sábado, 14 de setembro de 2013

Epidemia da indiferença - Mozahir Salomão Bruck

Jovens negros e pobres vêm sendo dizimados no Brasil, com participação crescente nas estatísticas do mapa da violência. A sociedade brasileira é insensível a esse genocídio 


Mozahir Salomão Bruck


Estado de Minas: 14/09/2013 


Manifestantes denunciam assassinatos em favela do Rio de Janeiro     (Vanderlei Almeida/AFP)
Manifestantes denunciam assassinatos em favela do Rio de Janeiro


O diálogo, de tão nonsense, bem poderia ser a cena de um filme de David Lynch ou ter brotado de um sonho de Glauber Rocha. Mas não. Era real e transmitido pelo rádio. Com toda a rudeza do real com que o real, nessas situações, é construído. Um repórter policial, conhecido por sua postura inquisidora e tribunalista, entrevista dois adolescentes, de 13 e 14 anos. Ambos foram apreendidos depois de uma troca de tiros com outro jovem, que ficou gravemente ferido na disputa, ao que tudo indica, por um ponto de venda de drogas. Depois de fazer várias perguntas aos garotos sobre como eles conseguiram a arma para atirar no outro rapaz, o jornalista dispara:

Repórter – Qual a necessidade de um garoto de 13 anos comprar arma?
Menor 1 – Pra mim mesmo, né...
Repórter – Pra sua defesa?
Menor 1 – Pra minha legítima defesa, né...
Repórter – Você tá em guerra, tá jurado de morte?
Menor 2 – Tem nada a ver, não...                             

O repórter segue em sua entrevista. Ao final, pergunta para o adolescente de 13 anos o que ele espera da vida, depois de ter sido apreendido pela tentativa de assassinato. A resposta do garoto é instigantemente reveladora. Mesmo mergulhado em sua vida violenta e incerta, o menor tem a noção de que para jovens como ele o risco de não chegar à idade adulta é enorme.

Repórter – Você, que tem 13 anos, espera o que da vida?     
Menor – Ah, espero crescer, né... Ainda tô fazendo curso de informática aí... Ficar estudando aí, ficar de boa, né?

A leitura deste artigo, certamente, pode levar a percepções e reações bem distintas. E não é para menos. Se se fala, por um lado, sobre uma situação que deveria envergonhar a sociedade brasileira - o que poderia se chamar de genocídio de jovens negros no Brasil -, por outro lado refere-se a crueldades e tragédias que tomaram conta do cotidiano e vitimizaram milhares de pessoas em todo o país, com perdas de familiares em assaltos, arrombamentos, agressões desmotivadas. Violência cruel e descontrolada. Gratuita e sem arrependimento. Muitas vezes, impune. Ruptura de pactos de toda ordem. Banalização da vida. Banalização do mal que a ceifa.

A despeito dessas mazelas e crueldades tão reais e desmanteladoras de destinos, quando pensamos em termos coletivos no conjunto da sociedade, há uma tragédia se desenhando social e historicamente - sobre a qual a sociedade brasileira prefere silenciar: na guerrilha urbana do tráfico e dos crimes em geral, o país está perdendo gerações de jovens negros que não chegaram ou não chegarão à idade adulta. São dezenas de milhares. Chama a atenção o comparativo entre o número de jovens brancos e o de negros mortos em situação de violência. As estatísticas, reunidas no Mapa da Violência de 2013, organizado por Julio Jacobo Waiselfisz, chocam pelo abismo em que a sociedade brasileira é lançada quando se faz esse tipo de comparação.

México

Inicialmente, é importante destacar: o Brasil se tornou um país extremamente violento. Por ano, cerca de 50 mil pessoas morrem assassinadas. Com sua taxa de 27,4 homicídios por 100 mil habitantes, supera amplamente índices dos 12 países mais populosos do mundo. Só o México se aproxima: sua taxa foi de 22,1 homicídios por 100 mil pessoas. Nos 10 anos de estudos pelo Brasil, a equipe de Waiselfisz calcula em quase meio milhão os cidadãos vítimas de homicídio. A participação de jovens supera 60% (307.629). Tomando como referência 2011, na estratificação dessa vitimização por etnia, 71,4% dos mortos eram negros e 28,2% brancos - quase três para um. Essa proporção abismal vem se ampliando. Em 2002, a composição era de 41% de brancos para 58,6% de negros, dados válidos para todo o Brasil.    

Os dados acerca dos jovens assassinados são tão horríveis quanto os dados gerais, se não mais. Em 2002, a participação de jovens brancos no total de mortos era de 41%, o de negros chegava a 58,5%. Dez anos depois, essa diferença era de 33,8% para 65,8%. Se as setas demográficas apontam para um Brasil de faixas etárias prevalentes cada vez mais adultas, outro processo em curso preocupa: nossos adolescentes, especialmente os negros, estão ficando pelo caminho. Não se tornam adultos. Morrem brutalmente no trânsito ou em conflitos armados.

Como já se mostrou amplamente, a expectativa de vida dos adolescentes envolvidos com o tráfico e outros crimes é incrivelmente baixa. No xadrez da guerrilha urbana, são os peões da linha de frente, disponíveis para serem martirizados na guerra interna das drogas ou contra a polícia. Tanto faz. Não é à toa que o garoto de 13 anos tem como meta principal “crescer”, chegar à idade adulta. Não “cair” é vitória ímpar.

Recentemente, Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, alertou para o que chamou de “epidemia da indiferença” em relação à matança étnica de jovens negros no Brasil. O depoimento está no próprio Mapa. Em alguns estados, a desproporção no comparativo entre mortes de jovens brancos e negros é assustadora, revelando o abismo social em que pessoas brancas e negras vivem no país.

Alagoas

No Nordeste, os números são gravíssimos. Tome-se como exemplo Alagoas. A taxa de homicídios de jovens negros chega a 201,2 por grupos de 100 mil. Já a taxa de jovens brancos está em 15,5 por 100 mil (cerca de 13 vezes menor). Na Paraíba, a taxa de jovens negros por 100 mil assassinados (134,1) é cerca de 22 vezes maior que a de jovens brancos (6,3). A lógica dessa vetorização é facilmente perceptível. Quanto mais pobres as regiões, mais elevada a taxa de homicídios de jovens negros.    

Para o diretor executivo da Anistia Internacional, pode-se falar em “quase cumplicidade de grande parcela da sociedade com uma situação que deveria ser tratada como uma verdadeira calamidade social”. Ele aponta a “naturalização da violência” e o grau assustador de complacência do Estado em relação a essa tragédia: “É como se estivéssemos dizendo, como sociedade e governo, que o destino desses jovens já estava traçado”.

Mozahir Salomão Bruck é professor de jornalismo da PUC Minas e pesquisa os efeitos do crack na sociedade brasileira

“Quando você for convidado pra subir no adro
Da Fundação
Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados,
quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros
quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos
pobres como pretos
Como é que pretos,
pobres e mulatos
E quase brancos
quase pretos
de tão pobres são tratados”

Haiti, de Caetano Veloso e Gilberto Gil
    

O HAITI É AQUI


50 mil
pessoas assassinadas por ano no Brasil

65,8%
dos jovens assassinados em 2012 eram negros

33,8%
dos jovens assassinados em 2012 eram brancos

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