via @sibelefausto
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Agora que vocês revisitaram
os textos e ações públicas acerca da ‘Profissionalização do Cientista’
podemos partir para uma análise crítica. Nesse texto, vou explorar
alguns aspectos da proposta e da linha de argumentação utilizada pela
professora Suzana Herculano-Houzel, grande promotora da ideia, no âmbito
político formal. Antes de qualquer coisa, reitero que esse artigo
reflete a opinião pessoal do autor e não do Instituto de Química (IQ),
tampouco da Representação Discente da Pós Graduação (RDPG) do IQ.
Sintam-se a vontade para discordar e debater – aliás, esse é o objetivo
desse texto.
Começo por fazer duas importantes ressalvas sobre o assunto: 1. Eu
compreendo e compartilho da preocupação de Suzana e muitos outros
colegas sobre a falta de reconhecimento social sobre os trabalhos de
pesquisa e os profissionais da academia. A pouca familiaridade da
população com a realidade da ciência, dentro e fora do Brasil, é
refletida em perguntas desconfortantes ao jovem que opta pela pesquisa:
“quando começa a trabalhar?”, “você só estuda?” e por aí segue. O abismo
é tão grande que Suzana, em seus textos e palestras, refere-se ao
universo externo à academia como “mundo real”. Aliás, aproveito para
fazer uma primeira crítica: usar como ferramenta retórica um
distanciamento entre academia e sociedade é uma atitude pouco
responsável para um comunicador que preza pela valorização da ciência.
Pode ajudar a fazer-se entendido dentro do meio acadêmico, mas reforça,
para a sociedade, um estereótipo nós/eles que mantém o universo
acadêmico invisível (escreverei sobre, em breve).
2. Quando vamos falar de nossas profissões (isso vale para qualquer
categoria) é muito comum a vitimização e uma descrição dramática de
nossa condição. É um comportamento social comum, que resulta de uma
visão pessimista e egoísta – incomoda-me. Portanto, sugiro uma breve
reflexão sobre a condição social do cientista. Somos uma classe
privilegiada, pode ser que a remuneração do cientista, principalmente ao
longo de nosso treinamento, não seja a melhor ou mais justa, mas nossa
realidade é muito mais confortável do que grande parte da sociedade,
grande parte que possui, inclusive, a abençoada assinatura no livrinho
azul. Se você não entende como pode ser privilegiado, deixo uma postagem
mais antiga na qual reconheço os privilégios dentro de minha própria história escolar – a discussão nessa, em particular, foi bem rica.
Agora vamos à análise da proposta e da linha de argumentação da
professora. Devo aqui confessar que não vejo com animação o conteúdo (a
proposta) e a forma (linha de argumentação e ações públicas) com que o
tema vem sendo tratado. O estranhamento poderia ser simplesmente pelo
fato de que a mobilização vem sendo realizada por alguém que já ocupa
uma posição confortável na academia (docência na universidade pública) e
na ciência (a área de neurociências é particularmente forte, hoje).
Outro estranhamento advém do caminho escolhido pela professora para
efetivar a mudança desejada. Por mais que a esfera política formal seja a
instância onde alterações legislativas sejam possíveis, parece-me que a
proposta pulou etapas, por não ter sido amplamente debatida dentro das
universidades, pelos principais afetados por essas proposições.
Entretanto, constato alguns problemas mais sérios, que precisam ser
descontruídos. Abordo-os a seguir.
Em sua palestra,
Herculano diz que o regime de trabalho nos laboratórios das
universidades é ilegal e que auditores do trabalho fechariam todos os
laboratórios de pesquisa se houvesse denúncia ao ministério público do
trabalho por qualquer cidadão comum. Há controvérsias. Copio um amigo,
advogado, sobre o assunto: “Trata-se de um assunto um pouco complexo
para ser tão objetivo e simplista. Todavia o direito se baseia em
interpretações e em última instância culminam em decisões políticas.
Nesse sentido vem se posicionando o nosso STF (Supremo Tribunal Federal)
onde as decisões tomadas lá mostram cada vez mais a influência política
das decisões. No que diz respeito às primeiras instâncias da justiça,
verificamos uma decisão em bloco e cada vez mais “industrializada”, onde
os magistrados sequer leem a petição inicial e decidem por assunto,
cabendo aos funcionários dos cartórios judiciais elaborarem as sentenças
e os despachos. Nessa toada, tem-se que o posicionamento adotado pela
Suzana pode ser plausível (preciso ver mais a fundo como ela se
fundamenta) uma vez que os pós-graduandos trabalham em regime integral,
sem férias, décimo terceiro salário e etc. Contudo, hoje temos um
contrato que delimita as regras dos bolsistas, regulamentados por
instituições de fomento e com interveniência das universidades. Ademais,
não devemos nos esquecer de que muitos juízes são professores na
universidade e também tem seus bolsistas vinculados a eles, razão pela
qual não vislumbro um cenário de fechamento por uma auditoria do
ministério público do trabalho.” Ou seja, o pós-graduando possui ambos
matrícula junto à universidade e termo de outorga frente às agências de
fomento, sendo no mínimo surreal o anúncio terrorista de ilegalidade dos
laboratórios nas universidades.
Outro problema é o modo como Suzana expõe o quadro da não
profissionalização, que dá a entender que nós, pós-graduandos, não temos
direitos e deveres. Oras, novamente, lembro-os que existem termo de
outorga e regimento da pós-graduação. Recebemos uma bolsa de pesquisa
mensal que nos permite viver e, em contrapartida, executar o projeto de
pesquisa proposto. Dizer que a profissionalização teria como
consequência o estabelecimento de direitos e deveres trabalhistas é
desconsiderar a pré-existência deles. Assim, a proposta de
profissionalização do cientista teria como consequência real a adequação de direitos e deveres à lei trabalhista brasileira, ou seja, à CLT. (Aliás, sobre aposentadoria, especificamente, não é verdade que o tempo em que somos somente bolsistas não conte como tempo de serviço. Um projeto de emenda que poderia facilitar isso já foi discutido, porém arquivado.)
É verdade que hoje alguns dos direitos previstos na legislação
trabalhista não estejam contemplados em nossos contratos com
universidade e agências de fomento, mas a profissionalização não é o
único modo de garantir que esses direitos existam, ou seja, podemos
conseguir a ampliação dos direitos dos pós-graduandos. Assim,
regulamentar férias, coibir jornadas de trabalho abusivas, coibir o
assédio moral, garantir assistência médica, psicológica e odontológica
são todas pautas justas que podem ser conseguidas e cuja implementação
independe da criação de um cargo de cientista dentro das universidades.
Após
a análise da apresentação do problema, podemos partir para a proposta
em si. A profissionalização do cientista defendida por Suzana sugere a
criação do cargo de cientista nas universidades, a ser ocupado por
graduados, de qualquer área. Além disso, defende que o financiamento dos
salários e encargos sociais dos novos profissionais venha daquele
recurso destinado ao pagamento das bolsas de pesquisa. A consequente
redução da formação de mestres e doutores no país seria, segundo a
neurocientista, uma das vantagens, uma vez que a pós-graduação – em
particular o doutorado – passaria a ser valorizada. Dois aspectos
precisam ser considerados.
O primeiro diz respeito à finalidade da pós-graduação e à própria
definição de cientista. Se enxergarmos o cientista como categoria
profissional, eu me pergunto se a graduação oferece preparo para o
exercício pleno da profissão. A pós-graduação, hoje, é compreendida como
um período de capacitação e treinamento em ciência. Temos, ao longo da
graduação, programas de iniciação científica, mas nem todos os alunos
passam pelo programa e não existem garantias sobre a eficácia desses
programas em formar o cientista. Além disso, a formação durante a
graduação segue, majoritariamente, um modelo de aprendizagem
tradicional, passivo, que não estimula o desenvolvimento de habilidades
essenciais ao cientista. Assim, se a pós-graduação, que passaria a
existir somente para os mais bem sucedidos – como especialização do
cientista profissional -, é fundamental para o amadurecimento científico
a profissionalização contribui mais para o processo de alienação do trabalho nas universidades do que para a melhoria da qualidade de vida dos profissionais da academia.
O segundo aspecto é sobre a suposta valorização da pós-graduação a
partir da restrição do acesso à mesma. Essa linha de argumentação é
frequente entre os contrários à expansão do ensino superior ou de vagas
para cursos específicos, como medicina,
em 2012. Contudo, a expansão, em si, não causa desvalorização e nem
compromete a qualidade e sim uma alocação insuficiente de recursos,
financeiros e humanos, para sua implantação. Além disso, a
desvalorização de um profissional é resultado de vários outros aspectos
culturais, indo muito além da ausência de regulamentação e contrato por
carteira assinada. Não vejo problemas em conceber o cientista como um
profissional liberal, assim como artistas plásticos, escritores,
músicos, advogados ou médicos. Embora muitos desses estejam
regulamentados e alguns sejam empregados, o cientista produz algo,
ciência, cuja atribuição de valor é artificial e que deve estar
disponível para toda a sociedade. Musicistas passam boa parte da vida
trabalhando sem carteira assinada e não me parece que
profissionalizá-los e dar-lhes emprego precarizado (contrato de trabalho
flexibilizado, junto a fundações e não à universidade) solucione seus
anseios enquanto classe produtiva.
Assim, embora a inexistência de uma categoria profissional para o
cientista seja, a priori, frustrante para a classe, o projeto visionado
por Suzana engloba outros aspectos. A proposta criaria uma categoria
fraca, já desgastada pela precarização, em prol de uma ambiciosa maior
agilidade da produção científica. Nesses termos, o enfoque da
profissionalização prometida parece ser a maior autonomia e agilidade
para pesquisadores seniors e não a melhoria das condições de trabalho
dos pós-graduandos. Nesse contexto, a criação de projetos de lei que
expandam, divulguem e garantam os direitos dos pós-graduandos configuram
proposições mais maduras e pragmáticas, que apontam na direção de
valorização do pós-graduando e da pesquisa brasileira.
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