domingo, 21 de outubro de 2012

Antes do Millenium Stieg Larsson e a gênese da trilogia

INÉDITO

JAN-ERIK PETTERSSON
tradução MARIA LUIZA NEWLANDS


RESUMO
A série de textos que a "Ilustríssima" apresenta em primeira mão traz trecho da biografia do sueco que virou fenômeno póstumo do romance policial com a trilogia "Millennium". "Stieg Larsson" sai pela Companhia das Letras em 5/11. Neste trecho, são narrados os últimos dias de Lasrsson, morto em 2004.

A morte de uma jovem curdo-sueca, Fadime Sahindal, em 2002, assassinada pelo próprio pai, havia desencadeado um debate acalorado. Ela apareceu na televisão e falou abertamente do pai e do irmão, que desaprovavam seu estilo de vida independente, vigiando-a, fazendo-lhe ameaças e maltratando-a. Chegou a falar no Parlamento sobre sua situação, num seminário sobre a violência contra as mulheres em 2001. Então, quando foi visitar a família em Uppsala, o pai a matou.
Houve um tremendo clamor na Suécia inteira sobre o conceito de crimes de honra e sobre a violência relacionada à honra, muitas vezes dando margem a generalizações toscas sobre culturas estrangeiras e sobre a atitude dos curdos e dos muçulmanos no trato com as mulheres. Formou-se uma associação para difundir informações sobre crimes de honra que se chamou "Nunca esqueçam Pela e Fadime".
Feminismo e antirracismo estavam ligados, Stieg Larsson havia afirmado, mas na realidade o debate público que se seguiu ao assassinato de Fadime parecia insinuar o oposto. Mulheres jovens, muitas de famílias de imigrantes, se manifestaram para criticar as atitudes e códigos morais de certos grupos de imigrantes.
Antropólogos sociais escreveram artigos sobre as origens culturais do conceito de honra. Stieg mostrou-se ao mesmo tempo indignado e preocupado à medida que as discussões revelavam que algumas feministas eram também racistas, e antirracistas eram acusados de relutância em se opor à violência contra as mulheres.
Junto com sua colega da revista "Expo", Cecilia Englund, ele imediatamente encomendou uma antologia na qual nove escritores analisavam a questão dos crimes de honra. [...]
A antologia foi um exemplo típico da maneira como Stieg reagia às questões sociais. Seu impulso era mergulhar na discussão, sem subterfúgios, assumir uma posição firme e identificar a oposição. A antologia como um todo contribuiu pouco para esclarecer as coisas. Crimes de honra e violência em nome da honra de fato existiam ou seriam uma construção puramente mental para macular a imagem dos imigrantes e encobrir a verdade sobre o quanto estava realmente disseminada a violência contra as mulheres na Suécia?
Stieg Larsson não é perfeitamente claro sobre esse ponto. Mas seu pensamento parece inequívoco: o debate sobre os crimes de honra dava carta branca aos homens suecos. Stieg rejeitava inteiramente as tentativas de explicar o assassinato de Fadime em termos de antropologia cultural. A explicação era muito mais simples: "A verdade é que em sociedades dominadas pelos homens as mulheres são mortas por homens".
FRENÉTICO
O ano de 2004 foi frenético para Stieg Larsson, para dizer o mínimo. O livro sobre crimes de honra saiu em janeiro; ele estava trabalhando numa contribuição para outra antologia, "O partido Democrata Sueco visto por dentro", organizada por um colega da "Expo", Richard Slätt; e precisava produzir seu "Manual para Democratas", com Daniel Poohl, para o Museu Malmö até o fim do ano.
No verão, ele participara da Conferência de Segurança Europeia, representando o Ministério do Exterior da Suécia.
Poohl lembra-se de Stieg estar extraordinariamente estressado naquele outono. Assediavam-no de tudo que era lado. Diversas instituições e escolas vinham telefonando para convidá-lo a dar palestras ou falar em salas de aula. Stieg sempre considerou as preleções uma parte importante de suas atividades, mas então já começava a se cansar e esperava ansiosamente que diminuíssem.
Também tinha, porém, razões para ficar alegre. A essa altura já sabia que seus romances seriam publicados e que poderia continuar a escrever ficção policial. Só o que tinha a fazer era apresentar novos manuscritos e eles seriam aceitos. Em outubro, foi entrevistado por Lasse Winkler, editor-chefe da revista de comércio livreiro "Svensk Bokhandel". O artigo começava assim: "Tomem nota do nome de Stieg Larsson. Ele não é igual aos outros autores".
Deve ter ocorrido a Stieg na ocasião que o estilo de vida anônimo que ele escolhera estava chegando ao fim, que daí em diante ele estaria sob os holofotes, não tanto como antirracista mas como escritor de romances policiais. Talvez até tivesse de ser entrevistado naqueles programas de bate-papo na TV que ele tanto detestava.
Também pressentiu que ganharia dinheiro com os livros. Os editores davam todos os sinais de terem farejado um best-seller em formação. E isso de maneira nenhuma o contrariava; garantiria não só sua própria segurança financeira como o futuro da "Expo", além de lhe dar dinheiro para outras causas que considerava essenciais, como os abrigos para mulheres vítimas de violência.
Ao tomar um táxi certo dia naquele outono, descobriu que o motorista era um antigo colega da [agência de notícias] TT. Stieg contou-lhe, entusiasmado, sobre seus livros e como o editor acreditava neles. "Imagine só, parece até que vou ser mais importante do que [o norueguês Henning] Mankell!"
Para a equipe de uma revista antirracista como a "Expo", o dia 9 de novembro era uma data significativa, de associações sombrias. Os acontecimentos da noite de 9-10 de novembro de 1938 vieram a ser conhecidos como Noite dos Cristais. Nas cidades da Alemanha inteira as pessoas ouviram o barulho dos vidros quebrados e viram as labaredas das sinagogas incendiadas.
O que estava acontecendo e não se via era ainda pior: surras, linchamentos, o transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. A Noite dos Cristais foi o início da escalada irreversível da perseguição aos judeus: o 9 de novembro foi o arauto do Holocausto. Era uma data em que a equipe da "Expo" costumava sair para encontros pelo país, o que ocorreu naquele dia, 9 de novembro de 2004.
O próprio Stieg deveria comparecer naquela noite à Associação Educacional dos Trabalhadores [ABF-huset], em Estocolmo, com Kurdo Baksi. Durante o dia, iria trabalhar no escritório da redação. Sua companheira, Eva Gabrielsson, viajara a trabalho para Falun, no condado de Dalarna, e Stieg foi de ônibus de casa para o escritório em Kungsholmen.
PÁLIDO
Quando chegou, o elevador estava com defeito, de modo que não teve opção a não ser subir os sete andares de escada até a redação. Cumprimentou os colegas ao chegar e tudo parecia normal. Mas em seguida eles notaram que algo não ia muito bem. Stieg estava incrivelmente pálido, e de repente se curvou em cima de sua escrivaninha e caiu no chão.
Os colegas acorreram, não conseguiram fazê-lo reagir e perceberam que era sério. Telefonaram na mesma hora para uma ambulância, que chegou em minutos e o levou às pressas para o hospital St Göran, perto dali.
Mikael Ekman estava naquele dia a caminho de Umeå, cidade natal de Stieg, para dar uma palestra sobre o neonazismo sueco e participar de um comício para rememorar a Noite dos Cristais. Iria também visitar o pai de Stieg, Erland, como Stieg lhe pedira. No aeroporto, Mikael recebeu um telefonema de Ulrika Svensson, da "Expo", contando que Stieg perdera os sentidos e estava sendo levado para o hospital. Ele ligou para Eva Gabrielsson e para David Lagerlöf, seu colega na revista. Depois desligou o telefone e entrou no avião. Ao chegar a Umeå, não o religou. Sabia que a situação de Stieg parecia ruim, mas decidira cumprir seus compromissos.
"Quando acabei de dar a palestra e estava a caminho do comício, liguei meu telefone e encontrei uma porção de mensagens, todas dando a mesma notícia: Stieg tinha morrido." Eva Gabrielsson apanhou um avião de volta para Estocolmo assim que recebeu a ligação em seu celular, apesar das informações vagas. Ao chegar ao hospital naquela noite, recebeu a notícia arrasadora.
Erland Larsson estava indo para casa depois de ir à biblioteca local para fazer pesquisas sobre história familiar quando sua companheira, Gun, veio a seu encontro e contou que Stieg perdera os sentidos. Ele conseguiu um número de telefone do hospital, mas era um celular e o médico com quem falou "não disse coisa com coisa e não sabia de nada". Erland também apanhou o primeiro avião disponível para Estocolmo a fim de ficar à cabeceira do filho. "Mas quando cheguei lá me disseram que ele tinha morrido. Nessa hora a gente só tem vontade de morrer também."
À noite, Mikael Ekman saiu para tomar uma bebida com Fredrik Malm, presidente da Liga da Juventude do Partido Liberal, e Alexander Bengtsson, da Liga da Juventude do Partido Esquerdista, entre outros. Esses dois haviam se encontrado naquele dia mais cedo num debate e ambos haviam feito trabalhos para a "Expo". A atmosfera estava estranha, triste, mais parecia um velório.
"Ficamos sentados conversando sobre o que acontecera e chegamos à conclusão de que de fato éramos um bando danado de esquisito", conta Ekman. "Lá estava eu, que trabalhava para a TV Strix, que pertence ao Grupo MTG, um bastião do capitalismo, acompanhado de liberais e esquerdistas. Todos nós sentados juntos ali. É algo que diz muito sobre Stieg."
De manhã, Mikael tomou o primeiro avião de volta. Encontrou Eva e Erland no elevador, subindo para a "Expo". Diz que na véspera se manteve firme depois das notícias, mas assim que passou pela soleira da porta de entrada no escritório, "desatou a chorar como uma criança", porque estava tão vazio. O futuro também parecia incerto. O que aconteceria com a "Expo" agora? Àquela altura, quase não se pensava nos romances de Stieg, ainda não publicados. A noção de que tudo mudaria, de que tudo iria virar de cabeça para baixo por causa daqueles livros, não era nem sequer um vislumbre no horizonte.


Nenhum comentário:

Postar um comentário