segunda-feira, 24 de junho de 2013

Fernando Pessoa era múltiplo até em cartas para namorada

folha de são paulo
CRÍTICA - CORRESPONDÊNCIa 
CARLOS FELIPE MOISÉSESPECIAL PARA A FOLHAA biografia de Fernando Pessoa pode ser decepcionante: vida pacata e regrada, nenhum escândalo, nenhuma paixão avassaladora. Teve uma única namorada, Ofélia, menina tímida e recatada, legítima representante da puritana Lisboa dos anos 20.
Conheceram-se num dos escritórios onde ela trabalhava, a atração foi imediata, e o namoro começou: uma avalanche de beijinhos e carícias, suspiros e gestos aflitos de ciúme, que eles passaram a trocar... por carta.
Avistando-se todos os dias, eles optaram por converter em palavras o apelo erótico que os aproximou. Durou cerca de um ano, entre 1919 e 1920. Reataram quase dez anos depois, para ficar só nisso, cartas. Ambos sabiam que era um sonho inocente.
Ofélia guardou por mais de quatro décadas (Pessoa morreu em 1935) as preciosas missivas, amarradas com fita colorida, dentro de uma caixa de bombons. Em 1978, ela autorizou a divulgação. Àquela altura, poucos sabiam que ele também guardara as cartas que recebera, 110 das quais vieram a público em 1996.
No ano passado, outras cartas foram reveladas, mas só agora uma edição reúne a correspondência completa. "Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz" (Capivara) traz 289 cartas, bilhetes e telegramas dela; apenas 59 dele.
O episódio em si não chamaria a atenção se nele não estivesse envolvido um grande poeta. A imaginação do leitor faz uma só conjectura: enfim teremos o "verdadeiro" Pessoa, e não aquela interminável ficção do homem que se multiplicou em várias personalidades: ele mesmo, Caeiro, Reis, Campos, Soares e tantos outros.
O Pessoa que se dá a conhecer no namoro é o mesmo ser múltiplo da "ficção" heteronímica. Ofélia, é verdade, namorou Pessoa (sem nunca saber quem era aquela estranha figura), mas também conviveu com Álvaro de Campos e até um certo A.A. Cross, sub-heterônimo em língua inglesa, idioma que o poeta prometeu ensinar a ela quando se casassem.
'RIDÍCULAS'
Nesse sentido, as cartas podem decepcionar, "por não reconhecermos nelas aquele fulgor inteligente que distinguiu Pessoa" (E. Lourenço).
"Todas as cartas de amor são ridículas", ele escreveu, e Ofélia o sabia bem: o recorte de jornal com o poema famoso esteve lá, durante décadas, na caixa de bombons, junto com as cartas. Mas o autor não era seu Fernandinho, e sim o "maluco" do Álvaro de Campos...
Essa belíssima edição, ricamente ilustrada, confirma o que já sabíamos.
Primeiro, o cidadão Fernando Pessoa abdicou de ter uma identidade própria, preferindo concentrar toda a sua energia vital no desdobramento em heterônimos.
Segundo, Caeiro, Reis, Campos e até ele mesmo eram tão reais (ou tão fictícios) como essa cândida Ofélia que um dia cruzou seu caminho, e com quem ele até chegou a sonhar um amor e uma entrega sem reservas. Ele sempre soube que nunca seria capaz.

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