quarta-feira, 3 de julho de 2013

Consumo, a porta de entrada da cidadania - Tendências/Debates

folha de são paulo
FLÁVIO ROCHA
TENDÊNCIAS/DEBATES
Sem deixar de exigir a troca de liquidificadores ou geladeiras com defeito, o brasileiro começa a enxergar a viabilidade de um recall também para quem não se mostra capaz de fazer bom uso do mandato popular que lhe foi delegado
No momento em que não faltam candidatos a intérprete da "voz rouca das ruas", aqueles que identificaram e acompanham a migração dos 40 milhões de brasileiros para a emergente classe C podem esclarecer aspectos que ainda não mereceram atenção.
Muitos desses intérpretes continuam plugados em um modelo antigo para analisar o Brasil, mas a velha pirâmide social se transformou num losango com o ingresso da nova classe consumidora.
Boa parte dos cidadãos que deixaram seu comodismo e letargia para fazer barulho e protestar nas ruas de todo o país cumpriu um aprendizado completo antes de alcançar o estágio da questão política.
Eram súditos apáticos e conformados. Ao conquistarem a capacidade de consumir, conheceram seu poder de exigir o que lhe havia sido prometido numa operação de crédito ou num serviço de telefonia, por exemplo. Perderam o medo de protestar.
Nós, do varejo, além de espectadores privilegiados dessa evolução, temos sido partícipes da vida dos atores desse movimento social. A transformação do súdito em cidadão foi possibilitada por empresas que não foram afetadas pelo pibinho, exatamente porque se alimentam da força motora desse novo contingente de consumidores.
Foram essas empresas que abriram as primeiras linhas de crédito para o público emergente, não instituições bancárias. O resultado é que o varejo brasileiro é hoje o maior especialista em classe C --conhece seus anseios e se antecipa no atendimento de suas demandas.
Definiu-se um verdadeiro processo de transformações demográficas e sociais. Seria ingenuidade imaginar que mudanças tão profundas ficariam restritas ao mundo econômico. Os reflexos políticos seriam mesmo inevitáveis. Só não viu quem não quis ver.
Os emergentes protagonizam uma mudança radical na relação com o Estado. Antes, a via era de mão única e pouco diferia daquela que os colonizadores portugueses estabeleceram com os nativos. Os súditos se deslumbram com miçangas, quinquilharias e bugigangas.
A grande novidade para cada um dos indivíduos que compõem as dezenas de milhões que deixaram a pobreza é a reciprocidade.
A figura do consumidor passou a se sobrepor ao velho Jeca Tatu urbano. E o cidadão começou a ganhar importância. Descobriu a necessidade de exigir contrapartida. Aprendeu a questionar constantemente a relação custo-benefício. Aprendeu os benefícios da concorrência e passou a se indignar com quem vende mais caro.
Assim como faz com seus fornecedores, o cidadão-consumidor começa a cobrar do governo a correta aplicação dos recursos dos impostos que ele paga e o mesmo nível de eficiência, qualidade e excelência que reclama dos produtos e serviços que contrata. Ineficiência? Desperdício? Corrupção? É incompatível.
Quando o Brasil conquistou o privilégio de sediar os três maiores eventos esportivos do planeta, nossos governantes devem ter imaginado que tamanha overdose de pão e circo garantiria eleições e reeleições por muito tempo.
Jamais poderiam imaginar que, em vez de perguntas sobre quando e onde seria a festa, surgissem incômodas questões: Quanto custa? Por que no Brasil é mais caro? Quem paga? A saudável e profunda transformação na postura do cidadão-consumidor está por trás do grande susto do qual governantes e políticos demoram a se recompor.
Não se crê mais em um Estado provedor todo-poderoso.
Depois de 25 anos, finalmente começa a ser regulamentado um artigo da Constituição Federal (de autoria do então deputado constituinte Afif Domingos) que garante a todos os brasileiros a transparência dos tributos e permite que o consumidor-contribuinte saiba o quanto a manutenção do Estado pesa no seu bolso.
A verdade é que muitos reduziram o recado da voz rouca das ruas a pleitos pontuais, quando a resposta está na mudança de postura do cidadão, que aprendeu a cobrar enquanto consumidor. E suas primeiras reivindicações são custos menores e um Estado menos presente.
Sem se esquecer de exigir a troca de liquidificadores ou geladeiras com defeito, o brasileiro começa a enxergar a viabilidade de um recall também para quem não se mostra capaz de fazer bom uso do mandato popular que lhe foi delegado.

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