Max Milliano Melo
Estado de Minas: 24/12/2012
Portas são geralmente associadas a novas oportunidades, vistas como um símbolo de caminhos que se abrem e de soluções para os problemas. Mas a pequena Ilha de Gorée, a três quilômetros da costa de Dakar, no Senegal, guarda uma passagem com um significado muito mais profundo e doloroso. Sob o pequeno portal de pedras, localizado no térreo de uma edificação do século 18, cerca de 1 milhão de africanos passaram. Do outro lado da abertura, ficavam os tumbeiros, navios que transportavam os negros para uma viagem que, na imensa maioria das vezes, não tinha volta. Após cruzarem a chamada Porta sem Retorno, as almas aprisionadas eram levadas para diversas partes do mundo, especialmente para o Brasil, que abrigou a maior população de escravos do mundo.
As mãos negras colheram o algodão branco do sertão, cortaram os pés de cana-de-açúcar do Nordeste, extraíram os diamantes reluzentes das minas e cultivaram o café, ouro negro brasileiro. Essas mesmas mãos – muitas vezes amarradas, para exercer sobre o corpo o controle que não se tinha da mente desses exilados – construíram outro tipo de riqueza, inestimável, até hoje expressa na beleza do samba, no esplendor do candomblé, na exuberância do tambor de crioula e em tantas outras manifestações que tornaram rica e diversa a cultura do último país do mundo a abolir a escravidão.
Apesar de a história ensinada nas escolas reservar pouco espaço para a cultura negra e a memória da escravidão – a maior tragédia da humanidade em número de vítimas –, os escravos tiveram um papel fundamental na construção da identidade nacional. O mesmo fizeram em todas as outras regiões para as quais foram forçados a ir. Assim, a história do negro é também a história do branco, do índio e do asiático, porque a cultura e o destino desses povos estão diretamente ligados ao convívio com os modos, os costumes e o pensamento dos africanos arrancados de sua terra e de seus descendentes.
Às vésperas do início das comemorações da Década para as Pessoas com Ascendência Africana, declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Estado de Minas publica série de reportagens sobre a memória da escravidão e seus efeitos sobre o mundo, sentidos até hoje.
“Macumba é bruxaria.” “Mulher negra é mais fácil.” “Homens negros são mais viris.” “Os negros são pessoas alegres e festivas.” Essas são algumas das respostas que pessoas abordadas nas ruas dão quando perguntadas sobre aspectos da cultura afro. A ignorância sobre a realidade, sobre as tradições e sobre os costumes do mais numeroso grupo da população brasileira é fruto do tratamento que os africanos e seus descendentes receberam desde que os primeiros navios negreiros, ou tumbeiros, começaram a aportar na costa do país. Inicialmente escravizados, tornaram-se, há um século e meio, homens livres, mas abandonados à própria sorte pelo Estado.
A abolição da escravidão não os livrou das visões deturpadas, que se multiplicaram. O fenômeno não é exclusividade brasileira, tanto que as Nações Unidas declararam o período entre 2013 e 2023 a Década para as Pessoas com Ascendência Africana. A data servirá para promover ações que ajudem os afrodescendentes do mundo todo a conquistarem a cidadania plena. Estão previstas também iniciativas que valorizem a história e a cultura desses povos.
No Brasil, a luta contra o preconceito ainda tem um longo caminho a ser percorrido. A antiga imagem do malandro, especialista em pequenos golpes, desempregado e morador das regiões boêmias das grandes cidades, é um dos vários estereótipos já criados por um Brasil onde ser negro não é visto como uma característica positiva. “Tradicionalmente, a indústria cultural se apropriou de alguns aspectos da cultura negra, transformando-a em mercadoria”, afirma Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), da Universidade de Brasília. “Está aí o carnaval, uma festa que movimenta milhões de reais, rende muito dinheiro para alguns, mas muitas vezes não é instrumento de promoção da cidadania negra”, diz o pesquisador.
Esse processo de desvalorização cultural iniciou-se logo depois da abolição da escravatura, no fim do século 19. Se, antes, o negro era mercadoria desumanizada, passou a ser visto como ser inferior. “Nesse contexto, o Brasil assumiu uma política de branqueamento da população, renegando o negro e promovendo a imigração de poloneses, italianos, austríacos, japoneses”, diz Inocêncio. “Há documentos do final do século 19 e início do 20 mostrando que esse era um objetivo muito claro, quando o poder público passou a estimular a vinda desses povos”, completa.
Assim, ser negro continuou sendo motivo de vergonha para muitos indivíduos. “O Brasil foi aprovar sua primeira lei não criminal para garantir a cidadania negra quase 150 anos depois de abolir a escravidão. Antes disso, o Estado se furtou da sua obrigação de promover a melhoria da qualidade de vida das pessoas com ascendência africana”, afirma Eloi Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura.
A norma a que ele se refere é a Lei nº 2.288/2010, o chamado Estatuto da Igualdade Racial, que prevê uma série de medidas para a promoção da cidadania negra, como a obrigatoriedade do ensino de história africana nas escolas, o reconhecimento de que a capoeira é um esporte e deve receber apoio do Estado e a garantia da livre prática de religiões de matriz africana, como o candomblé, a umbanda e o ketu. A lei, em vigor há pouco mais de dois anos, também busca impedir a discriminação no mercado de trabalho. “O problema é a aplicação. Qualquer política voltada para os negros enfrenta grande resistência. Há uma dificuldade de reconhecer que há uma compensação a ser feita”, avalia Inocêncio.
Resgate mundial A desvalorização da cultura de origem africana pode ser percebida no restante do mundo. Apenas 9% dos patrimônios culturais e naturais da humanidade reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) são localizados na África Subsaariana, região que concentra 14% da população mundial. Já a Europa, lar de 11% dos habitantes da Terra, possui quase metade desses bens, num exemplo de que a visão eurocêntrica persiste. Por outro lado, 42% dos patrimônios em risco de desaparecimento estão na região subsaariana. “Muitos países não têm recursos humanos e financeiros para garantir o reconhecimento de seus locais de singular importância”, lamenta Irina Bokova, diretora-geral da Unesco.
A partir da iniciativa da ONU, os próximos 10 anos serão essenciais para o processo de resgate da identidade dos afrodescendentes e a promoção de avanços sociais na África. A ação surgiu da constatação de que a realização do Ano Internacional das Pessoas com Ascendência Africana, declarado em 2011, não foi suficiente para avanços contundentes. “Verificou-se que, apesar do grande número de ações por parte de alguns Estados, organizações internacionais e sociedade civil, o trabalho a ser feito para promover significativamente o direitos das pessoas de ascendência africana não poderia, em um único ano, chegar a resultados que atendessem às expectativas”, completa Bokova, ressaltando que existe um longo caminho a ser percorrido para que todos, independentemente da cor da pele ou origem geográfica, sejam tratados de forma igual.
As mãos negras colheram o algodão branco do sertão, cortaram os pés de cana-de-açúcar do Nordeste, extraíram os diamantes reluzentes das minas e cultivaram o café, ouro negro brasileiro. Essas mesmas mãos – muitas vezes amarradas, para exercer sobre o corpo o controle que não se tinha da mente desses exilados – construíram outro tipo de riqueza, inestimável, até hoje expressa na beleza do samba, no esplendor do candomblé, na exuberância do tambor de crioula e em tantas outras manifestações que tornaram rica e diversa a cultura do último país do mundo a abolir a escravidão.
Apesar de a história ensinada nas escolas reservar pouco espaço para a cultura negra e a memória da escravidão – a maior tragédia da humanidade em número de vítimas –, os escravos tiveram um papel fundamental na construção da identidade nacional. O mesmo fizeram em todas as outras regiões para as quais foram forçados a ir. Assim, a história do negro é também a história do branco, do índio e do asiático, porque a cultura e o destino desses povos estão diretamente ligados ao convívio com os modos, os costumes e o pensamento dos africanos arrancados de sua terra e de seus descendentes.
Às vésperas do início das comemorações da Década para as Pessoas com Ascendência Africana, declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Estado de Minas publica série de reportagens sobre a memória da escravidão e seus efeitos sobre o mundo, sentidos até hoje.
“Macumba é bruxaria.” “Mulher negra é mais fácil.” “Homens negros são mais viris.” “Os negros são pessoas alegres e festivas.” Essas são algumas das respostas que pessoas abordadas nas ruas dão quando perguntadas sobre aspectos da cultura afro. A ignorância sobre a realidade, sobre as tradições e sobre os costumes do mais numeroso grupo da população brasileira é fruto do tratamento que os africanos e seus descendentes receberam desde que os primeiros navios negreiros, ou tumbeiros, começaram a aportar na costa do país. Inicialmente escravizados, tornaram-se, há um século e meio, homens livres, mas abandonados à própria sorte pelo Estado.
A abolição da escravidão não os livrou das visões deturpadas, que se multiplicaram. O fenômeno não é exclusividade brasileira, tanto que as Nações Unidas declararam o período entre 2013 e 2023 a Década para as Pessoas com Ascendência Africana. A data servirá para promover ações que ajudem os afrodescendentes do mundo todo a conquistarem a cidadania plena. Estão previstas também iniciativas que valorizem a história e a cultura desses povos.
No Brasil, a luta contra o preconceito ainda tem um longo caminho a ser percorrido. A antiga imagem do malandro, especialista em pequenos golpes, desempregado e morador das regiões boêmias das grandes cidades, é um dos vários estereótipos já criados por um Brasil onde ser negro não é visto como uma característica positiva. “Tradicionalmente, a indústria cultural se apropriou de alguns aspectos da cultura negra, transformando-a em mercadoria”, afirma Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), da Universidade de Brasília. “Está aí o carnaval, uma festa que movimenta milhões de reais, rende muito dinheiro para alguns, mas muitas vezes não é instrumento de promoção da cidadania negra”, diz o pesquisador.
Esse processo de desvalorização cultural iniciou-se logo depois da abolição da escravatura, no fim do século 19. Se, antes, o negro era mercadoria desumanizada, passou a ser visto como ser inferior. “Nesse contexto, o Brasil assumiu uma política de branqueamento da população, renegando o negro e promovendo a imigração de poloneses, italianos, austríacos, japoneses”, diz Inocêncio. “Há documentos do final do século 19 e início do 20 mostrando que esse era um objetivo muito claro, quando o poder público passou a estimular a vinda desses povos”, completa.
Assim, ser negro continuou sendo motivo de vergonha para muitos indivíduos. “O Brasil foi aprovar sua primeira lei não criminal para garantir a cidadania negra quase 150 anos depois de abolir a escravidão. Antes disso, o Estado se furtou da sua obrigação de promover a melhoria da qualidade de vida das pessoas com ascendência africana”, afirma Eloi Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura.
A norma a que ele se refere é a Lei nº 2.288/2010, o chamado Estatuto da Igualdade Racial, que prevê uma série de medidas para a promoção da cidadania negra, como a obrigatoriedade do ensino de história africana nas escolas, o reconhecimento de que a capoeira é um esporte e deve receber apoio do Estado e a garantia da livre prática de religiões de matriz africana, como o candomblé, a umbanda e o ketu. A lei, em vigor há pouco mais de dois anos, também busca impedir a discriminação no mercado de trabalho. “O problema é a aplicação. Qualquer política voltada para os negros enfrenta grande resistência. Há uma dificuldade de reconhecer que há uma compensação a ser feita”, avalia Inocêncio.
Resgate mundial A desvalorização da cultura de origem africana pode ser percebida no restante do mundo. Apenas 9% dos patrimônios culturais e naturais da humanidade reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) são localizados na África Subsaariana, região que concentra 14% da população mundial. Já a Europa, lar de 11% dos habitantes da Terra, possui quase metade desses bens, num exemplo de que a visão eurocêntrica persiste. Por outro lado, 42% dos patrimônios em risco de desaparecimento estão na região subsaariana. “Muitos países não têm recursos humanos e financeiros para garantir o reconhecimento de seus locais de singular importância”, lamenta Irina Bokova, diretora-geral da Unesco.
A partir da iniciativa da ONU, os próximos 10 anos serão essenciais para o processo de resgate da identidade dos afrodescendentes e a promoção de avanços sociais na África. A ação surgiu da constatação de que a realização do Ano Internacional das Pessoas com Ascendência Africana, declarado em 2011, não foi suficiente para avanços contundentes. “Verificou-se que, apesar do grande número de ações por parte de alguns Estados, organizações internacionais e sociedade civil, o trabalho a ser feito para promover significativamente o direitos das pessoas de ascendência africana não poderia, em um único ano, chegar a resultados que atendessem às expectativas”, completa Bokova, ressaltando que existe um longo caminho a ser percorrido para que todos, independentemente da cor da pele ou origem geográfica, sejam tratados de forma igual.
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