quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Raras, mas expressivas - Márcia Maria da Cruz‏

Doenças que têm prevalência de um caso para 100 mil pessoas são consideradas erros inatos do metabolismo. Diagnóstico precoce é imprescindível para sobrevida e qualidade de saúde do paciente 


Márcia Maria da Cruz
Estado de Minas: 08/11/2012 

João Vitor de Andrade Farias, de 8 anos, está com 11,5 quilos, bem abaixo do peso de crianças de sua faixa etária, que é entre 21 e 30 quilos. A altura também não é compatível com outros garotos de sua idade. Tem 95 centímetros, quando teria que estar com pelo menos 1,20 metro. Ele não controla o movimento de braços e pernas e também não fala. O atraso no desenvolvimento de João se deve à deficiência da enzima glutaril-CoA desidrogenase. O menino é portador da acidúria glutárica tipo 1, uma das 500 doenças causadas por erros inatos do metabolismo. “Cada uma de nossas células é como uma usina. Se falta uma peça, elas acumulam ou deixam de produzir uma substância”, afirma a pediatra e geneticista Eugênia Valadares, do Ambulatório de Erros Inatos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 
Essas doenças, por terem a prevalência de um caso para 100 mil pessoas, são consideradas raras. No entanto, embora isoladamente sejam raras, elas, em conjunto, são expressivas. João Vitor só foi diagnosticado aos 3 anos e 7 meses, o que impediu que a doença fosse tratada antes que os sintomas se manifestassem. A importância de diagnósticos precoces foi discutido durante o Simpósio Erros Inatos do Metabolismo: fenótipos, doenças e tratamentos, promovido na semana passada pela Sociedade Mineira de Pediatria.

Durante o encontro, os médicos propuseram a incorporação da espectrometria de massa em tandem durante a triagem neonatal. A espectrometria tem capacidade de identificar 20 doenças causadas por erros inatos. Atualmente, a triagem conta com o teste do pezinho, cuja versão oferecida na rede pública detecta apenas uma dessas doenças raras, a fenilcetonúria, embora permita a identificação de outros problemas, como hipotiroidismo congênito, anemia falciforme e fibrose cística. 
No Brasil, existem poucos equipamentos para a realização da espectrometria de massa em tandem: no Rio de Janeiro, Campo Grande, Porto Alegre, Curitiba e São Paulo. A exemplo do teste do pezinho, o exame é feito a partir de gotas de sangue coletadas em papel filtro. Para descobrir os erros inatos do metabolismo, em alguns casos, os profissionais precisam enviar o material para ser analisado no exterior, no Japão, Alemanha e Estados Unidos.

A experiência da Clinic for Special Children, na Pensilvânia (EUA), foi apresentada durante o simpósio pelo pediatra Kevin Strauss. O médico e sua equipe cuidam pacientes das populações menonita e amish, em que já foram identificadas 110 mutações. A alta incidência de doenças raras nessas populações pode ser explicada pelo índice de casamentos consanguíneos. O tratamento das patologias na clínica, no entanto, virou referência mundial dada a eficácia do diagnóstico. “Logo que o bebê nasce, a parteira colhe amostra do sangue do cordão umbilical e envia para ser analisada”, informa Eugênia Valadares, que presidiu o simpósio. Strauss desenvolveu uma tecnologia que permite a identificação rápida das mutações mais comuns. Isso possibilita a prescrição de tratamentos para a criança desde os primeiros anos de vida, antes mesmo que a doença se manifeste.

Os métodos de diagnóstico não podem ser replicados no Brasil, uma vez que foram feitos para identificar problemas em uma população fechada. No entanto, Eugênia destaca a importância de se criarem estratégias para universalizar os métodos disponíveis de diagnóstico. Em outras palavras, se houver por parte dos governos investimento na identificação precoce das doenças, muitas crianças poderão conviver com a doença, mas com qualidade de vida.

A pediatra e geneticista lembra que o nível de desenvolvimento econômico do Brasil já permite o avanço no processo de diagnóstico dos erros inatos. Ao universalizar esses métodos, que ainda não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), ela acredita que haveria redução na taxa de mortalidade no país. Segundo Eugênia, muitas crianças morrem sem sequer ter a doença identificada. Além de aprimorar métodos de diagnóstico, é necessário capacitar os profissionais de saúde para interpretar e lidar com os dados. 

Tratamento nem sempre é caro

As doenças raras são associadas a tratamentos caros, mas nem todas precisam de medidas dispendiosas. O tratamento da acidúria metilmalônica, por exemplo, é feito apenas com a injeção de vitamina B12. A médica Eugênia Valadares lembra que já atendeu uma família do interior de Minas que  havia perdido cinco crianças vítimas da doença. Ao ser encaminhada ao Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte, a família conseguiu diagnosticar o problema e com a medida simples impediu que mais um filho morresse. “O pai me falava emocionado que não era para nenhum de seus filhos ter morrido se ele soubesse do tratamento”, diz. 
A avó de João Vitor, que cuida do menino, precisou acionar a Justiça para conseguir o medicamento recomendado para a deficiência do garoto. Como não existe no mercado brasileiro, o remédio precisa ser importado. A acidúria glutárica tipo 1 não permite que João ingira proteínas, o que restringe muito sua dieta. “A Justiça autorizou o fornecimento do medicamento há um mês, mas ainda não o recebemos. Sem essa fórmula especial, ele está perdendo peso”, reclama Dalva Helena Soares da Silva, de 48 anos. De Bom Despacho, na Região Centro-Oeste de Minas Gerais, a família precisa estar a cada dois meses no Hospital das Clínicas/UFMG, centro de referência em pesquisa de erros inatos do metabolismo no Brasil, para fazer o controle da doença.

Problemas genéticos
 
 Os erros inatos do metabolismo (EIM) constituem um grupo heterogêneo de defeitos genéticos que afetam a síntese, degradação, processamento e transporte de moléculas no organismo
 
Individualmente raros, em seu conjunto representam uma situação frequente, com uma prevalência estimada de um para 100 mil indivíduos. Ao contrário da maioria das doenças genéticas, muitos EIM têm condições tratáveis
 
As doenças genéticas constituem um dos principais grupos de doenças raras e têm sido consideradas, cada vez mais, significativas causas de mortalidade infantil no Brasil



A dupla dor de uma mãe

Maria Isabel Siqueira sabe bem a importância do diagnóstico precoce de erros inatos do metabolismo. As duas filhas da assistente social  nasceram com  a doença conhecida como ‘xarope de bordo’. A primeira filha, Marina, só foi diagnosticada três meses depois que morreu. O problema foi identificado nos primeiros dia de vida da segunda filha, Ana Luísa. Em razão do diagnóstico precoce, a menina cresceu saudável até os 8 anos, sem que as complicações da doença se manifestassem.
No ano passado, no entanto, devido à dificuldade na realização de um exame para medir a quantidade dos aminoácidos leucina, isoleucina e valina, a menina entrou em uma crise e não resistiu. “Ana Luísa era meu tudo, minha alegria. Vivia sorrindo e não reclamava das restrições alimentares”, lembra. Isabel espera que o conhecimento sobre o tratamento da doença que os médicos adquiriram ao tratar de Ana Luísa possa ser usado para impedir que outras crianças com o problema venham a ter a mesma história. "Quero cada vez mais ajudar nessa causa, de divulgar as doenças raras para que outras mães não passem pelo que passei. Ainda não estou forte o suficiente para me engajar em campanhas ou falar mais profundamente sobre o assunto, mas em breve estarei. Quero dar minha contribuição", diz.

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