quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Uma loja, tão mais que isso - Marina Colasanti‏


Marina Colasanti
Estado de Minas: 15/11/2012 
Na minha rua foi inaugurada uma nova loja de conserto de sapatos. Limpa, moderna, escaninhos sobrepostos, jovens funcionários uniformizados. Tomou o lugar que sempre vi ocupado por outra do mesmo ramo, um lugar mínimo, dois metros e meio de frente, e o resto, como corredor ou serpente, alongando-se para os fundos. 

Era imunda, a outra. Os sapatos jaziam no chão em pilhas desordenadas junto às paredes, acumulavam-se em estantes, pendiam do teto parecendo morcegos. Eram eles, talvez, que davam à loja um aspecto de caverna. Ou era a luz pouca que, entrando pela porta sempre aberta, ia se perdendo à medida que mergulhava naquela estranha espécie de poço horizontal. 

Tudo tinha a mesma cor de poeira e sombra, uma cor animal, densa, não pousada sobre as coisas, mas parte delas. E idêntica cor impregnava o ar, lhe dava cheiro.

 Trabalhavam ali três homens. Os três de poucas palavras, magros e escuros, na pele ou na roupa que se confundia com a pele. Sentiam sempre calor, braços de fora testa molhada, fumavam. Às vezes havia um gordo, mais pálido, como se vindo de fora e alheio àquele ambiente, que de pé trocava informações ou dava ordens. Nunca o vi sentado.

Os outros sim, estavam sempre sentados naquelas banquetas baixas com o assento de tiras de couro trançado, talvez feitas por eles mesmos. Sentados diante da mesinha que se usa na profissão, também baixa, que deve ter um nome próprio mas desconheço, de beiradas mais altas para que não caíam os pregos de todo tipo, as ferramentas, as agulhas e graxas, e, naquela loja, o cinzeiro cheio onde apoiavam a bagana acesa. Eles ali, dobrados sobre o trabalho, coluna em curva, um sapato no colo, e as mãos cuidando dele, conhecedoras do seu fazer. 

 Sempre sujas as mãos, luto nas unhas. Assim as via, quando um deles, em geral o mesmo, o que trabalhava mais próximo do balcão, vinha me atender. Os outros apenas levantavam a cabeça, como se a minha presença vedasse um sol inexistente, e logo voltavam a abaixá-la. Era dizer o que se desejava, se saltinho, costura, ou pôr na fôrma, e o homem olhava para o sapato imprimindo nele ou em si mesmo o pedido, para só depois anotar na sola, com lápis cera, o endereço, e atirar o sapato no monte que, de alguma forma só conhecida por eles, lhe cabia.

Havia um rádio de pilha, pequeno, eternamente ligado. Mas o som era baixo, colhido só por eles antes de ir deitar-se lá no fundo, e mais vejo na memória a sua mínima luz, do que lhe ouço a música. 

E agora há que confessar, amava aquela loja. Loja nem é a palavra, mais certo dizer ninho de remendões. Dei-me conta disso ao chegar diante da loja nova, tão ordenada, tão clara, onde o trabalho não se vê, só os sapatos embrulhados, em seus escaninhos. Chegar, ser atendida pelos novos funcionários e sentir súbita no peito uma saudade, uma ausência.

Era, a antiga caverna, um momento de idade média em pleno século 21, remanescente última das guildas. Aqueles homens sombrios sabiam-se pertencentes à antiga casta dos artesãos e, como tais, prestes a desaparecer. E se varriam a poeira pobremente, apenas para abrir uma trilha sobre os azulejos, é porque sentiam não haver meio de combatê-la, milenar poeira da tradição, camada pousando sobre camada, uma soterrando a outra, inexoravelmente.

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