Nossa vida costumava ser cognitivamente tão simples: lidávamos apenas com coisas palpáveis e ao alcance das mãos ou dos olhos.
Aí inventaram o telefone, que permite ouvir vozes do além (além-casa, além-mar), e precisamos nos convencer de que elas vêm de pessoas reais, apenas intangíveis e invisíveis. Então inventaram a televisão, que mostra pessoas que são só imagens com som, mas cujo corpo tangível precisa ser presumido. Não é à toa que fica difícil separar o que é real do que é ficção na telinha.
E então o videogame. Os primeiros criavam apenas situações a serem resolvidas com comandos dos dedos: mover uma barra para pegar a bolinha ou mover o Pac Man por um labirinto.
Mas, conforme o progresso trouxe poder computacional e placas de vídeo à altura, o videogame "corporalizado" inseriu o jogador na tela, na forma de um avatar, personificado e personalizável, que representa o jogador no mundo virtual, age e interage por ele: é ele.
Mas, conforme o progresso trouxe poder computacional e placas de vídeo à altura, o videogame "corporalizado" inseriu o jogador na tela, na forma de um avatar, personificado e personalizável, que representa o jogador no mundo virtual, age e interage por ele: é ele.
Como o cérebro lida com isso? Uma equipe na Universidade Radboud, na Holanda, avaliou como jogadores de World of Warcraft processam adjetivos apresentados como atributos de si mesmos, de seus avatares e de pessoas conhecidas próximas ou distantes. Enquanto isso, a equipe examinou o grau de ativação de duas estruturas no cérebro: o córtex parietal inferior esquerdo, que representa movimentos percebidos como próprios e parece ser a base da sensação de agência e da autoidentidade; e o córtex cingulado rostral, que representa emoções e sensações corporais pessoais.
Quando os jogadores avaliavam adjetivos atribuídos ao seu avatar, a ativação do córtex parietal posterior esquerdo era ainda maior do que quando eles avaliavam adjetivos atribuídos a si mesmos ou a conhecidos. O córtex cingulado rostral, contudo, respondia com mais atividade à avaliação de adjetivos atribuídos a si mesmo do que ao avatar ou a pessoas próximas.
O avatar, portanto, não parece ser só mais um objeto que o jogador aprende a manipular, e sim um outro Eu, no mundo virtual, com quem o jogador se identifica, cujo "corpo" e cujas ações ele assume como seus.
Mas, ao mesmo tempo, o cérebro dos jogadores ainda sabe privilegiar emocionalmente o próprio corpo sobre o do avatar. Talvez por isso, mesmo assumindo o avatar como seu Eu virtual, o jogador ainda saiba quem é: o corpo de carne e osso fora da tela.
Suzana Herculano-Houzel, carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha, e professora da UFRJ. Escreve às terças, a cada duas semanas, na versão impressa de "Equilíbrio".
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