Valor Econômico - 08/07/2013
Nada
mais século XIX do que ter medo do voto dos pobres. Nada mais século
XIX, em pleno século XXI, do que conservar esse medo e pretender
privá-los do direito de votar. Numa
manifestação recente, uma senhora pediu que os beneficiários do Bolsa
Família perdessem o direito de eleger os governantes. Essa ideia teve
alguma repercussão. É um puro balão de ensaio, que não prosperará,
porque o sufrágio universal é cláusula pétrea da Constituição e uma
emenda neste sentido não pode sequer ser examinada pelo Congresso. Mas
vejamos o que isso significa.
O
século XIX descobre a pobreza. Ela existia antes, claro, e em enorme
escala. Mas é depois de 1800 que as grandes cidades, como Londres e
Paris, são tomadas por pobres - gente que vem dos campos trabalhar nas
fábricas ou nas casas, olhando com espanto, e depois com crescente ódio,
para quem regurgita de riqueza enquanto eles passam fome. É o que a
historiadora Maria Stella Bresciani chama de espetáculo da pobreza. Eles
formam o que o historiador Louis Chevalier denominou "classes
laboriosas, classes perigosas": os operários ameaçariam o "statu quo"
vigente. Havendo o sufrágio universal, a maioria de pobres poderia
decidir confiscar os bens dos ricos e reparti-los entre si. Esse é o
grande medo do século XIX.
Para
fazer-lhe frente, a elite recorre a dois ou três expedientes. Um deles,
que ora funciona, ora não, é deixar o poder executivo nas mãos de um
monarca; mas isso não cabe em regimes democráticos ou semi, como o
norte-americano, o britânico, o francês. Outro é ter um Senado ou Câmara
Alta de espírito conservador, com membros nomeados (os Lordes ingleses,
os Pares franceses) ou eleitos por um mandato mais longo, a quem caberá
refrear os ímpetos da Câmara Baixa, aquela que é eleita pelo povo
inteiro. E, finalmente, o voto censitário, ou seja: o direito de voto
dependeria da renda ou propriedade do indivíduo. Pobres simplesmente não
votariam. É célebre a resposta de Guizot, primeiro-ministro de Luís
Felipe, rei da França, quando a oposição lhe pede que baixe as
exigências econômicas para votar: "Enriqueçam-se", diz ele. Ganhem mais,
tenham mais, que poderão votar. No Império do Brasil, era a mesma
coisa.
Quais
as razões dadas para restringir o voto a quem tem posses ou renda
elevadas? Entendia-se que essas pessoas seriam mais racionais. Quem vive
da mão para a boca nada tem a perder, portanto, não é controlável.
Essencialmente, é isso: vota quem tem a perder. Se eu sou rico, não
quero políticas irresponsáveis, que poriam a perder a economia, o
Estado, talvez a independência de meu país. Se sou pobre, que diferença
me faz? Já tenho tão pouco que qualquer mudança pode ser para melhor.
Exigia-se ter "bens de raiz", sinônimo de propriedade, termo
interessante: somente quem está fixado ("enraizado") na sociedade, com
bens ou rendimentos que ofereçam uma espécie de caução ao que diga ou
faça, merece votar. Os outros, se votassem, não pagariam pelas
consequências de seu voto.
Isso
mudou por completo ao longo do século XX. O avanço da causa democrática
levou as sociedades a repudiarem o voto censitário. Negar o voto aos
pobres se tornou indigno. Além disso, quem deflagrou as guerras mais
mortíferas do século não foram os pobres. Se a Alemanha e a Rússia
imperiais rumaram para o desastre em 1914, não foi por iniciativa de
seus miseráveis, mas de seus príncipes e nobres, em suma, dos mais
ricos. E os pobres foram, sim, quem mais arcou com os custos dessas
guerras infames. Deles saiu a maior parte dos milhões que morreram em
batalha ou de fome. Mais perto de nós, a crise de 2008 não foi causada
pelos pobres ou beneficiários da previdência social norte-americana. Não
há base empírica para culpar os mais pobres pela adoção de políticas
desastrosas.
Hoje,
se alguém sugere, ainda que implicitamente, que pobres não votem, está
retomando um imaginário antigo, arcaico. Na verdade, o século XX,
sobretudo em sua segunda metade, mostrou que não é preciso negar aos
pobres o voto para evitar que eles tomem os bens dos ricos; o circo -
isto é, o imaginário do entretenimento - cumpre muito bem esse papel. Se
for somado ao pão, isto é, à supressão da fome e da miséria,
dificilmente os pobres se revoltarão. Isto, se eu quiser dar um
argumento de esquerda. Um argumento mais moderado é: todo aquele que tem
futuro - o que geralmente se chama "família" - se interessa em não o
colocar em risco e, por isso, não apoia políticas irresponsáveis. É
quando o trabalhador passa a ter, em vez de prole, uma família, quando
sua renda se torna suficiente para viver mais tempo e criar filhos, que
ele deixa de apoiar revoluções nas ruas. Daí, por sinal, que alguns
radicais culpem a família por um certo conservadorismo que as classes
trabalhadoras assumem.
Mas,
de todo modo, é sinal de deficiência na cultura política a proposta de
que perca o direito de votar quem viva de esmolas - um tema ainda mais
antigo, porque grassou no século XVII inglês. Afinal, um Estado sempre
arbitra transferências de riquezas; ele pode destiná-las aos mais ricos,
como fez por milênios, ou começar a transferi-las aos mais pobres, o
que é recente mas, certamente, do ponto de vista moral, não é pior.
Em
minha última coluna critiquei Marina Silva por deixar passar a eleição
de 2010 e as manifestações recentes, sem organizar sentimentos que
tendiam na direção de sua Rede. No mesmo dia em que saiu a coluna,
Marina entrou em contato comigo, por meio do professor Ricardo
Abramovay, querendo conversar, o que fizemos dois dias depois,
longamente. Tratarei do assunto numa futura coluna.
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