Bruna Sensêve
Estado de Minas: 14/03/2013
O sistema imune tem o papel de proteger o organismo e combater a invasão de vírus, bactérias, fungos e parasitas. Seu equilíbrio, no entanto, pode ser quebrado e levar à autoimunidade – conjunto de desordens em que o sistema de defesa se volta contra o próprio organismo. Tudo o que está por trás desse processo ainda é um mistério para a ciência. Agora, cientistas de algumas das instituições acadêmicas mais respeitadas do mundo apontam um novo suspeito: o sal. Em três artigos publicados na revista Nature, o grupo mostra indícios de que a ingestão do componente pode induzir a produção de um conjunto de células ligadas ao desenvolvimento e ao agravamento de doenças autoimunes, como a esclerose múltipla e a psoríase.
O objetivo da investigação inicial não era exatamente descobrir o efeito da ingestão do sal de cozinha no organismo nem entender a relação entre a alimentação e a autoimunidade. A equipe dos pesquisadores Vijay Kuchroo e Aviv Regev – que reúne o Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), a Universidade de Harvard (ambas nos EUA) e a Universidade de Oxford (Reino Unido) – buscava entender como as células T, presentes no sistema imunológico, se desenvolvem e influenciam as ferramentas de defesa do corpo. O interesse se justifica na ação ambígua dessas moléculas, que, em algumas ocasiões, protegem o organismo e, em outras, desencadeiam doenças.
“Queríamos entender como o corpo obtém os tipos e as quantidades certas de células do sistema imunológico e como ele mantém as células no nível exato de atividade”, conta Aviv Regev, membro do Instituto Broad e professor do MIT. O universo estudado também foi reduzido a um tipo específico de células T, as TH17, que a ciência já relacionou a males como a esclerose múltipla, a psoríase e a artrite reumatoide. Para os pesquisadores, a compreensão do desenvolvimento dessas células poderia ajudar a regular sua produção, levando ao desenvolvimento de terapias contra esses males.
Enzima Munidos de modernas ferramentas tecnológicas, os pesquisadores desativaram alguns genes-chave necessários para a produção de células TH17 e, assim, observaram a ação de proteínas e enzimas transcritas por eles. Foi nessa análise que uma importante personagem foi descoberta: a enzima SGK1. Quando os genes que transcrevem essa substância são desligados em camundongos, a produção de TH17 é interrompida. Essa enzima ainda não havia sido associada às células T, mas estudos anteriores mostraram que ela pode ser encontrada principalmente no intestino e nos rins, onde participa da absorção de sal. A informação intrigou os pesquisadores, que decidiram investigar a ligação entre doenças autoimunes e uma maior ingestão e absorção de sal pelo intestino e pelos rins.
A hipótese foi então testada de duas formas. Enquanto o grupo de Kuchroo e Regev estudou camundongos, um novo time, liderado por David Hafler, da Universidade de Yale, trabalhou com células humanas no laboratório. Os ratos receberam injeções de substâncias que levaram à encefalomielite, uma inflamação no cérebro que se assemelha à condição de esclerose múltipla. Aqueles alimentados com uma dieta rica em sal apresentaram formas mais graves da doença que as cobaias que receberam uma dieta normal. Já o outro time observou que as células humanas expostas a uma solução com grande concentração de cloreto de sódio produziam mais células TH17.
“Não é só o sal, claro. Há também uma arquitetura genética associada a várias formas de doenças autoimunes que predispõe uma pessoa a desenvolver essas doenças”, alerta Kuchroo. Ele acrescenta que outros fatores ambientais devem ser levados em conta, como infecções, tabagismo e falta de luz solar e vitamina D. O pesquisador brasileiro Rafael Franca, que faz pós-doutorado na Universidade de Harvard com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e trabalha com o grupo de Kuchroo, explica que ainda não é possível dizer qual o tamanho do perigo de uma dieta rica em sal, pois os dados são iniciais e obtidos em camundongos.
Porém, é certo que a ingestão do produto sozinha – sem a ação dos outros fatores – não provoca o surgimento de doenças autoimunes. “Ainda não sabemos quais indivíduos são suscetíveis ao processo. Pode ser que apenas alguns com mutações em genes que regulam as quantidades de sal nas células sejam vulneráveis. Assim, uma dieta rica em sal, para eles, poderia ser o fator que induziria ao surgimento de doenças autoimunes”, avalia.
Necessário É importante salientar que, apesar de o sal em excesso ser prejudicial, o produto é necessário para o organismo. João Santana da Silva, professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), lembra que a baixa ingestão do alimento pode deixar o organismo mais vulnerável ao ataque de agentes patológicos, como os causadores da doença de Chagas e da leishmaniose. Ele ressalta ainda que outros pesquisadores já haviam apontado que, nos países desenvolvidos, onde o consumo de sal é mais alto, há uma maior incidência de doenças autoimunes.
Segundo Ana Maria Caetano de Faria, professora do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), investigações indicavam que o aumento dos índices de doenças autoimunes nesses países não poderia ser justificado apenas pela predisposição genética. Fatores ambientais começaram a figurar entre os possíveis indutores desses males. “Chegaram à conclusão que o aumento provavelmente se deveria a mudanças no ambiente e nos hábitos das pessoas. Por outro lado, o aumento do consumo de sal não explica sozinho o crescimento dessa incidência, que, com certeza, é multifatorial.”
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