A pós-Lolita
A sensualidade pode ser mortal. Em tempos de vida higiênica como o tempo em que vivemos, talvez, em algum momento, a sensualidade venha a ser mesmo posta fora da lei.
Sim, a sensualidade pode ser mortal, basta ler "Lolita", de Vladimir Nabokov. Hoje, o livro seria proibido, mas, claro, em nome das boas intenções. Agora acreditamos que inventamos uma nova forma de censura (antes a censura tinha uma motivação diferente, creem os semiletrados): "A censura em nome do bem".
O novo filme do diretor coreano Park Chan-wook, com Mia Wasikowska (no papel de Índia, uma Lolita que completa 18 anos) e Nicole Kidman (sua atormentada mãe), é uma pérola de estetização do lado sombrio do ser humano.
Mas, não se trata de uma estética suja (até o sangue é de um vermelho encantador), por isso a sofisticação nele nos lembra que mesmo que não sejamos seres "do bem", ainda somos seres belos.
Na filosofia, abordagens como essa são chamadas de "estetização da moral": a estética seria mais essencial do que a ética. Nietzsche é comumente acusado desta forma sofisticada de pecado.
Acima eu falava da beleza do vermelho sangue no filme. Aliás, o sangue na narrativa acompanha a iniciação de nossa heroína e poderia muito bem ser o sangue de sua primeira menstruação escorrendo pelas pernas ou da perda de sua virgindade manchando o lençol.
Em alguns momentos, lembramos dos bons momentos de David Lynch na sua série cult de TV dos anos 80, "Twin Peaks". A saia xadrez da colegial mortal de "Twin Peaks" é trocada pelo vestido "de menina" da estranha Índia, a filha pós-Lolita de Kidman no filme de Park Chan-wook.
Às vezes, esquecemos que a sensualidade feminina pode simplesmente brotar do chão, como uma força esmagadora da natureza.
"Segredos de Sangue" discute o eterno dilema do que em nós é herdado e do que em nós é "cultivado", ou, dito de outra forma, do que em nós seria passível de ser transformado ou criado pela educação ou pelo meio a nossa volta. Em inglês, o dilema "nature x nurture".
No filme, os "segredos" do sangue de Índia (que não vou contar, pode ficar tranquilo) são o que nela seria herdado. E assim, uma forma de destino do qual ela não escapará.
Sou daquele tipo de pessoa que acredita que temperamento é destino. Vejo isso todo dia em sala de aula. Mas, para muitos dos meus colegas, dizer isso seria ir contra "nosso mercado", a educação, infelizmente umas das áreas mais devastadas por bobagens pseudocientíficas e pseudofilosóficas no início deste século 21.
O filme se abre com a morte inesperada do pai de Índia, "seu grande amor". Ela detesta a mãe. Não gosta de ser tocada e aprendeu com o pai as delícias da caça. No momento do enterro do pai (morto num estranho acidente de carro), surge seu desconhecido tio Charlie, irmão mais novo de seu pai. O filme narra as aventuras de Índia descobrindo sua sexualidade e muito mais.
Mas sua sexualidade, "herdada" de alguma forma pelo tronco paterno, é a "sexualidade de Freud", não a sexualidade que hoje escorre pelas paredes do mundo, essa cadeia em céu aberto (Kafka ficaria espantado como as coisas pioraram de sua época para cá...). A sexualidade em voga hoje é uma sexualidade que pode ser posta a serviço da "boa política". A "biopolítica da libertação" nos deixará todos brochas.
O que é a "sexualidade de Freud"? Sim, devemos cuidar para não esquecermos o Freud enterrado em conceitos pseudofreudianos como "pulsão política".
O homem freudiano é uma pedra no sapato dos reformadores contemporâneos, e, nesse sentido, Freud terá que ser "esquecido" mesmo por aqueles que se dizem freudianos, mas que não suportam o que Freud nos ensinou: que a sexualidade é um abismo. Em uns, mais do que nos outros.
Como dizia o psicanalista francês Michel de Certeau, falando de mística, "um lugar para se perder".
O "homem freudiano" só civiliza às custas de muita dor. E não há do outro lado uma civilização curada de sua raiz sombria, como querem os freudianos das luzes.
Claro, nem todos somos Índias ou defloramos Índias. Mas ela continua bela.
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".
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