terça-feira, 3 de setembro de 2013

Da sensibilidade das crianças

Um garoto indomável deixa o Bolshoi para crescer em coletivo de sucesso em Belo Horizonte. Convite de sacada em duelo de dois mundos feitos de som e movimento leva jovem capoeirista da favela às aulas de clássico da Cidade Jardim, enquanto, na Alemanha, mestre de Barbacena, na Zona da Mata mineira, faz história. 


Jefferson da Fonseca Coutinho

Estado de Minas: 03/09/2013 



"Era um garoto, tinha 13 anos, já dançava desde os 5. Vi os bailarinos falando em cena e enxerguei que era aquela a dança que eu queria"

O Nijinski do Jardim Canadáa
Antes de realizar o sonho de aprender novos passos na escola de dança do Grupo Primeiro Ato, Lucas Resende, na época com 13 anos, precisou mostrar mais que talento. Por quatro meses, duas vezes por semana, o garoto cortava a cidade para esperar sentado, quieto e em silêncio, uma vaga na escola, no Bairro Cidade Jardim, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. “Eu dizia que o número de bolsas estava esgotado. Ainda assim ele vinha todos os dias de aula e ficava esperando para poder dançar. Por determinação, força de vontade e petulância, ele entrou para a escola”, orgulha-se Suely Machado.

A diretora e coreógrafa de um dos principais grupos de dança do país, funcionários, professores e bailarinos do coletivo acolheram o jovem talento “como uma família, para a vida”. “Eu vi Sem lugar, no Parque Municipal, e enlouqueci. Era um garoto, tinha 13 anos, já dançava desde os 5. Vi os bailarinos falando em cena e enxerguei que era aquela a dança que eu queria”, diz Lucas. O menino se preparava para audição na Inglaterra. Antes, havia passado pelo Bolshoi, de Moscou. “Dei conta de ficar apenas três semanas. Não me adaptei a toda aquela reverência”, conta.

O pai, Willer Wagner, de 47, administrador, e a mãe, Magna Pinto, de 41, autônoma, diferentemente de alguns amigos e familiares, sempre estiveram ao lado do garoto bailarino. “Meus primos falavam que balé era coisa de veado. Minha mãe dizia que isso ia se repetir, mas que não precisava me importar, porque aquilo não tinha valor ou significado algum”, diz. Lucas, hoje, aos 21, conta que pegou a mãe chorando por vezes sem saber o porquê. Depois, entendeu que era por causa das cobranças em família em relação à sua opção pelo balé.

É dia de ensaio de Só um pouco a.normal, novo espetáculo do Primeiro Ato, com coreografia de Wagner Moreira. Pablo Ramon, Vanessa Liga e Verbena Cartaxo estão prontos. O espetáculo, intimista, é uma tocante valsa dos afogados que retrata os porões da loucura em Barbacena, na Zona da Mata mineira. Um recorte perturbador de dois homens e duas mulheres desnudados pela voracidade das ideias. Lucas, o menino indomável que o Bolshoi não deu conta, também está em cena, no Jardim Canadá, em Nova Lima, inteiro, na infinitude do espaço. Suely, orgulhosa, elogia: “É o meu Nijinski”.

Da capoeira ao clássico
O ano é 2009. Nos limites do Bairro Santo Antônio com o Morro do Papagaio, na Região Centro-Sul, foi numa cena de cinema, dessas que só a arte é capaz de montar, que Carlos Antônio de Souza Júnior, na época com 15 anos, caiu na dança profissional. De um lado, da varanda de prédio de luxo, grupo de hip-hop faz a festa com coreografia urbana. Do outro lado, da laje de cimento batido no aglomerado, roda de capoeira faz tremer pandeiros e berimbaus. Do duelo de ritmos e movimentos, um convite no gogó rompe a distância entre as duas realidades. Gustavo Durso, professor de danças urbanas, levou o jovem capoeirista, bolsista, para as salas de aula do Primeiro Ato.

Sob as asas de Suely Machado e companhia, Carlos Júnior conheceu o clássico, o contemporâneo e a dança de salão. “Faço balé, faço clássico”, orgulha-se. Nas voltas que o mundo dá, o bailarino deixou o Morro do Papagaio como bolsista, em 2009, e voltou ao aglomerado como professor do projeto social Dançando na Escola, em 2012. “Tenho muito orgulho dos meus passos com a dança. O preconceito e os ruídos me fortalecem. Se não fosse dançarino, seria pedreiro”, diz. Em casa de família grande – “somos oito” –, o bailarino e professor vive com irmãos, sobrinhos e os pais, Carlos Antônio, de 57, e Suzete Izidora, de 54.

Com os sonhos na ponta dos pés, Carlos Júnior – o “calango” na capoeira –, fala em graduar-se em dança pela UFMG. Pensa também em educação física, mas quer conhecer o mundo por meio da dança. “É um sonho que já começa a ser realizado quando saio de Belo Horizonte. Já estive em Joinville e em Curitiba com danças urbanas”, comemora. O masculino na dança é assunto delicado para Carlos. “É complexo. Os homens já descobriram a dança, mas, infelizmente, são poucos os que querem levá-la adiante, seriamente, como profissão”, avalia.

Hora de dançar Notícias diárias, no Espaço de Acervo e Criação Compartilhada (EACC), do Primeiro Ato, em Nova Lima. Um solo visceral, orientado pelo professor Fabrício Donato, que traz à cena um sujeito em crise com a família, “no limite”, que lê uma notícia que o desagrada. Por fim, o personagem come o jornal. Barba e cabelo crescidos, Carlos dança com o vigor e a força bruta de grande intérprete que se eleva ao mundo que compreende. “Dançar é viver. É ter um estilo diferenciado. O que aprendo na vida levo para o palco e vice-versa”, revela, feliz.




"O preconceito e os ruídos me fortalecem. Se não fosse dançarino, seria pedreiro"


Sentimentos do mundo
Casado, pai da pequena Olivia, Wagner Moreira, de 36, queria ser um ator completo, com domínio da dança e do canto. Menino, aos 13 decidiu aprender sapateado e foi mandado para o clássico. Na dança, em Barbacena, encontrou-se para o mundo. “Descobri muito cedo que a arte é uma porta”, revela. Pouco tempo depois, aos 16, Wagner tomou conta das salas de aula como professor. Tamanho sucesso o levou para a Alemanha, aos 24, para assumir escola em Westfalia. Em terras estrangeiras, o mestrado em coreografia e performance.

De passagem pelo Brasil, convidado por Suely Machado para a nova criação do Primeiro Ato, são de Wagner a concepção e coreografia de Só um pouco a.normal.

Como Arnaldo Alvarenga, da UFMG, Wagner não tem dúvidas da importância da dança na formação do homem. “Se todos os meninos tivessem a oportunidade de conhecer o papel do bailarino, os adultos teriam uma relação mais madura com as diferenças”, considera.

Para o mestre, os alemães são exemplo na educação dos filhos. “Lá, os pais levam os meninos para o balé e as meninas para o futebol. Eles estão atentos à sensibilidade das crianças. Isso nada tem a ver com opção sexual”, avalia. Wagner comenta ainda as cenas comuns de meninos empurrando carrinhos com bonecas nas ruas da Alemanha. “Afinal, eles também vão ser pais um dia. Por que não aprender, desde cedo, a ter cuidados com um bebê?”



"Se todos os meninos tivessem a oportunidade de conhecer o papel do bailarino, os adultos teriam uma relação mais madura com as diferenças"


Depoimentos
Tarcísio Ramos Homem
Bailarino, coreógrafo, mestre em artes e professor do Teatro Universitário (TU)


Quando comecei a dançar e também a fazer teatro, há exatamente 30 anos, comecei por um desejo de expressão, por uma necessidade de ocupar um espaço e aproximar-me de mim mesmo. Na época, os homens dançarinos chamavam a atenção, pois ainda era algo um pouco “estranho”, diferente e que sempre gerava dúvida sobre a opção sexual deles. Masculinidade e sexualidade se confundiam. Como os tempos mudaram um pouco, também mudou essa preocupação sobre a sexualidade. Creio que mudou o foco de discussão e interesses, permitindo aos jovens de hoje terem mais liberdade por suas opções. O que sempre busquei foi minha verdade como artista, e a cena era meu lugar mais masculino. Masculina é uma qualidade da energia, é a força, é o sol. Sinto que é com isso que devemos nos preocupar: nossa energia em cena e também fora dela. O importante é que nossas opções sejam comprometidas com o nosso saber, o nosso fazer, o nosso viver.

Jomar Mesquita
Diretor da Mimulus Companhia de Dança


A dança já surgiu na minha vida pelo lado masculino, pois meu pai foi o meu primeiro professor e quem primeiro me inspirou a dançar, há 25 anos. Apaixonei-me porque era uma forma de expressar e extravasar o que sentia. Principalmente por ser a dois, por dançar com uma mulher e, geralmente, de forma passional… Ou seja: meu lado masculino está sempre presente. Entretanto, para exercê-lo cada vez melhor, é fundamental o homem compreender muito bem o papel da parceira, de forma que a dança se torne diálogo entre os dois. Em toda a minha vida profissional se deu esse diálogo entre masculino e feminino. Não apenas dançando, mas também administrando a Mimulus, escola e companhia, ao lado de meus pais.

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