segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Luiz Felipe Pondé


FOLHA DE SÃO PAULO
O humanismo do Deus da carnificina
Essa hipótese é conhecida por todo estudioso do cristianismo antigo: Deus pode ser mal
HOJE É véspera de Natal. Noite feliz. Proponho como espiritualidade natalina a hipótese do filme "Deus da Carnificina", de Roman Polanski. O filme é uma peça de teatro, uma prova perfeita de que menos é mais.
O elenco arrasa: Jodie Foster (a chata politicamente correta azeda), Kate Winslet (a gostosa reprimida e histérica que vomita quando fica nervosa e se ressente da ausência do marido que não larga o celular), Christoph Waltz (advogado cínico de uma indústria farmacêutica, marido da Winslet) e John C. Reilly (marido da Foster, aparentemente pacífico e submisso a ela, com medo de hamsters, mas que estoura no fim e a acusa de ser moralista e "fake").
Dois casais se encontram na casa de um deles (Foster e Reilly) para conversar sobre a porrada na cara que o filho deles recebeu do filho do outro casal (Winslet e Waltz).
O que de início parece ser uma conversa civilizada entre pessoas que têm um conflito para resolver num "espírito Obama de ser", do tipo "a guerra do Oriente Médio pode ser resolvida com um ciclo de filmes chatos sobre a paz", acaba por se transformar num desentendimento geral em que as verdadeiras e sombrias personalidades e vergonhas aparecem.
Exceção feita ao advogado que, desde cedo, revela sua impaciência com o blá-blá-blá do amor à África da personagem da Foster e sua ideia de que nós ocidentais de fato superamos nossas misérias em favor de uma sociedade com "consciência social". Consciência social é sempre tão falsa como bolsa Prada "fake", ou se não é falsa, você é um puritano fanático que baba sangue na mesa.
Ela escreve livros sobre Darfur e a miséria na África e, em meio a seus berros contidos de histérica, ela decreta que quem não se preocupa com a pobreza mundial não tem caráter. Tenta passar a imagem de que ama e perdoa a todos, inclusive o filho da Winslet que bateu em seu filho, mas no fundo é uma passiva agressiva, aquele tipo de mulher descrita por Woody Allen, que fala baixinho, mas fere fundo com sua saliva venenosa e cruel.
Outro traço risível da personagem da Foster é seu "amor à cultura". Quando Winslet vomita em seus livros de arte (aquele tipo de livro-trambolho de arte que a classe média "semiletrada", termo usado pelo crítico Otto Maria Carpeaux, deixa em sua mesa de centro como atestado de sua ilustração afetada), Foster começa a gritar e fala como eles procuram dar aos filhos uma educação "cultural" para fazer deles pessoas melhores.
Risadas? Se não bastasse o clichê dos nazistas que choravam com Bach à noite e torravam judeus de dia, qualquer pessoa inteligente e não afetada por essa falácia de que a cultura deixa alguém melhor sabe do ridículo dessa hipótese pedagógica.
Foster é aquele tipo de mãe que acha que seus filhos ficam nas redes sociais discutindo a fome em Zâmbia, quando na realidade estão fazendo bullying em rede com algum colega feio da escola.
O conflito central do enredo se dá entre esse novo puritanismo "fake" que assola o mundo contemporâneo de gente chiquezinha de Nova York e São Paulo (gente que fala frases do tipo "Nova York é outra coisa"), representada por Jodie Foster, e o cinismo niilista do advogado interpretado por Waltz.
A hipótese do advogado, que dá nome ao filme (em inglês "Carnage", que é carnificina), é de que talvez exista um Deus, mas ele é mal e gosta de nos ver nos matando, daí a carnificina. Em oposição ao besteirol da África vítima, ele narra suas viagens à África, nas quais vê como eles se matam entre si com prazer, cortando-se mutuamente em pedaços. E Deus se diverte com isso.
Essa hipótese é conhecida por todo estudioso do cristianismo antigo: alguns textos antigos falam de um Deus mau, o Deus dos gnósticos.
Ele seria um sádico e nos criou para nos torturar. Essa hipótese, com diferenças locais, aparece em heréticos como os bogomilos e cátaros na Idade Média, em Sade no século 18, em Cioran no 20 e em Lars von Trier na sua releitura do Éden, no "Anticristo".
Eu prefiro o niilismo do advogado Waltz ao amor "político" da Foster. Escolho a dor, e não a mentira, porque sou um humanista.

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