowhani durante discurso
Presidente eleito diz que política de 'moderação' usada na campanha será aplicada também nas questões externas
SAMY ADGHIRNIDE TEERÃO presidente eleito do Irã, Hasan Rowhani, defendeu ontem mais liberdades individuais, principalmente para jovens, e reiterou que a política de "moderação" prometida durante a campanha deverá ser aplicada também na política externa.
"Devemos falar com meninos e meninas da mesma maneira com que falamos aos nossos filhos. A dignidade das pessoas deve ser preservada", disse Rowhani, um clérigo xiita conhecido por posições conciliadoras, em discurso transmitido pela TV.
A declaração foi uma crítica ao aumento da repressão moral desde que o atual presidente, o conservador Mahmoud Ahmadinejad, chegou ao poder, em 2005.
Com patrulhas espalhadas pelo país, a polícia da Orientação Islâmica tornou-se cada vez mais impopular por prender moças cuja aparência for considerada imprópria para os padrões legais do Irã.
Há abundantes relatos de abuso policial, inclusive humilhações e agressões verbais por parte das policiais mulheres encarregadas de prender quem estiver vestida com véu supostamente incorreto, com excesso de cores ou usando maquiagem.
"Humilhar as pessoas não é aceitável, mas notificar educadamente é correto", disse Rowhani, num aparente esforço para não alienar setores da sociedade opostos à liberalização dos costumes.
Como parte desse mesmo aceno, ele prometeu incluir conservadores em seu gabinete para formar um governo de unidade nacional.
Mas o alvo principal do discurso de ontem parecia claramente ser a parcela da sociedade contrária à atual política, que mescla repressão interna e retórica abrasiva na diplomacia.
"Nesta eleição, as pessoas disseram: queremos mudança'. (...) A melhor linguagem popular é a voz das urnas", afirmou Rowhani, que tomará posse em agosto.
O presidente eleito voltou a mencionar a ideia, martelada ao longo da campanha, de que a adoção de uma nova agenda externa de "moderação" ajudaria a aliviar as sanções ao programa nuclear iraniano, que causam desemprego e inflação.
Mas Rowhani insistiu em que isso não significa "submissão" ou "passividade" diante da pressão ocidental, corroborando a previsão pela qual ele será mais propenso a eventuais concessões, mas não suspenderá o enriquecimento de urânio.
Céticos lembram que decisões sobre o programa nuclear cabem ao líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, adepto da linha dura nas negociações.
Mas analistas enxergam a bênção do regime à eleição de Rowhani como possível sinal de mais disposição para um acordo.

    domingo, 5 de maio de 2013

    Depois da Primavera - Samy Adghirni

    folha de são paulo

    REPORTAGEM
    Depois da Primavera
    Al Jazeera English tenta recobrar credibilidade
    SAMY ADGHIRNI
    RESUMO
    A TV Al Jazeera quer fazer de seu serviço em inglês uma porta de entrada para o Ocidente. Sua imagem de independência, porém, foi posta em xeque após mostras de parcialidade ao cobrir conflitos na Síria e no Bahrein, aliados ao Qatar, petromonarquia absolutista que sedia a TV e tem a maior renda per capita mundial.
    -
    Num fim de tarde de agosto de 2011, quando os rebeldes líbios já haviam tomado o palácio do ditador Muammar Gaddafi em Trípoli, uma equipe da Al Jazeera English descansava no lobby de um hotel de luxo na cidade. Um produtor desceu do quarto e juntou-se aos colegas. "Vocês não vão acreditar no que estava passando na CNN", lançou, ao se acomodar à mesa. "Uma reportagem sobre o zoológico de Trípoli!". Risada geral.
    O rapaz emendou: "Enquanto a gente acompanhava os rebeldes hoje de manhã, fazendo imagens exclusivas de combates na periferia, os americanos estavam empacados, sem conseguir nada melhor do que filmar leões enjaulados". Todos concordaram: a Al Jazeera estava deixando para trás os demais canais internacionais de notícia. E a conversa mudou de rumo.
    Dois meses depois, a Al Jazeera anunciava, em primeira mão, a morte de Gaddafi nas mãos de insurgentes.
    Desde 2010, a Primavera Árabe tem feito mais do que projetar a emissora de volta ao centro das atenções mundiais, de onde havia sido deslocada desde a "guerra ao terror" de George W. Bush (2001-09). As revoltas selaram o ápice de reconhecimento popular e profissional nos 17 anos de vida do canal fundado pela monarquia do Qatar, um minúsculo país cujo território equivale à metade do Estado de Sergipe abençoado com a terceira maior reserva de gás natural do mundo.
    Com recursos ilimitados e domínio sem igual dos temas regionais, a estação percebeu antes de todo o mundo a magnitude da revolta na Tunísia, em dezembro de 2010, e humilhou a concorrência na cobertura da insurreição no Egito, um mês depois.
    Enquanto suas acanhadas rivais árabes insistiam em negar a realidade, a Al Jazeera capitalizava a imagem de primeira TV árabe "independente" e escancarava o terremoto social e geopolítico em curso. Para acompanhar as revoltas, milhões de lares no Oriente Médio sintonizavam a emissora, cujo nome significa "a ilha".
    O canal reinava também na internet, superando o "New York Times" em acessos diários graças aos blogs ao vivo e arrebanhando multidões de seguidores no Twitter e no Facebook. Internautas eram estimulados a postar vídeos e informações, criando uma fonte constante de notícias.
    Fora do mundo árabe, as atenções recaíram sobre a outra Al Jazeera, em inglês, criada sem grande repercussão em 2006. Presente em 130 países, ainda não tem distribuição no Brasil. Em árabe ou em inglês, as reportagens não escondiam a simpatia pelos protestos, o que retroalimentava o fervor das massas árabes, submetidas, desde a Independência, conquistada meio século antes, a regimes opressores, incompetentes e corruptos.
    Detestados pelos regimes ainda em vigor, profissionais da Al Jazeera eram espancados e presos em Túnis na e no Cairo, sentindo na pele o drama dos manifestantes. Algo profundo estava acontecendo, e a TV do emir que queria ser influente e amado na região era parte integral da mudança.
    Em março de 2011, a então chefe da diplomacia americana, Hillary Clinton, engoliu a seco a queda de amigos ditadores na Tunísia e no Egito e disse que a Al Jazeera mostra "real news" --notícias de verdade. O canal, enfim, se livrava do estigma de "TV do Bin Laden".
    As constantes gravações enviadas por jihadistas, entre os quais o próprio Bin Laden, a seus correspondentes e reproduzidas mundo afora lhe rendeu a pecha de "porta-voz da Al Qaeda", apesar dos laços privilegiados de Bush com o emir do Qatar, Hamid bin Khalifa al Thani. O presidente republicano nunca sinalizara arrependimento pelos bombardeios americanos que destruíram escritórios da Al Jazeera no Afeganistão e no Iraque, em 2001 e 2003, respectivamente --este último tendo matado um jornalista e ferido outro.
    A coroação mais vistosa --o reconhecimento dos pares americanos-- veio em seguida. Naquele mesmo 2011, a escola de jornalismo da Universidade Columbia, símbolo máximo de prestígio no "métier", entregou seu prêmio anual à Al Jazeera English pela cobertura dos protestos.
    "As revoltas árabes foram, sem dúvida, uma oportunidade para nós. Era uma história enorme, e todo mundo queria entender o que estava realmente acontecendo", me disse o britânico Al Anstey, 46, diretor geral do canal em inglês, no sofá de sua espaçosa sala, no mezanino da redação central, em Doha. Veterano das gigantes agências noticiosas Reuters e Associated Press, Anstey é um britânico alto e cordial, que naquela manhã usava paletó sem gravata. "A Primavera Árabe trouxe muita gente até nós, e muitos ficaram."
    No calor das mudanças que pipocavam pela região, com revoltas derrubando autocratas e deflagrando guerras civis, pouco importava se a opinião pública árabe soubesse desde sempre que a Al Jazeera não passava de um instrumento de prestígio para o Qatar.
    Na Líbia, os rebeldes agitavam a bandeira roxa e branca qatariana, enquanto caças enviados por Al Thani engrossavam os bombardeios ocidentais a Trípoli. A mesma emissora que passara anos militando contra intervenções estrangeiras no Oriente Médio agora participava de um ataque internacional para derrubar Gaddafi.
    Naquele momento, no entanto, não fazia diferença se a emissora em árabe chamava as forças leais ao regime de "milícias pró-Gaddafi" e as vítimas rebeldes de "mártires". O que valia era a luta pela liberdade, martelada na tela por analistas e âncoras como causa comum a os povos da região. O Qatar e sua TV internacional pareciam estar do lado certo da história.
    BAQUE
    Essa percepção popular sofreu um primeiro baque com a eclosão, ainda no primeiro semestre de 2011, dos protestos no Bahrein, pequena e abastada petromonarquia do golfo Pérsico. O cenário se repetia: protestos em massa contra um regime autoritário, repressão, violência e mortes. Mas, desta vez, a revolta não merecia destaque na Al Jazeera. Vozes oposicionistas ficaram de fora da programação.
    A omissão deixou claro o desconforto do sunita Qatar com os manifestantes bareinitas, na maioria xiitas. Protestos xiitas na Arábia Saudita também foram ignorados ou menosprezados. Para as monarquias árabes, seguidores do islã xiita são uma ameaça alimentada pelo Irã, o poderoso e incômodo rival persa que domina a outra margem do golfo Pérsico.
    Quando os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita mandaram soldados para ajudar o Bahrein a reprimir os protestos, o primeiro-ministro do Qatar, Hamad Jassim ibn Jaber, disse em entrevista à Al Jazeera em árabe que se tratava de uma operação de "assistência e apoio". E exortou a oposição bareinita a aceitar a oferta de diálogo feita pelo governo.
    Um embaixador ocidental conhecedor do Qatar resume um sentimento que se espalhou após os protestos no Bahrein: "A máscara caiu, e ficou evidente que a Al Jazeera está alinhada aos interesses das monarquias sunitas do golfo".
    Embora concorrentes com agendas muitas vezes conflitantes, as dinastias reais mantêm um pacto em torno de objetivos comuns: sobrevivência, estabilidade para exportar gás e petróleo, propagação de uma ideologia islamita sunita, com níveis diferentes de conservadorismo, além da resistência às pretensões hegemônicas do Irã.
    A cobertura dos levantes nos países aliados ao Qatar recebeu uma enxurrada de críticas na mídia internacional. Em maio de 2011, reportagem do "Washington Post" destacava a diferença entre o bem-sucedido trabalho jornalístico no início da Primavera Árabe e a perda de credibilidade exposta no Bahrein. Depois, "The Economist", "The Guardian" e "New York Times" e outros também apontaram falhas e contradições.
    "Vejo que você está aderindo ao coro", diz Al Anstey, com ironia, quando levanto a questão do Bahrein. O chefe da emissora em inglês nega ingerência política em questões editoriais. E afirma que os críticos deveriam ver "Shouting in the Dark", documentário filmado clandestinamente na capital bareinita que evidencia a brutalidade policial contra manifestantes antirregime. O trabalho faturou vários prêmios internacionais de jornalismo em 2011 e enfureceu o governo de Manama.
    "Essa produção, sozinha, dá prova da nossa independência. Se faltasse independência, não teríamos exibido", explica Anstey. Mas "Shouting in the Dark" nunca foi ao ar no canal árabe, carro-chefe da emissora que tem audiência estimada em 70 milhões de espectadores no horário nobre, sobretudo no Oriente Médio e na Europa.
    "Há mais linhas vermelhas na Al Jazeera Árabe", me contou, por e-mail, o britânico Hugh Miles, autor de um livro sobre a Al Jazeera. "Por causa do idioma, ela é politicamente mais sensível e também mais poderosa e, por isso mesmo, mais controlada."
    DEBANDADA
    O Bahrein deflagrou uma crise interna na emissora e uma debandada nos postos de comando. Um dos primeiros a pedir demissão foi Ghassan Ben Jeddo, chefe da sucursal em Beirute. Ele alegou sentir-se "eticamente desconfortável" com a linha editorial adotada pelos chefes. Em seguida, quem renunciou foi o próprio diretor-geral da rede, o palestino Waddah Khanfar, alegando já ter atingido a meta de alçar a Al Jazeera na elite do jornalismo mundial.
    Muitos, porém, atribuem sua saída a embaraçosas revelações do WikiLeaks, em 2010. Telegramas secretos da diplomacia dos EUA mostram que o Qatar usava o poder de sua emissora internacional como instrumento de barganha na relação de forças com o aliado americano. Khanfar foi substituído por um parente do emir, no cargo até hoje.
    Nova leva de funcionários pediu as contas alegando insatisfação com outro tema: o alinhamento cego aos rebeldes islamitas na cobertura da guerra na Síria. Repórter experiente, Ali Hashem foi embora após ter sido impedido de falar sobre a formação de grupos armados na oposição síria --segundo ele, a intenção era não comprometer a versão veiculada na TV de um levante pacífico contra Assad.
    No conflito aberto que hoje assola o país, quem comanda a linha de frente anti-Assad são combatentes da Al Qaeda, entre os quais muitos jihadistas estrangeiros. O Qatar fornece armas, dinheiro e apoio diplomático à rebelião síria.
    A cobertura síria também foi a gota d'água para Aktham Suliman, que abandonou seu posto de correspondente em Berlim após denunciar "editores ocultos que ninguém conhece, mas cuja influência todo mundo sente".
    Anstey evita pronunciar-se sobre ex-funcionários. Mas insiste em que a cobertura na Síria só não é mais equilibrada porque o regime de Assad se recusa a permitir a atuação da Al Jazeera sob seu controle. Com isso, equipes de reportagem só podem circular em áreas insurgentes.
    MAL-ESTAR
    O mal-estar acerca da estação aumentou após a circulação de um vídeo na internet (veja em bit.ly/massalma) que registra a recente morte de um repórter que cobria o conflito acompanhando rebeldes em Deraa, ao sul de Damasco. Ele é abatido por tropas leais ao regime enquanto corre para atravessar uma rua deserta. A gravação comprometeu a Al Jazeera por várias razões. Primeiro, o jornalista não vestia colete à prova de bolas nem usava nada que o identificasse como profissional de imprensa. Além da falta de equipamento, ele mostrou despreparo ao se arriscar em área de fogo cruzado, contrariando precauções básicas em cobertura de guerra.
    O mais embaraçoso foi a revelação de sua identidade. Mohammed al Musalma era um militante oposicionista que acabara recrutado para ajudar na cobertura local. Um homem engajado numa das partes do conflito que estava cobrindo. "Se não há mais distinção entre ativistas e jornalistas, então todos estão em perigo", disse Suliman, ex-correspondente em Berlim, à revista alemã "Der Spiegel".
    A Al Jazeera afirma que al Musalama era um colaborador sem vínculos formais com a empresa. "Por isso não fizemos muito estardalhaço acerca de sua morte", justificou um representante.
    Nos últimos meses, as críticas se voltaram para a visão positiva da Al Jazeera na cobertura dos governos islamitas eleitos no rastro das revoluções tunisiana e egípcia. A linha editorial contrasta com a crescente insatisfação popular acerca da inépcia e do autoritarismo dos novos dirigentes, segundo escreveu Ahmed E. Souaiaia, professor da Universidade Iowa.
    O pesquisador em comunicação Ibrahim Saleh, da Universidade do Cabo, traça o diagnóstico da transformação. "[O canal] começou como um sonho que virou realidade quando mudou todo o cenário da mídia e ofereceu esperança de real sabedoria de reportagem. O tempo expôs a hipocrisia e a propaganda em vez dos padrões profissionais".
    AUDIÊNCIA
    Muito se especula em torno da audiência da Al Jazeera, cujos dados são guardados como segredo de Estado. Mas a emissora admite registrar uma queda significativa nos últimos dois anos. Para o especialista em mídia palestino-americano Jamal Dajani, o fenômeno traduz com clareza a decepção dos telespectadores. "A popularidade caiu após o pico de 2011", me disse ele, por e-mail.
    A emissora garante ter mantido a liderança entre redes de notícia árabes e atribui a diminuição da audiência ao fim do monopólio estatal da mídia na Tunísia, no Egito e na Líbia, que gerou uma proliferação de jornais e canais de TV independentes. Os veículos de imprensa pós-revolucionários aderiram ao jornalismo mordaz e crítico que um dia foi marcada registrada da estação qatariana.
    "Desde a Primavera Árabe houve uma explosão de canais focados em temas domésticos. A verdade é que não podemos competir com eles na cobertura de notícias locais", admitiu o sudanês Salah Eddin Elzein, diretor do Centro de Estudos da Al Jazeera, órgão de planejamento estratégico e promoção intelectual da emissora. "Isso nos trouxe um desafio e nos obrigou a refletir sobre maneiras de preservar nossa vantagem competitiva."
    A estação nega ter sido abalada pelas críticas, mas admite preparar uma reformulação editorial, técnica e logística. Empresas de auditoria e consultores privados trabalham há meses com diretores e editores para pavimentar o caminho rumo a uma nova Al Jazeera. "Estamos envolvidos no processo. Essa reestruturação é parte de um plano estratégico, é uma transformação completa", diz Elzein.
    Miles, o autor do livro sobre a emissora, afirma que a reconstrução da marca é uma necessidade. "Sua reputação foi muito prejudicada, por isso estão mudando".
    Um representante da estação diz que se trata de ajustes de rotina. Entre as mudanças, ele cita a uma nova identidade visual e a maior convergência entre as plataformas tradicionais e digitais. Dentro de um ano e meio o resultado completo será visível, prevê.
    O futuro também passa por uma presença maior da Al Jazeera English na América Latina, onde a difusão ainda é menor do que no resto do mundo. "Precisamos e queremos estar no mercado brasileiro, e já começamos a trabalhar nisso", diz Anstey. "Mas a distribuição no Brasil é complicada." O país tem cerca de 10 milhões de descendentes de árabes.
    Além dos canais em árabe e inglês, a Al Jazeera tem uma emissora voltada para os Bálcãs e anunciou planos de transmitir em francês e turco. Fala-se, ainda, num futuro serviço em espanhol. Canais esportivos pagos já representam alguma fonte de renda. Para os céticos, a expansão multilíngue atende o plano do Qatar de ampliar sua influência para o resto do mundo. A tese é corroborada pelos bilhões de dólares investidos na Europa em áreas tão diversas quanto esporte, imóveis e luxo.
    Mas a meta mais ambiciosa da Al Jazeera passa pela recente aquisição da americana Current TV, criada sem sucesso pelo ex-vice-presidente Al Gore. O objetivo é claro: conquistar o mercado doméstico nos EUA. A Al Jazeera comprou escritórios suntuosos em várias cidades do país, onde se tornou um dos raros veículos a fazer contratações em massa.
    Num cenário de crise mundial para o jornalismo, a TV do Qatar oferece salários acima da média e infraestrutura de sonho para reportagens no mundo inteiro. A empresa diz ter 3.000 funcionários, dos quais 400 jornalistas, espalhados por 60 redações nos cinco continentes. A CNN tem algo como 4.000 funcionários e 45 escritórios pelo mundo.
    A sede da Al Jazeera ocupa um quarteirão inteiro numa área afastada alguns quilômetros do centro da soporífera Doha. No portão principal do complexo, há um incessante vaivém de sedans e picapes de luxo que abundam no país da renda per capita mais alta do mundo, de US$ 102.800 anuais (no Brasil, a renda per capita é de US$ 12.000).
    A redação do serviço inglês é moderna e confortável e tem profissionais de todas as idades e biotipos, de mais de 60 nacionalidades, segundo a empresa. Lembra uma típica redação ocidental, com leve predominância de mulheres, poucas árabes, na maioria anglo-saxãs. No mezanino que abriga as salas do editores, o ambiente silencioso lembra mais uma empresa do que uma redação.
    "Gosto de trabalhar aqui e me sinto perfeitamente confortável com o que fazemos", diz a britânica Laura Kyle, já maquiada para assumir seu turno na bancada do telejornal. "Trabalhei na TV estatal chinesa e sei exatamente o que é um órgão de propaganda. Posso garantir que, aqui, isso não existe."
    Ex-funcionária do "International Herald Tribune", a neozelandesa Yasmine Ryan é produtora do site em inglês e blogueira. "Venho da velha mídia', jornais defasados e em declínio. Hoje até a BBC é engessada. Na Al Jazeera tudo é dinâmico, a empresa se expande e temos recursos para fazer jornalismo de verdade."
    O serviço árabe fica num prédio menor, ao lado, simples e antigo. Há menos mulheres e mais homens, sempre vestindo os trajes tradicionais --túnica branca e "keffieh" na cabeça. Um funcionário aponta para o carpete e conta uma anedota. Em 2000, o então ditador egípcio Hosni Mubarak visitou a redação. "Aqui, neste exato local, Mubarak parou e disse: É esta caixinha de fósforo que causa tanto barulho?'".
    Uma salinha abriga uma espécie de museu para visitantes. O acervo inclui livros, equipamentos de transmissão usados em guerras nos anos 90 e objetos pessoais de repórteres mortos em campo, chamados de "mártires".
    Apesar das ressalvas, a Al Jazeera ainda é capaz de brilhar. Sua cobertura da ascensão chinesa, da repressão em Mianmar e da guerra no Mali continua sem igual. Em janeiro, o correspondente do canal em inglês no Brasil, Gabriel Elizondo, foi um dos primeiros a chegar a Santa Maria (RS) após o incêndio na boate que matou 241 pessoas. Suas reportagens foram visivelmente mais completas e precisas que as da concorrência.
    A TV também produziu nos últimos meses investigações com valor de acervo histórico sobre a ascensão do clã Assad na Síria e as negociações secretas entre Israel e Jordânia após o atentado fracassado do Mossad contra o líder do Hamas em 1997. Dajani, o especialista em mídia, lembra que a Al Jazeera é uma das raras TVs a oferecer até hoje cobertura extensiva da Primavera Árabe.
    "A neutralidade completa é um mito no mundo árabe", afirma. "O Líbano tem uma dúzia de canais por satélite, cada um representa uma ideologia sectária diferente. No Ocidente também sempre há algum viés, principalmente quando se trata de linhas político-partidárias."

      domingo, 31 de março de 2013

      Minha História - Eliezer Ranieri, 32,

      folha de são paulo

      O islã como herança
      (...)O que mais prezo no Irã é a inocência da população (...) No Brasil os valores morais estão invertidos (...) Planejo voltar ao Brasil e mostrar o islã verdadeiro
      SAMY ADGHIRNIENVIADO ESPECIAL A QOM
      RESUMO
      Convertido ao islã, o paulista Eliezer Ranieri, 32, decidiu se instalar com a família no santuário xiita de Qom, no interior do Irã, para garantir que sua filha de um ano e cinco meses tenha uma educação muçulmana. Estudante de teologia com bolsa iraniana, Eliezer rejeita a liberdade sexual no Brasil e considera que a brasileira tornou-se uma "mulher objeto". Ele diz que a nova vida no Irã é "maravilhosa".
      -
      Nasci em Ubatuba, em São Paulo, e me criei no Guarujá, filho de pai comerciante e mãe professora.
      Meus irmãos e eu tivemos uma infância muito tranquila, brincando de esconde-esconde, mão na mula, queimada e outras brincadeiras tão boas e inocentes, apesar dos programas violentos, como "Jaspion" e "Changeman", que começaram a surgir no fim dos anos 80.
      Meus pais não eram religiosos, e eu, como eles, acreditava em Deus sem ter religião. Mas, em fevereiro de 2001, me converti ao islã sunita na mesquita de Santos, com o apoio de uma família libanesa que me mostrou o Corão e me ensinou o alfabeto árabe.
      Fui tocando minha vida, primeiro me formando em tecnologia ambiental e depois trabalhando na estação de tratamento de água da Riviera de São Lourenço.
      Em 2009 passei a trabalhar na feira do Brás, em São Paulo. Em seguida, me casei com a Latifa, que conheci na mesquita. Nossa filhinha, Amirah, nasceu há um ano e cinco meses. É a nossa princesa, que é exatamente o significado do nome dela.
      O problema do islã no Brasil é a influência wahabita [corrente sunita ultrarradical surgida na Arábia Saudita que inspirou a Al Qaeda de Osama bin Laden].
      Os wahabitas propagam uma visão incorreta do islã, com ideias extremistas e opressão contra outras opções religiosas.
      Tanto que, quando comecei a me interessar pelo islã xiita, muitos sunitas reagiram com hostilidade, chamando os xiitas de incrédulos. Essa experiência acabou me empurrando ainda mais para o xiismo.
      Sete meses atrás, me tornei muçulmano xiita.
      Logo em seguida, Deus pôs no nosso caminho a possibilidade de morar no Irã. Já vínhamos há algum tempo querendo sair do Brasil para educar nossa filha, inclusive fizemos planos de morar no Marrocos.
      Até que surgiu a chance de eu iniciar estudos religiosos na universidade internacional de Qom, com uma pequena bolsa.
      Era a chance ideal para criar nossa neném num ambiente islâmico adequado.
      Minha mãe, que se tornou evangélica há alguns anos, chorou ao saber da mudança, pois Amirah é sua primeira netinha. Mas ela entendeu que estávamos migrando no caminho de Deus e acabou aceitando.
      Ela e meu pai pesquisaram muito sobre o Irã e perceberam que o país é muito mais do que a questão nuclear ou a tensão com Israel.
      Chegamos a Qom há dois meses. Estranhei um pouco o trânsito totalmente sem regras, mas nosso dia a dia aqui é maravilhoso.
      INOCÊNCIA IRANIANA
      O que mais prezo é a inocência da população, que não tem a maldade dos brasileiros. Quando ando até o ponto de ônibus, por exemplo, é muito comum algum desconhecido parar o carro e oferecer carona, algo impensável no Brasil.
      Aqui a gente anda na rua sem medo de ter o relógio ou o dinheiro roubado.
      O custo da vida é muito baixo. Minha bolsa mensal equivale a cerca de R$ 100, mas aqui tudo é tão barato.
      O Irã não produz metade do que o Brasil produz e ainda assim consegue ter uma vida muito mais em conta. E o governo cuida da sua população, ao contrário da maioria dos outros países.
      Para nossa filha é ótimo estarmos aqui.
      No Brasil os valores morais estão invertidos. A criança na escola não respeita o professor, e a violência está em todo lugar.
      Além disso, você ensina o certo, mas seu filho sai na rua e vê homem com homem, mulher com mulher, tudo permitido em nome da democracia e da liberdade.
      No Brasil, a pessoa vai para uma balada, fica com alguém, acaba no motel e na semana seguinte faz a mesma coisa com outro parceiro.
      O sexo antes do casamento cai na banalidade e prejudica a sociedade.
      Por mais que as feministas digam que não, a mulher brasileira é, sim, um objeto.
      Poder andar na rua pelada é uma liberdade falsa.
      A brasileira sabe que, se ela não tiver um certo padrão de beleza, se sentirá inferior. Ela sabe que, se não mostrar o que tem, não conseguirá certas coisas.
      Por que ela usa decote? Para mostrar que tem peito grande. Para se exibir como um troféu a ser conquistado por quem conseguir.
      Não é isso que queremos para nossa filha.
      Desde pequena, a chamamos para ficar pertinho na oração. Hoje ela já sabe quando é hora de fazer "Alá Akbar" [Deus é maior, frase pronunciada nas orações]. Ela se ajoelha e põe as mãozinhas na cabeça.
      Mas ela não vai deixar de ser brasileira, e o português será sua língua principal.
      Além disso, nosso plano é voltar a morar no Brasil dentro de uns dez anos, quando eu estiver formado e apto a mostrar o islã verdadeiro aos brasileiros.
      Até lá, pretendo levá-la de vez em quando ao Brasil para ver a família.
      Ela talvez estranhe o ambiente quando estiver com a família brasileira, mas ela verá qual o valor da mulher no nosso país, e espero que um dia nos agradeça pela nossa escolha.
      Meu sonho é que ela construa uma família muçulmana. Mas também quero que ela passe por uma faculdade. O Corão incentiva muito os estudos.
      Por mais que eu mostre o caminho certo e queira que ela tenha Deus no seu coraçãozinho, ela é quem vai decidir seu futuro. Amirah terá total liberdade para seguir seu caminho.
      A gente faz a nossa parte, mas o futuro só Deus sabe.


      FRASES
      "Minha mãe, que se tornou evangélica há alguns anos, chorou ao saber da mudança. Mas ela entendeu que estávamos migrando no caminho de Deus"
      "O Irã não produz metade do que o Brasil produz e ainda assim consegue ter uma vida muito mais em conta. E o governo daqui cuida da sua população"

        domingo, 10 de março de 2013

        Entrevista Hamid Dabashi

        folha de são paulo

        Por um islã cosmopolita
        O mundo muçulmano pós-Primavera Árabe
        RESUMO Intelectual nascido no Irã e radicado nos EUA analisa reação islamita após queda de regimes ditatoriais na Primavera Árabe. Para professor, ascensão de grupos religiosos esconde processo mais profundo de rompimento de amarras identitárias que se dará conforme islã recupere vocação cultural cosmopolita.
        SAMY ADGHIRNI
        O Ocidente assiste, impotente e preocupado, à consolidação de governos islamitas no rastro das revoltas árabes que derrubaram ditaduras na Tunísia, no Egito e na Líbia. À convulsão social surgida com a ascensão de forças conservadoras soma-se a guerra civil na Síria, onde grupos próximos à Al Qaeda assumiram as rédeas da incompleta revolução contra o regime do ditador Bashar Assad.
        Esse cenário sombrio esconde uma profunda transformação que implica não somente a libertação dos jugos autoritários como também a das amarras identitárias e culturais remanescentes da era colonial.
        O autor dessa tese é o intelectual americano nascido no Irã Hamid Dabashi, 61. Professor de estudos iranianos e literatura comparada na Universidade Columbia, em Nova York, ele é adepto de uma filosofia da geopolítica que o tornou um dos mais respeitados especialistas em temas árabes e islâmicos nos EUA.
        Autor de vários livros, entre eles o recém-lançado "Being a Muslim in the World" (sendo muçulmano no mundo, em tradução livre), Dabashi disse à Folha, em entrevista por e-mail, que os muçulmanos estão recuperando a vocação cosmopolita de sua religião e criticou a Europa pela estigmatização dos imigrantes islâmicos.
        -
        Folha - Por que os islamitas saíram como os maiores vitoriosos das revoluções árabes?
        Hamid Dabashi - É uma vitória sem fôlego. Os islamitas foram bem-sucedidos em dominar eleições porque apostaram em redes de mobilização política costuradas ao longo de décadas de ditadura dos antigos regimes.
        Mas esses islamitas no Egito, na Tunísia e em outros países estão sendo duramente contestados, desta vez não por regimes opressores, como o do [ex-ditador egípcio Hosni] Mubarak ou do [ex-ditador tunisiano Zine el Abidine] Ben Ali, mas pela própria população.
        No Egito, os escritórios da Irmandade Muçulmana estão sendo incendiados, e o lema da revolução, "o povo quer a queda do sistema", virou "o povo quer a queda da Irmandade Muçulmana".
        Na Tunísia, os sindicatos estão mobilizados contra o partido governista Al Nahda. Essas siglas islamitas se reivindicam donas do islã e do espaço público nos países muçulmanos, e essa apropriação está sendo seriamente contestada por outros muçulmanos.
        No longo prazo, será uma batalha perdida para as forças islamitas, que na Tunísia recorreram ao assassinato do opositor Chokri Belaid e no Egito ameaçam de morte líderes oposicionistas como Mohamed ElBaradei.
        Usar e abusar do sistema eleitoral é apenas um subterfúgio, que está sendo aos poucos desmascarado.
        As sociedades árabes e muçulmanas estão se tornando mais radicais?
        De forma alguma. O que acontece é o contrário. Do Irã ao Marrocos, as sociedades estão se abrindo. Sua vocação cosmopolita, que se manifesta melhor nas artes visuais e literárias, após ter sido camuflada sob a falsa oposição secularismo versus islamismo, está desabrochando.
        Essas vozes podem ainda não ser ouvidas devido aos sons da guerra na Síria ou por causa das pressões geopolíticas mantidas por Arábia Saudita e Israel. Mas essas vozes (e essa visão) existem e estão tomando forma. Regimes conservadores, como o saudita, estão fazendo de tudo para instigar violência sectária como forma de polarizar extremos, mas essa onda de revoluções está se voltando contra isso.
        Por que o senhor contesta a distinção entre seculares e religiosos nos países árabes e muçulmanos?
        Essa distinção é uma fabricação pós-colonial, construída por meio de coação. É uma forma de conhecimento que esgotou suas possibilidades epistemológicas e que já não corresponde à realidade das experiências de vida das pessoas nem reflete seus ideais e aspirações.
        Isso se nota nos filmes, na ficção e na poesia [dos países muçulmanos]. O contorno moral e criativo de tudo aquilo que é belo e sublime não pode ser reduzido a essa distinção grosseira e equivocada. Você pode ser muçulmano e feminista, muçulmano e marxista, muçulmano e psicanalista e, para reforçar o argumento via hipérbole, até mesmo muçulmano e ateu.
        A vida das pessoas transcende esse falso antagonismo.
        O senhor acredita que as petromonarquias do Golfo Pérsico se tornaram a força motora por trás do sucesso dos partidos islamitas?
        Com certeza. As petromonarquias do golfo se sentem ameaçadas, com razão, aliás. Por isso acreditam que seu dinheiro pode comprar tudo, inclusive a capacidade de orientar o futuro dessas revoluções.
        Mas isso é um engano. Tendências históricas e movimentos políticos não são como o último modelo de Mercedes que se pode comprar. [Os regimes do golfo] acabarão atropelados por esses movimentos.
        Por que países árabes, ocidentais e a Turquia estão apoiando a rebelião islamita na Síria, hoje dominada por jihadistas perigosos?
        A revolta síria não começou como uma rebelião islamita. Como em todos os outros palcos da Primavera Árabe, começou de forma pacífica por impulso da multifacetada sociedade síria, incluindo intelectuais, jornalistas, artistas, sindicalistas, feministas etc.
        Foi Bashar Assad quem começou derramando sangue, o que levou à violência alguns setores da oposição, entre eles os islamitas.
        Mas não se pode reduzir a revolução síria a essas forças, assim como não se pode reduzir o regime em vigor ao aparato de segurança e inteligência apoiado pelo Irã, pela Rússia e pela China.
        Os Estados Unidos e seus aliados regionais, incluindo Arábia Saudita, Qatar e Turquia, estão tentando comandar por controle remoto a revolução síria. Não fosse pela presença de forças islamitas, os Estados Unidos e a Otan já teriam bombardeado o palácio de Assad há muito tempo, como fizeram com [o ex-ditador líbio Muammar] Gaddafi.
        Não atacaram até agora para dar a Bashar Assad tempo de acabar com os islamitas que o Ocidente considera indesejáveis. Depois disso, eles irão matá-lo, na esperança de ter um cenário pós-Assad mais aceitável para a Arábia Saudita e Israel.
        O problema é que sauditas e israelenses não estão na mesma sintonia. A Arábia Saudita adoraria ter salafistas [muçulmanos ultraconservadores] atuando a seu favor. Já Israel é avesso a todas as forças islamitas, vistas como variações do Hamas. Essa contradição orgânica nas forças contrarrevolucionárias acabará favorecendo o povo sírio e sua revolução.
        O que os protestos surgidos após a eleição presidencial no Irã em 2009 e a Primavera Árabe têm em comum? Por que o Irã teve mais êxito que os ditadores árabes para acabar com os protestos, e com muito menos sangue derramado?
        Os dois casos têm tudo a ver. O Irã não acabou com os protestos, simplesmente os escondeu debaixo do tapete.
        A República Islâmica do Irã está em sérios apuros. Isso se reflete tanto nos seus distúrbios internos quanto na sua perda de poder regional, com a aliada Síria afundada no caos, o Hamas autodesvinculado da Síria, o Hizbollah vivendo sua mais grave crise existencial e a população iraquiana protestando contra seu governo xiita e, por tabela, contra a influência iraniana.
        O caso iraniano foi menos sangrento porque o regime aterrorizou os pais dos jovens manifestantes para que mantivessem seus filhos em casa. Além disso, ao longo de suas três décadas no poder, o regime totalitário conseguiu incorporar ao seu aparato de segurança uma parte importante da sociedade.
        Em vez de construir universidades e criar empregos, ele consolidou suas fundações com base num aparato de segurança que, a exemplo do professor Harold D. Lasswell [1902-78], eu chamo de
        "Estado fortaleza". Mas a ameaça ao regime não vem somente de seus dissidentes, ela vem também da geopolítica regional.
        Diante das pressões de algumas comunidades islâmicas na Europa para influenciar as leis locais, não seria compreensível os europeus enxergarem os imigrantes como ameaça à sua cultura e identidade?
        Os muçulmanos não foram à Europa atrás de clima agradável e generosa hospitalidade, mas em busca de trabalho. Os franceses não têm nenhum direito de falar em cultura e identidade. Eles deveriam ter pensado nisso quando saíram de seu país para colonizar a África e a Ásia.
        Os franceses cruzaram suas fronteiras nacionais muitos antes dos africanos. O que os franceses estão fazendo no Mali neste exato momento? Quando enviam caças para bombardear a África, eles não estão preocupados com identidade nacional nem fronteiras.
        Mas, quando africanos vão até a Europa, acabam martelados com discurso sobre fronteira nacional e identidade. Portanto muçulmanos e africanos têm pleno direito de estar na França. E, se isso gera confusões de identidade para franceses racistas, eles podem pedir ao seu governo que ensine direito nas escolas a sua história imperial.
        É possível que ocorra um renascimento islâmico?
        Não precisamos de renascimento nem de reforma à moda da Europa. Essas são denominações que historiadores europeus atribuíram de forma retroativa à história do continente, e elas hoje são contestadas.
        O que nós precisamos, como explico no meu livro "Being a Muslim in the World", é renovar o espírito cosmopolita que sempre foi inerente à cultura islâmica antes de seu fatídico encontro com o colonialismo europeu e o imperialismo americano.
        O principal obstáculo nesse caminho é a hiperjuridização do islã -que ocorreu sob pressão colonial e acabou exacerbada por orientalistas cristãos e judeus que enxergavam o islã sob a lente de suas próprias religiões. Esses estudiosos acreditavam que os princípios da lei islâmica a serviço dos califados e sultanados na Idade Média representavam a essência do islã.
        Esta é categoricamente uma leitura falsa do islã, que retira a lei islâmica do contexto histórico da intelectualidade islâmica, dando lhe uma influência desproporcional sobre a integralidade da fé para depois esperar que um renascimento ou uma reforma retifique as coisas.
        A lei islâmica é parte do islã, mas não representa tudo na religião. O 1,3 bilhão de muçulmanos espalhado pelo mundo e seu mundanismo particular e sua maneira de viver num mundo não islâmico irá conduzir até um pacto renovado com sua religião cosmopolita, desta vez numa mudança epistêmica livre do pesadelo de ter que dar explicações ao Ocidente.
        "As petromonarquias do golfo se sentem ameaçadas, com razão. Por isso acreditam que seu dinheiro pode comprar tudo, inclusive a capacidade de orientar o futuro dessas revoluções"
        "Os franceses não têm nenhum direito de falar em cultura e identidade. Eles deveriam ter pensado nisso quando saíram de seu país para colonizar África e Ásia"
        "Precisamos renovar o espírito cosmopolita inerente à cultura islâmica antes do fatídico encontro com o colonialismo europeu e o imperialismo americano"