Valor Econômico - 24/06/2013
Há
movimentos que saem do nada? Ninguém esperava que o Passe Livre
mobilizasse assim a nação. Mas isso não significa que tais manifestações
sejam um completo enigma. O que não se pode é prever se e quando se
darão, nem quais serão seus resultados. Ou seja, não se sabe do seu
antes nem do seu depois. Mas vou comentar o que se sabe delas.
Primeiro,
este tipo de grande movimento que parece vir do nada começa com o maio
de 68 francês, que é além disso o seu paradigma. No dia 15 de março
daquele ano, o jornalista Pierre Viansson-Ponté lamentava que "a França
[estivesse] entediada", conformista. Uma semana depois, a repressão a
protestos contra a guerra do Vietnã e à entrada de rapazes nos quartos
das alunas da Universidade de Nanterre detonava o movimento que,
rapidamente, cresceu.
Esses movimentos vão bem além de suas
causas imediatas. Estas se repetem dezenas de vezes, sem nada resultar. E
de repente, a explosão. Que é um acontecimento muito maior que suas
possíveis causas. Acontecimento, em inglês, é "happening"; ora, nas
línguas latinas, desde os anos 1960 chamamos de "happening" uma grande
festa, às vezes promovida por artistas, que tem as características de
acontecer só uma vez, não tendo ensaios nem podendo ser repetida. Um
acontecimento máximo, um acontecimento em estado puro. Daí, que esses
eventos únicos sejam festas. Quem participou dos muitos movimentos de
1968 - na França, em Nova York ou na Califórnia, na Alemanha, na então
Tchecoslováquia ou no Brasil - viveu esse clima de festa. Quem se
manifestou pelas Diretas-Já em 1984 ou pelo impeachment de Collor, em
1992, festejou nas ruas. Daí, um tom de alegria. As pessoas descobrem
que a política pode ser alegre.
Por isso, ocupam as ruas. A causa
imediata das manifestações foi o transporte público de péssima
qualidade, que impõe aos pobres o gasto de quatro a oito horas por dia
para ir e vir do emprego - uma segunda jornada de trabalho, não paga em
dinheiro e que onera a saúde física e mental dos trabalhadores. Mas
vejam o simbolismo: estão falando do transporte, isto é, do movimento (e
reclamando contra a lentidão, a falta de movimento). "A vida é
movimento", dizia em 1651 o filósofo Thomas Hobbes. Estão reclamando da
estagnação, que é morte, e clamando pela vida. Uma política que clame
por causas ligadas à vida é coisa rara. Não é a política das
instituições, não é a da governabilidade, não é a do Parlamento.
E
assim a causa imediata funciona como um ímã. Ela atrai tudo o que seja
"do bem". Os manifestantes lhe agregam a demanda pela saúde, pela
educação e até pelas palavras de ordem que não são da ordem, mas da
liberdade, como o célebre "é proibido proibir" do 68 francês, ou o "seja
realista, exija o impossível". Tudo adquire as cores das grandes
mudanças, daquelas que não aparecem no dia a dia, mas surgem como uma
revelação, uma epifania, um momento em que se descobrem novas
potencialidades para o mundo e para a vida com o outro, para o
viver-juntos. Por isso mesmo, cintila sempre a perspectiva de que uma
outra política, mais vital, é possível.
Nem tudo são flores. O
Brasil padece de uma cultura política fragílima. Anos de pregação
segundo a qual todos os nossos problemas decorrem da corrupção -
convicção esta que é uma marca clara da ignorância política - fazem
muitos acreditarem que o outro, aquele que discorda deles, não pode ser
uma pessoa honesta. Muitos ignoram o que significam democracia e
política, a saber: há divergências sérias na condução dos assuntos
públicos, que cabe ao voto resolver, mas dentro do respeito ao outro.
Chamar o outro de ladrão ou bandido é destituí-lo dos direitos políticos
e considerá-lo criminoso. Isso não deveria acontecer, salvo exceções
comprovadas de crimes cometidos, entre petistas e tucanos, entre
republicanos e democratas, entre trabalhistas e tories. Mas acontece, no
Brasil, com alarmante frequência. Daí que, quando as ruas se abrem para
o imaginário, uma parte dele seja agressivo e violento. Cito um
ativista do Passe Livre, que esteve dia 21 no debate que coordenei no
Instituto de Estudos Avançados da USP: a direita e o crime, disse ele,
estão hackeando nossos movimentos.
E o "day after"? A revelação
de que você pode ocupar as ruas, de que por algumas horas pode tirá-las
dos carros e fazer uma festa ali é tão poderosa que corre o risco de ser
apenas uma catarse, uma pausa no meio de uma vida que antes e depois
será conformista. Muitos manifestantes de 1968, das Diretas ou do
impeachment lembram esses momentos como apenas uma festa, mas que em
nada mudou suas vidas. Ganharam liberdade sexual, é tudo. Será uma pena
se assim for. Epifanias devem mudar, sim, a vida de quem as tem. Você
não pode ter uma revelação e não se converter... Que os políticos
procurem conduzir "business as usual" é até compreensível, mas as
pessoas que sentiram o gosto do diferente deveriam inseri-lo em suas
vidas.
Isso, mesmo sabendo, o que é bastante amargo, que a curto
prazo quem colhe os frutos não é quem os semeou. A Primavera Árabe, obra
de jovens democratas, levou ao poder gente conservadora, como os
extremistas da Tunísia e do Egito. Maio de 68 conduziu, em junho daquele
ano, à vitória eleitoral da direita. Mas hoje ninguém lembra a direita
francesa da época, e todos recordam os estudantes, os jovens, o mês de
maio. A sociedade muda. E, assim como 1968 se deu em pelo menos três
continentes, de 2011 para cá pode estar surgindo uma segunda onda dessas
manifestações tão vitais: com a Espanha, países árabes, Turquia e
Brasil, elas parecem estar-se espraiando pelo mundo. O que virá desta
segunda onda?
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