RODRIGO COPPE CALDEIRA
A escolha de Bergoglio é uma ruptura na tradicional escolha de papas europeus. Mostra que a igreja se atenta para os desafios globais
A escolha pelos cardeais de Jorge Mario Bergoglio como papa surpreendeu o mundo. Como no conclave de 1978, que elegeu o polonês Karol Wojtyla como sucessor de Pedro, o cardeal argentino, arcebispo de Buenos Aires, surge como uma surpresa.
Naquele momento, Wojtyla apareceu como um terceiro nome para o papado, que tinha como seus principais candidatos o conservador Giuseppe Siri (candidato da Cúria Romana) e o arcebispo de Florença, Giovanni Benelli. Se pudermos encampar as informações que circularam esses dias na imprensa mundial por ocasião do conclave que se seguiu à renúncia de Bento 16, é possível especular que uma conjuntura semelhante se sucedeu.
Muitos nomes foram apontados como favoritos. Nos últimos dias, despontaram Angelo Scola, de Milão, e Odilo Scherer, de São Paulo. Disse-se que Scola era o candidato do papa emérito Bento 16, enquanto Scherer, aquele que representaria os interesses curiais. Nem um nem outro.
Mais uma vez, a Igreja Católica demonstra que seus caminhos são insondáveis. A escolha de Bergoglio é certamente uma ruptura na tradicional escolha de papas europeus. Mostra que a instituição religiosa se atenta para os desafios globais, que se avolumam.
O olhar se volta para o hemisfério sul do planeta, onde se encontra a maioria dos católicos e também aqueles mais necessitados materialmente. Um arcebispo jesuíta latino-americano, que escolhe ser o papa Francisco. Nenhum outro cardeal na história bimilenar da igreja escolhido como papa usou esse nome.
Giovanni di Pietro di Bernardone (1182-1226), o São Francisco de Assis, viveu para testemunhar o Evangelho na sua radicalidade. Anunciou Jesus com palavras, mas sobretudo com ações, dando em testemunho sua própria vida, simples e humilde. Filho de uma rica família, deixou as regalias da burguesia ascendente para viver no meio dos pobres.
A dúvida que resta nessas primeiras horas do novo pontificado é se o nome foi escolhido tendo como referência Francisco de Assis ou Francisco Xavier (1506-1552). Xavier, espanhol de Navarra, foi um dos pioneiros da Companhia de Jesus fundada por Inácio de Loyola (1491-1556) e é considerado o grande evangelizador da Ásia.
Não seria um risco dizer que Bergoglio, como pastor da igreja de Buenos Aires, mescla os dois carismas. Como contumaz defensor da caridade e da ajuda aos pobres, Bergoglio, porém, não provém de correntes progressistas do catolicismo argentino nem tem vínculos, o que era de se esperar, com a Teologia da Libertação.
Com grande sensibilidade política, entrou em choque com os governos Kirchner. Néstor Kirchner o via como o "verdadeiro representante da oposição". Reagiu fortemente contra a legalização do casamento homossexual na Argentina e foi tido como "inquisidor" pela presidente Cristina.
De personalidade simples e discreta, entende que a atividade ordinária da igreja é a missão. Falando sobre a evangelização num de seus discursos antes da eleição, afirmou que se "deve evitar a doença espiritual de uma igreja autorreferencial" e que "se a igreja permanece fechada em si mesma, autorreferenciada, envelhece". Sinal de que está disposto à escuta, necessidade premente da igreja universal.
Sua aparição na sacada da Basílica de São Pedro, terminado o conclave, chamou atenção por reação contida e discreta. Mas suas palavras deixaram claro a que veio. Relembrou o papa emérito e pediu aos milhares de fiéis na Piazza di San Pietro uma oração por ele. Humildemente, exortou a todos para que rezassem por ele e fez referência a um "caminho de igreja que nós começamos".
Com 76 anos e saúde frágil, a questão que resta é se o seu papado terá o tempo necessário para concretizar as intuições que inicialmente desperta.
MARCOS DA COSTA
TENDÊNCIAS/DEBATES
O habeas corpus e a preservação de direitos
Não foi o uso do habeas corpus que se banalizou, mas, sim, o descumprimento dos direitos garantidos ao cidadão pela Constituição Federal
Poucos instrumentos jurídicos no país desempenharam papel tão relevante para o fortalecimento do Estado democrático de Direito como o habeas corpus. Diante de uma Justiça morosa, a celeridade do chamado "remédio heroico" vem servindo de indispensável lenitivo para os desmandos e arbitrariedades praticados por agentes públicos na persecução penal.No entanto, apesar da sua importância para a preservação dos direitos e garantias individuais, à guisa de suposta banalização e com o propósito de aliviar os tribunais superiores abarrotados de habeas corpus, o instituto vem sofrendo seguidas tentativas de restrição de seu regular manejo, conforme previsto na Constituição Federal.
Primeiro foi a súmula 691 do Supremo Tribunal Federal (STF), que passou a impedir que fosse impetrado habeas corpus na Suprema Corte para superar negativa de liminar de tribunal inferior. Depois, a comissão que redigiu o anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal pretendeu limitar o uso de habeas corpus, o que foi rejeitado graças ao firme posicionamento contrário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Agora, o habeas corpus está padecendo de novo revés. Recente decisão, relatada pelo ministro Marco Aurélio Mello (STF), impede a impetração de um segundo habeas corpus no STF, quando um primeiro tiver sido rejeitado em tribunal inferior.
Esse entendimento passou a ser adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, de maneira que o cidadão atingido nos seus direitos fundamentais terá de esperar o julgamento de um simples recurso, entre tantos que demoram anos para ser apreciados.
É preciso lembrar que, nos anos da ditadura militar, a OAB, então presidida por Raymundo Faoro, atuou fortemente pela distensão política. O Brasil caminhava sob o jugo do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que, em nome da segurança nacional, mitigava todas as garantias constitucionais e superlotava as dependências do DOI-Codi de antagonistas do regime.
Esses episódios pouco a pouco vão sendo elucidados pelas comissões da verdade, inclusive aquela formada pela OAB São Paulo, que tem por objetivo resgatar a atuação da advocacia paulista naquele período.
Faoro obteve a volta do habeas corpus, vitória que está entre os movimentos mais expressivos da abertura democrática. Possibilitou, pela via judiciária, resguardar a vida e a liberdade de presos políticos submetidos à tortura.
O habeas corpus, ao longo das últimas décadas, transformou-se em instrumento indispensável ao exercício da defesa. Qualquer restrição que a ele se imponha, indubitavelmente, haverá de gerar injustiças e fazer campear a ilegalidade.
Não foi o seu uso que se banalizou, mas o que se tornou constante foi o descumprimento dos direitos garantidos ao cidadão pela Constituição, no que ela serve de modelo para o resto do mundo. Ademais, o grande número de habeas corpus concedidos nas instâncias superiores encorajou os advogados a esgotarem esse meio de salvaguardar os direitos de seus constituintes.
Por tudo isso, a OAB São Paulo está empenhada em preservar o habeas corpus como instrumento fundamental de cidadania, em respeito ao devido processo legal, em obediência à lei e observância ao direito de defesa.
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