sábado, 14 de setembro de 2013

Das imoralidades da alma - André di Bernardi Batista Mendes

Carlos de Brito e Mello mostra com seu novo romance, A cidade, o inquisidor e os ordinários, que é um dos mais instigantes escritores brasileiros contemporâneos 


André di Bernardi Batista Mendes

Estado de Minas: 14/09/2013 


Revelado com o livro de contos O cadáver ri dos seus despojos, Carlos de Brito e Mello estreou no romance com o premiado A passagem tensa dos corpos       (Cristina Horta/EM/D.A Press)
Revelado com o livro de contos O cadáver ri dos seus despojos, Carlos de Brito e Mello estreou no romance com o premiado A passagem tensa dos corpos


A Companhia das Letras acaba de lançar A cidade, o inquisidor e os ordinários, do mineiro Carlos de Brito e Mello. Depois de ganhar um dos mais importantes prêmios literários do país, Carlos volta ao romance e prova que é um dos mais interessantes escritores da atualidade. Existe um cinismo imoral, arbitrário, que ampara, que acompanha a urgência do discurso de A cidade, o inquisidor e os ordinários. Todos, do Bobo ao Decoroso, do Olheirento ao Versificador, são cínicos. Eles às vezes sabem, às vezes não sabem de sua escolhas, dessa condição peculiar, perigosa para todas as instâncias e patentes. Carlos de Brito coloca uma pequena pedra, quase invisível, mas relevante, na boa consciência e nos modos.

O livro de Carlos nos leva a pensar, mas, melhor do que isso, ele incomoda. O escritor, delicadamente, aponta um dedo inconveniente. A sua fala é imprópria e chega a ser indecorosa, pois fulmina, atiça um vespeiro. Carlos aponta sua metralhadora e atira em Deus, nas patrulhas, nos carrascos, nas vítimas. Carlos monta uma rede de intrigas que revela o óbvio: somos todos, sem remissão, carrascos e vítimas.

O autor de A cidade, o inquisidor e os ordinários não propõe nenhuma espécie de dissolução, pois ele sabe que é apenas uma questão de tempo. Ocaso não é uma palavra fútil, muito menos de fácil aceitação. Carlos de Brito apenas escreve sobre o cotidiano, sobre o que acontece nos bares, nos lares, nas praças. Carlos de Brito é um daqueles raros escritores que escrevem sem máscaras. Ele é apenas ele, que revela um todo feito de nós e sombras.

As ideias de Carlos evoluem numa gangorra que produz vertigem. Sua montanha-russa não acaba, até o fim das quase 500 páginas do livro. O problema é que o leitor embarca num processo de identificação, numa ciranda, numa engrenagem suja de desconcertos. Sou a vizinha, sou a amada, sou o esposo e os filhos da amada, sou o impostor, sou o olheirento e o apregoador. Somos, quase sempre, como os andarilhos do romance:

“Levantemos?
E comecemos a andar.
Para tentar, de novo, sair desta cidade.
Você acha que vamos conseguir?
Nunca achei outra coisa.
Se não conseguirmos desta vez, que seja da próxima.
O quanto antes, o quanto antes.”

Tendência ao precário

Carlos de Brito é o melhor espião, é o mais qualificado soldado. O escritor planta com suas ideias, com suas tramas de espinhos, uma espécie de constrangimento. Não é por acaso que construímos prédios com paredes tão finas. Não é por acaso que confabulamos, trocamos ideias, serelepes e faceiros. Por isso somos, antes de tudo, curiosos. A grama do vizinho cresce na mesma proporção de todos os jardins? O fluxo do pensamento de Carlos de Brito segue um rumo feito de turbilhão e lucidez. Não existem limites quando corre um rio de águas livres. Carlos de Brito não tira leite, não floreia de flores; ele, apenas, fala das pedras. Carlos, em seu livro, mostra que é preciso corrigir as almas. Mas é preciso (será possível) corrigir o que não tem remédio? Não é possível corrigir a imperfeita trajetória dos galhos de uma árvore. Cada aresta, cada canto tem um propósito. Vem da nossa breve natureza esse gosto, esta nossa tendência para o precário. Todas as contendas, todo litígio merece atenção especial.

Decoro é uma palavra cheia de sombras. A dignidade de um cão é e não é a mesma que rege a nossa conduta humana. A postura de um homem revela, ou muito esconde? A moral é uma espécie de barco que possui uma bússola estranha, quase indecifrável. “Eu rezaria mais frequentemente e com mais crédito por um Deus ora colérico ora bondoso que nos servisse como certeira medida do bem, cujo Verbo fosse ainda capaz de gerar o espaço, de calcular o tempo, de ordenar a matéria, de fecundar as santíssimas, de inspirar os profetas, de castigar os patetas. Mas vejam só o que temos: cômodos com paredes rebocadas, ruas estreitas; relógios atrasados; nuvens gastas e amarelas, lagoa parada, minério pobre; santas carentes, profetas descrentes, patetas à larga. Rogaram-nos praga? Somos a praga”, disse o Decoroso.

A redenção pode vir, se é que virá, dos lugares mais insuspeitos. A natureza, neutra, cumpre suas trajetórias de sol e lua, de lua e sol, de acordo com meras contingências sempre naturalmente naturais. Sabem os bichos, sabem de cor alguns poucos viventes, talvez os mais apalermados viventes. Os homens constroem engrenagens e esse mesmo mecanismo edifica o próprio homem. Esse processo é feito de azáfama e atropelo. Montamos e desmontamos, de acordo com eventualidades, uma ciranda, um carrossel feito de remorso, medo e incerteza. Carlos tenta, com redobrada atenção e talento, revelar esta dinâmica ao embarcar nesse movimento circular.

A cidade do título pode ser qualquer cidade. Os ordinários existem na China, na Síria, em Nova York. “No que se agarra o condenado? Agarra-se à sua própria culpa. É ela que o mantém dependurado, dolorido e sofrente. Mas é por concordar em senti-la que o bobo se resguarda de desaparecer na queda, salvando-se a todo e cada instante em que continuar agarrado à sua pena”, disse o Apregoador. “É sempre surpreendente ver como se acalma um homem cuja soberania foi suprimida por um regulamento”, sintetiza o Olheirento. Mas, “para viver junto, vale mais o embuste ou franqueza?”, questiona a Impostora, e continua: “Quem, obcecado, procura pela verdade não é com uma impostora que vai encontrá-la, donde se tira que não existe melhor disfarce para o verdadeiro que a impostura”. Carlos de Brito articula um jogo de palavras que induz, que joga uns contra os outros. No livro, a cada condenação corresponde uma aventura peculiar, a cada susto desanda um ciclo de coisas.

Bem e mal

Quais são as normas do bem viver? Um padre diria enormidades de um paraíso; um delegado indicaria a lei; uma criança comeria chocolates. Carlos Brito fala de tristezas, de apatias, de boçalidades, de penas e juízos. Maus e bons, o bem e o mal, Carlos de Brito divaga sobre códigos e nomes. “A voz da lei ecoa pela cidade.” E mais: “Um condenado por bobeira não deve mais usar o seu nome próprio. Um condenado por bobeira fica reduzido a bobo”. É preciso manter o prumo, é preciso altas doses de entendimento e paciência. É preciso, acima de tudo, combater a apatia, a perda de ânimo, o embotamento intelectual. “A bobeira guarda parentesco com o antigo pecado da acídia”, que é preguiça, ou melancolia profunda.

É, e não é, como diz O Apregoador: “Os velhos pecados perderam a graça, e nós, os desgraçados, fomos obrigados a abaixar os olhos do céu. Agora, em nossos horizontes nada belos, a aurora e o poente ficam encobertos pela pachorra do vizinho”.

Carlos de Brito é, mal comparando, aquele louco da aldeia. Suas parábolas, suas analogias, seu discurso, solene e prolongado, despreza público e assistência. Carlos de Brito, num processo de colagem, monta um prisma, um calidoscópio feito de raiva e sarcasmo. Carlos de Brito não é casto, não se abstém dos prazeres, pois escreve, também, com ironia, uma das melhores facas. Carlos deixa pistas sobre as táticas usadas pelo inimigo. Algo risível: é impossível identificá-lo. Carlos Brito nos empresta uma espécie de mandato de busca e apreensão. Mas não há crime (quem é o vilão da história?), pois tudo prescreve, no tempo e na hora incerta. Carlos de Brito tece um ponto sem nó.

Carlos é dono de uma inteligência propícia. Contra interdições, sua literatura desconcerta, desconecta, questiona, com sabor e perspicácia, todos os elementos variáveis que entram na elaboração do conjunto de tramas sociais. Daria um bom filme o livro de Carlos de Brito. No entanto, um pouco Almodóvar, um pouco Fellini, ainda não nasceu um diretor que dê conta de um estilo tão estranho, ainda não surgiu uma alma capaz de traduzir em imagens um roteiro tão bem montado feito de descalabros, quedas e ruínas. Não existem parâmetros, mas tem, também, muito do teatro a estrutura do romance de Carlos de Brito.

Carlos de Brito aponta: é preciso atenção, é preciso respeitar as medidas. Vamos às compras, ficamos bonitos, esperamos, na feira, no mercado, fuxicamos e, solícitos, esperamos, sóbrios, por aquele bode que virá. Carlos de Brito e Mello tem uma cabeça boa. Que continue, então, o seu périplo de percalços.

O escritor nasceu em Belo Horizonte, é mestre em comunicação social, professor e psicanalista. Estreou em 2007 com os contos de O cadáver ri dos seus despojos (Scriptum). Foi vencedor, em 2008, do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria jovem escritor mineiro. A passagem tensa dos corpos (Companhia das Letras, 2009) foi um dos romances finalistas dos prêmios São Paulo de Literatura, Portugal Telecom e Jabuti.



A cidade, o inquisidor e os ordinários

De Carlos de Brito e Mello
Editora Companhia das Letras, 472, R$ 49,50

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