O antropólogo Luiz Eduardo Soares adverte: o debate sobre drogadicção deve deixar mitos de lado em prol de nova política para lidar com usuários, viciados e traficantes
Andréa Máris Campos Guerra e Regina Teixeira da Costa
Estado de Minas - 27/10/2012
Em Brasília, jovem participa de manifestação em favor da legalização da maconha
Tempos modernos, satisfações imediatas, urgências subjetivas e violência urbana afastam o cidadão da vida tranquila, pacífica e desejável. Muitos são os mitos e preconceitos que o cercam: entre eles, vastas confusões permeiam crenças a respeito da drogadicção. Preconceito, vício e criminalização são alguns temas abordados pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares nesta entrevista.
Ex-secretário nacional de Segurança Pública, ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro, ex-assessor especial de Segurança Pública da Prefeitura de Porto Alegre e ex-secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ), Soares lançou vários livros e teve papel destacado na equipe que idealizou o filme Tropa de elite. O intelectual fluminense é um dos convidados do 1º Fórum de Orientação Lacaniana, que organizou o debate Drogas: para além da segregação. O evento faz parte da programação da 17ª Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, que será encerrada hoje, no Espaço Cento e Quatro, em BH.
Drogas ilícitas e preconceito
» “Há muita fantasia, muito preconceito e pouco conhecimento da complexidade das questões relativas às drogas ilícitas. Em primeiro lugar, elas são diferentes entre si, as modalidades de consumo são distintas, as experiências que suscitam são incomparáveis, suas implicações sociais, culturais e fisiológicas são diversas, os comportamentos e valores aos quais mais frequentemente se associam são diferentes. Portanto, não faz sentido falar em drogas como se a palavra, ainda que no plural, se referisse a uma única entidade ou carregasse um único sentido.”
» “Em segundo lugar, não tem cabimento a suposição generalizada no senso comum de que de uma droga o usuário passa a outra – evolução inexorável entre progressivos patamares de gravidade e risco, dos pontos de vista da saúde e da ordem social, como se ambas, a saúde e a ordem, se espelhassem. O universo das drogas não é um território contínuo e homogêneo. O que transmite a impressão artificial de unidade e univocidade é o fato político da criminalização do uso e do comércio. O estigma e a ilegalidade unificam um conjunto heterogêneo de fenômenos. Paira sobre esse conjunto a sombra da desordem social e fisiológica, sociológica e biológica, cultural e natural, política e clínica.”
O debate e o combate
» “Está difundida a ideia de que o debate sobre política de drogas é uma discussão sobre o potencial destrutivo das substâncias psicoativas, colocando-se a favor da proibição aqueles que o reconhecem e contra os que, supostamente, o negariam. Como se a divergência fosse médica ou científica, ou técnica, ou biológica. Essa ideia é falsa. O que está em jogo não são as drogas; o que está em jogo é a proibição: quem e com que autoridade discursiva – ou relativa ao saber – tem legitimidade para estabelecê-la e a que preço o faz? Parte-se da equivocada pressuposição de que seria possível impedir o acesso às drogas. Bastaria que a legislação proibisse e que as instituições policiais atuassem com eficiência. O equívoco está mais do que demonstrado pelos dados empíricos amplamente conhecidos. Os países que declararam guerra às drogas e investiram bilhões de dólares, justamente aqueles que dispõem das polícias mais eficientes e aparelhadas, não conseguiram impedir o acesso às drogas, ao longo das últimas décadas. O consumo não caiu, o preço não subiu e o tráfico internacional vai muito bem, obrigado. Não resta dúvida de que, quando há demanda individualizada intensa e oferta ampla, essas pontas inventarão um meio de encontrar-se, a menos que se construa um Estado totalitário.”
» “As consequências dessa política têm sido trágicas: a população carcerária cresceu vertiginosamente (o foco da repressão tem sido negros e pobres), a corrupção de policiais e de autoridades se intensificou dramaticamente, os usuários que abusaram do consumo e que vivenciaram dependência relativamente a algumas das drogas ilegais não contaram com ajuda, as drogas não se submeteram a qualquer controle de qualidade e esse mercado não sofreu nenhuma regulamentação. Ou seja, paradoxalmente, o pretenso controle do Estado gerou a indisciplina mais extrema. Morre-se mais pela ingestão de substâncias que adulteram a cocaína do que pelo consumo da própria. O crack é um derivado venenoso e barato da pasta base da coca, induzido pela proibição. A violência do tráfico também é vicária da proibição.”
Drogas e crime
» “Esta é uma imagem construída com os ingredientes perversos e letais do racismo e do preconceito de classe: de um lado, o usuário, definido como um pobre coitado, a vítima, ‘o viciado’, que deve ser protegido pelo Estado contra o assédio de traficantes, vistos como figuras monstruosas, que desencaminham os consumidores, abusando de sua suposta ‘vulnerabilidade moral e psicológica’. Esse caso extremo, essa polaridade maniqueísta pode existir. Como pode existir o contrário: o consumidor que induz um jovem vulnerável a participar da dinâmica comercial do tráfico para servi-lo, levando e trazendo a droga em troca de recompensa. Mas os casos singulares não correspondem ao processo, em seu conjunto. O que caracteriza o processo é a presença de dois atores sociais que trocam entre si, por exemplo, um cigarro de maconha por determinada importância em dinheiro. Em geral, com frequência, dois jovens, um branco, outro negro, um de classe média, outro mais pobre, um morador de bairros que contam com serviços públicos, outro residente em vilas, favelas ou periferias, áreas menos atendidas pelo Estado, um com mais chances de se beneficiar de um grau mais elevado de escolaridade do que o outro. Eles trocam entre si um produto por dinheiro. Quem vende pode jamais ter pegado em uma arma na vida. Pode não ter essa prática como profissão ou pode adotá-la, temporariamente. Quem vende pode também, em outro momento, comprar para si. Quem compra pode vender a amigos.”
» “Chamar um de criminoso hediondo e outro de ‘vítima’ da manipulação de terceiros ou da própria fraqueza não faz nenhum sentido, ou melhor, só faz sentido para quem não olha a realidade nos olhos e apenas enxerga os próprios preconceitos – que se radicam, profundamente, em nossa história. Por isso, parece-me perverso, a despeito das boas intenções e de alguns ganhos tópicos que promova, o movimento recente de grupos progressistas e esclarecidos, tendente a descriminalizar o consumo da maconha, por exemplo, mas ao preço de lançar ao inferno o ‘traficante’, destinado a concentrar sobre si os males e os efeitos do processo de criminalização.”
» “A ligação entre drogas e crime decorre da criminalização do uso e do comércio das drogas. Os casos extremos do álcool, na violência doméstica contra mulheres, e do crack, na microcriminalidade urbana contemporânea, nos mostram como é nocivo o estabelecimento dessa ligação no imaginário coletivo e na consciência de gestores. Quando se atribui ao álcool o lugar de causa da violência doméstica, perde-se de vista a responsabilidade individual e a ação de um sujeito, formado por uma cultura machista que autoriza (psicológica, simbólica e culturalmente) a violência contra a mulher. O álcool é consumido como parte de uma dinâmica, geradora de condições que favorecem a emergência de uma brutalidade previamente autorizada. Por outro lado, a dependência do crack estimula ações desesperadas, voltadas para a obtenção de meios que viabilizem o uso repetido da droga. Mas a prevenção do estabelecimento dessa dependência e a atenção terapêutica apropriada não podem se realizar, em sua plenitude, quando todo esse universo de práticas, relações, experiências e sentimentos aparece sob o véu obscurantista de uma maldição, cuja fonte é a criminalização. A própria substância não existiria, nem seria comercializada, não imperasse a lógica econômica, política e social da criminalização e da repressão, abrindo a brecha para derivados das substâncias matriciais.”
O vício e a ‘experiência’
» “Minha interpretação sugere que procuremos o lado B do mundo das drogas, o lado ignorado da relação com as drogas, o lado que explica por que, afinal de contas, a despeito de todos os riscos para a saúde e apesar de tantas ameaças de punição e de tantos estigmas, a droga continua a ser desejada. É preciso reconhecer a dimensão do prazer, do desejo, de um movimento autêntico de busca, aquém e além das compulsões ou dependências, que constituem o lado A da problemática, isto é, a face conhecida, sempre focalizada, tematizada, destacada. Analiticamente, diríamos: o lado B que precisamos conhecer é a positividade do fenômeno, no sentido lógico da palavra. O consumo de drogas é algo que precisa ser estudado, interpretado, compreendido, sem que se neguem todas as outras questões destrutivas, negativas. Até mesmo para que se estabeleça alguma comunicação digna desse nome com os usuários. Pagando-se tantos preços, o que é que se busca, quando se busca a droga? O fenômeno é plural e heterogêneo.”
» “Quando não estamos no terreno da dependência, quando ainda se preserva o poder da escolha, da decisão, do investimento relativamente autônomo do desejo, parece-me que o que se busca é o que chamo ‘a experiência’. O que seria isso? Um passeio por si mesmo ao redor dos outros; um passeio pelos outros, ao redor de si mesmo; um percurso pelos sentidos, para além da linguagem e dos parâmetros culturais e sociais. Um tour desmapeado surpreendente que force limites e explore possibilidades remotas do humano. Uma viagem que, por alguns momentos, instaure um objeto, no caso, uma memória, um conjunto de sensações e emoções, vislumbres, enfim, um repertório irredutivelmente singular e, portanto, diferente, mas, sobretudo, refratário à troca. Vejamos o que significa, aqui, muito precisamente, ser refratário à troca. Significa não ser passível de conversão em valores intercambiáveis, não ser traduzível por uma medida comum, por uma moeda. Em um mundo regido pela mercantilização de (quase) tudo, riscar o círculo de giz em torno de si, inscrever no chão comum um recorte insular, marcar para si uma diferença irredutível corresponde a um movimento que talvez não signifique nada, em si mesmo, mas que talvez torne possível, para o sujeito, a significação da significação, ou melhor, o sentido de existir como pessoa em sociedade, como ser de linguagem, em um contexto reificador e fetichista, no qual a alienação é não só inexorável como constitutiva dos sujeitos. O que digo não implica ou pressupõe qualquer idealização das relações com as drogas, até porque a contrapartida da singularização proporcionada pela experiência, à qual me refiro, é a finitude, a morte. Meu propósito é chamar a atenção para a importância de oferecer uma escuta e valorizar a busca subjacente a ações de risco.”
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