quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Clovis Rossi

folha de são paulo

Os sírios são mero detalhe


 
DE SÃO PAULO
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Os sírios, seu bem-estar, suas vidas, são, desgraçadamente, mero detalhe nos jogos de guerra desenhados desde os ataques, supostamente com arma química, do dia 21.
É a conclusão inescapável a que se chega ao ouvir os argumentos que vertem os EUA, entre outros países ocidentais, para explicar a iminência de um ataque à Síria.
Trata-se, na essência, de fazer respeitar um "sinal vermelho" publicamente erguido pelo presidente Barack Obama, que seria não utilizar armas químicas.
Ora, acompanhemos o raciocínio de Anthony Cordsman, analista do Centro para Estudos Estratégicos Internacionais de Washington:
"Qualquer um que de fato tenha visto ferimentos provocados por artilharia convencional --ou feridas mal curadas de armas pequenas-- percebe que armas químicas não causam ferimentos mais horríveis".
Logo, conclui Cordsman, "o caso para intervenção [na Síria] não pode ser baseado em armas químicas. Tem que se basear em dois fatores: se serve aos interesses estratégicos norte-americanos e se atende às necessidades humanitárias mais amplas do povo sírio".
Exceto pela parte dos "interesses estratégicos norte-americanos", que eu não tenho por que defender, é uma linha de raciocínio similar à que foi exposta aqui: as necessidades humanitárias do povo sírio estão sendo atacadas por armas convencionais, já faz dois anos e meio, o que causou mais de 100 mil mortes, sem que o Ocidente ameaçasse atacar ou interferir.
Fica claro, a meu ver, que um eventual ataque à Síria não defende a população síria; emite, isto sim, uma mensagem ao regime Assad e a outros países possuidores de arsenal químico de que esse é o limite que não pode ser ultrapassado, por mais que se matem inocentes com outros tipos de armas.
O que está havendo na Síria é uma "denúncia do presente estado da lei internacional", escreve para o "New York Times" Ian Hurd, professor de ciência política na universidade Northwestern.
Refere-se ao fato de que as Nações Unidas aprovaram, em 2005, uma norma que permitiria, ela sim, proteger a população síria da matança. Chama-se "Responsabilidade de Proteger" (ou R2P, no jargão diplomático). Na sua essência, a norma estabelece que, se um dado governo não quer ou não consegue proteger seus cidadãos, a ONU tem, então, o direito e a responsabilidade de protegê-los.
Não é preciso ser especialista em coisa alguma para perceber que o caso da Síria se enquadra perfeitamente na R2P.
Acontece, no entanto, que é preciso uma autorização do Conselho de Segurança da ONU para pôr o mecanismo em prática. Como se sabe, a Rússia tem vetado qualquer resolução a favor de uma intervenção na Síria, o que paralisa a instituição global e caracteriza a falência da "lei internacional" apontada pelo professor Hurd.
É bom lembrar que a R2P surgiu depois do massacre em Ruanda, ocorrido às vistas da ONU. O massacre na Síria só demonstra que o processo civilizatório então desenhado caiu no vazio, e a barbárie se impõe.
crossi@uol.com.br
Clóvis Rossi
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às sextas no site.

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