sábado, 27 de outubro de 2012

TENDÊNCIAS/DEBATES


ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA

A jurisprudência do mensalão cria precedentes perigosos na segurança processual e nos direitos do acusado?

SIM

O destino do "in dubio pro reo"

Alvo de televisionamento, contendo o envolvimento de figuras proeminentes do mundo político, financeiro e publicitário. Colocado como um julgamento do comportamento ético de um partido político e dos seus governos. Posto como teste da imparcialidade do STF, pois a maioria dos seus integrantes foi nomeada pelos dois últimos governos. Envolvendo a sedimentada ideia de que no país as classes privilegiadas não são punidas.
O julgamento do chamado mensalão, com tudo isso, deixará marcas profundas no comportamento dos que operam o direito, como nos tribunais inferiores, e no próprio (in)consciente coletivo. Assim, certos aspectos de maior repercussão podem ser apontados, sem embargo de outros e dos efeitos do julgamento que só o futuro mostrará.
Para alguns ministros, nos crimes de difícil comprovação, o juiz não precisa de provas cabais, bastando indícios ou até a sua percepção pessoal para proferir uma condenação.
Em outras palavras, permite-se que o magistrado julgue por ouvir dizer, com base na verdade tida como sabida, mas não provada. Estará assim, na verdade, julgando com os sentidos e não com as provas.
É da tradição do direito penal dos povos civilizados a necessidade da certeza para uma condenação. Caso o juiz não tenha a convicção plena da responsabilidade do acusado, deverá absolve-lo. Trata-se do consagrado "in dubio pro reo" -na dúvida, absolve-se. Mais do que jurídica, essa máxima atende ao anseio natural de liberdade e de justiça. Não é justo punir-se com dúvida.
Alguns ministros, porém, pregaram a responsabilidade objetiva, com desprezo ao comportamento e à vontade do acusado.
Autoria criminal implica em um comportamento comissivo ou omissivo e na vontade dirigida à prática criminosa. Exemplificando para explicar: a condição pessoal, digamos, do dirigente de uma empresa, por si só, não o torna culpado por crimes cometidos em prol de tal empresa.
Utilizou-se a teoria já antiga do domínio do fato para justificar punições incabíveis. No entanto, ao contrário do propalado, essa teoria exige justamente que o autor vincule-se ao crime pela ação e pela vontade de agir criminosamente.
Alguns pronunciamentos trouxeram preocupante imprecisão ao conceito de lavagem de dinheiro. Consiste na conduta utilizada para emprestar aparente licitude ao produto de um crime, ocultando e dissimulando a sua origem. Há a necessidade de uma ação concreta, diversa do crime anterior.
No entanto, alguns julgadores, de forma imprecisa, parecem querer considerar lavagem a mera utilização do produto do outro delito.
Usar o dinheiro sem a simulação de sua origem não é lavagem, mas natural decorrência do crime patrimonial. Considerar o mero uso como outra figura penal é admitir crime sem conduta própria e permitir dupla punição a só uma ação.
A sociedade não ficou inerte e nem apática. Reagiu ao julgamento, em regra aplaudindo condenações e criticando absolvições. Conclui-se que a expectativa é pela culpa e não pela inocência. Isso é fruto da disseminação de uma cultura punitiva, de intolerância raivosa e vingativa, que tomou conta da nossa sociedade, fazendo-a apenas clamar por punição, sem pensar em prevenir o crime, combater suas causas.
Não pode passar sem registro um outro aspecto extraído ou confirmado pelo julgamento do mensalão: o poder da mídia para capturar a vaidade humana e torná-la sua refém.
Nesse sentido, um alerta: todos nós, integrantes da cena judiciária, deveremos administrar as nossas vaidades, para que ela não se sobreponha às responsabilidades que temos para com o seu principal protagonista, o cidadão jurisdicionado.
ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA, 67, é advogado criminalista. Foi presidente da OAB-SP (1987-1990) e defende Ayanna Tenório no julgamento do mensalãoAbus


JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOA

TENDÊNCIAS/DEBATES

A jurisprudência do mensalão cria precedentes perigosos na segurança processual e nos direitos do acusado?

NÃO

É infundado enxergar inovações penais

Propala-se que o caso do mensalão constitui julgamento de exceção, quando, na verdade, revela-se um dos mais circundados por garantias, pela transparência e pelo fato de os magistrados mais preparados da nação terem efetivamente se debruçado sobre os autos.
Todas as questões foram objeto de intenso debate. Em nenhuma oportunidade se verificou o comodismo de seguir o relator ou o revisor. Cada julgador se dedicou à causa com esmero digno de quem julga isoladamente.
A alegação de que o ministro que presidiu o inquérito não poderia relatar o feito não procede, pois, em todas as megaoperações, o juiz que autoriza quebra de sigilos é o mesmo que recebe a denúncia e profere a sentença final.
A pretensão de recorrer a cortes internacionais chega a ser hilária, pois a comunidade internacional tem justamente cobrado do Brasil rigor com a corrupção. Intrigará ver o mundo noticiando que membros do poder Executivo compraram membros do poder Legislativo, com dinheiro público, e ainda se entendem vítimas de violação de direitos fundamentais.
Ademais, a garantia do duplo grau se deve ao temor de uma única mente humana decidir a vida de alguém, sem possibilidade de recurso. No julgamento do mensalão, os magistrados de mais elevado saber decidiram, em colegiado, mediante profunda reflexão. Se o foro privilegiado fere direitos, altere-se a legislação que vigora para todos.
Falar em inovações penais resta ainda mais infundado.
Os mais básicos manuais de direito penal, quando tratam do concurso de agentes (situação em que mais de uma pessoa comete um crime), adotam como teoria central a do domínio do fato - tem o domínio do fato quem tem o poder de interromper a execução de um crime.
Estabeleceu-se infundada confusão com a chamada teoria do domínio da organização, pela qual os líderes do grupo haveriam de responder, automaticamente, por todos os crimes perpetrados: peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro e corrupção. Justamente por adotar a teoria do domínio do fato, o STF não condenou os líderes da quadrilha por todos esses crimes.
Vale, no entanto, esclarecer que, mesmo na sistemática do Código Penal vigente, a punição seria possível, tendo em vista que o artigo 62, inciso I, prevê até que a pena de quem dirige a atividade criminosa dos demais será agravada.
Ora, dado que foi criada verdadeira estrutura criminosa, com engrenagens bem definidas, especialmente destinadas à prática de crimes, com o fim último de corromper parlamentares, evidente que a punição por quadrilha fica até aquém do que a lei permite.
A corrupção já é deletéria quando praticada com recursos privados. No caso, os parlamentares foram corrompidos com recursos, em grande parte, públicos. Essa particularidade não pode passar despercebida.
Os poderosos condenados, apesar de insistirem em ver como elite apenas quem não está ao seu lado, também devem sofrer as consequências da lei. O cárcere não serve apenas para o infeliz que atenta contra o patrimônio, muitas vezes, sem violência. Ninguém pode ser considerado criminoso por ser político. No entanto, a política não pode servir de escudo para livremente delinquir.
A quadrilha foi instituída, no centro do poder, para a prática de crimes que, separadamente, já seriam muito reprováveis; em conjunto, vulneraram a própria democracia.
Um golpe não necessariamente se dá por meio de armas, pode ocorrer mediante pagamentos institucionalizados. O STF não só está aplicando a lei prevista para todos os mortais. Está fazendo valer a divisão de poderes, cumprindo seu papel de guardião da Constituição Federal.
JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 38, advogada criminalista, é professora livre-docente de direito penal na USP

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