João Paulo
Estado de Minas: 14/09/2013
Para Clarice, a amizade ia muito além da convenções: era uma espécie de simpatia entre almas |
Que
mistérios tem Clarice? Quem mergulha na obra, na vida ou nas tentativas
de compreensão do universo da criadora de A paixão segundo GH sai de lá
ainda mais atordoado. Clarice Lispector não se explica. As categorias
racionais não dão conta, o puro recurso à emoção não a esgota. Nem mesmo
a importante biografia de Benjamin Moser (Clarice), a mais completa, ou
as centenas de estudos em todo o mundo são capazes de decifrar Clarice.
Talvez por isso o livro Com Clarice, de Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti seja tão especial. Ele não busca esgotar o tema, mas apresentar mais uma inflexão. Nele, percorrem-se vários caminhos – da entrevista biográfica aos estudos acadêmicos –, mas sempre a partir de uma chave única e quase exclusiva: a amizade. Affonso e Marina foram próximos de Clarice, uma amizade que percorreu os caminhos da literatura e da vida.
Ainda jovem estudante de letras, Affonso publica livro com ensaio dedicado à escritora. Marina confessa que, pouco mais que adolescente, “trombou” com ela nas páginas da revista Senhor e nunca mais foi a mesma, em razão de “um tranco na alma”. O casal depois se ligaria a Clarice e seria testemunho de vários momentos marcantes de sua vida. Foram também Affonso e Marina dos últimos amigos a se despedir da escritora no hospital, antes que ela dissesse à enfermeira, frente à decadência irreversível do corpo: “Você matou minha personagem”.
O livro é dividido em três partes e um anexo precioso, a transcrição completa da entrevista de Clarice ao casal para registro do Museu da Imagem e do Som (MIS), em 1976, um ano antes de sua morte. A escolha dos entrevistadores foi da própria escritora e, distante da reticência que sempre marcou seu contato com a imprensa, ela se abre em lembranças e pequenas confissões, numa atmosfera de conversa amena entre íntimos.
Cada uma das partes é dividida em dois capítulos, um para Marina e outro para Affonso, que ao final se reúnem na entrevista. A voz de cada um é percebida não apenas no tom das recordações, mas também no estilo: o poeta é mais rigoroso, analítico, acadêmico; a jornalista, mais amena, íntima, lírica. Com isso, ganha o leitor, que acaba tendo de Clarice olhares diferentes, mas que parecem se somar numa multiplicidade de imagens, num caleidoscópio colorido em que ela é o ponto de luz em torno do qual vibram as cores e formas.
A primeira seção, “Com Clarice”, é dedicada a textos mais recentes e que levam o nome de “Lembrando Clarice”. São, de certa forma, uma apresentação do material que virá em seguida. Affonso faz um pequeno balanço pessoal de sua aproximação com a escritora, revelando alguns momentos menos conhecidos. Ele conta que Clarice tinha uma única conferência preparada que ela, a cada oportunidade, adaptava ao público e à circunstância. Lembra de seu primeiro encontro com a escritora, em 1963, em Belo Horizonte, e de seus últimos momentos, no Hospital da Lagoa.
Marina Colasanti começa recordando a entrevista no MIS, atentando para a elegância das roupas de Clarice; recorda seu primeiro encontro, apresentada à escritora pelo jornalista Yllen Kerr; tem um lampejo da beleza das mãos da escritora. Marina retoma ainda a memória das relações com Clarice cronista no mesmo jornal em que ela era subeditora e cuidava da leitura e preservação dos textos (Clarice não fazia cópias e se atrapalhava com o carbono) e fala de sua participação em um congresso na França, onde dividiu a palavra com especialistas internacionais na obra da amiga. Por fim, num episódio clariciano, conta que foram ela e Affonso que levaram a escritora à cartomante Nadir, que depois apareceria recriada no último romance de Clarice Lispector, A hora da estrela.
Delicadeza A segunda parte de Com Clarice se chama “De Marina para Clarice”. Em vez de buscar explicações, Marina Colasanti escolhe a via da literatura para retratar a amiga em um conto, “Porque a pena”, e numa crônica lírica e evocativa, “Clarice perto do coração”. São textos delicados. O primeiro se parece um conto da própria Clarice, pela aura de mistério composto apenas de palavras simples e situações corriqueiras, em que se revela a entrega do dom. Na crônica, Marina fala da amiga que se vai, no momento em que parece perceber a força material da pintura e do corpo na vida de Clarice. “O corpo de Clarice não aguentava Clarice”.
Seguindo a matriz binária do livro, a terceira parte é “De Affonso para Clarice”, a mais extensa do volume. Aqui o registro é erudito. São três ensaios do escritor sobre a obra da criadora de Água viva. No primeiro, “Clarice Lispector: linguagem”, de 1962, o escritor analisa A maçã no escuro a partir dos temas que eram dominantes no momento, a questão da linguagem e das vanguardas. O segundo ensaio, retirado do livro Análise estrutural de romances brasileiros, analisa os livros Laços de família e A legião estrangeira, com direito a diagramas e estatísticas próprios da moda estruturalista. A tese de Romano é que a epifania era o elemento fundamental da narrativa da escritora. O que será aprofundado no ensaio que fecha a seção, “O ritual epifânico do texto”, que analisa, entre outros aspectos, o uso de oxímoros, a errância e a deseroização dos personagens de Clarice.
Affonso, no entanto, não fica apenas no registro acadêmico e também reúne escritos pessoais sobre Clarice dedicados a diferentes aspectos de sua vida. Como o episódio em que recebe um cacho de cabelos da escritora para guarda da Biblioteca Nacional, que então dirigia; ou sobre a sensação de se sentir encalhado numa palavra e perder anos de vida por não saber se libertar dela; e ainda sobre a solidão da escritora ao participar de um evento literário.
O apêndice, com a transcrição da entrevista, com quase 50 páginas, devolve a palavra a Clarice. Mas uma palavra mediada pelo encontro, pela amizade, pela sensação de se sentir acolhida. O que permite que, em vez de se fechar, como era habitual em entrevistas, ela tenha momentos encantados, intercalados por outros em que fala do passado, de bruxaria, do trabalho como tradutora, da crítica, da vida cotidiana e de literatura. Clarice conta do livro em que andava trabalhando (que seria seu último romance, A hora da estrela), de bichos e de suas leituras. Ao final, num momento de descontração, fica feliz em ser comparada a uma gata. O mistério de Clarice.
Com Clarice
• De Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti
• Editora Unesp
• 256 páginas R$ 38
Talvez por isso o livro Com Clarice, de Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti seja tão especial. Ele não busca esgotar o tema, mas apresentar mais uma inflexão. Nele, percorrem-se vários caminhos – da entrevista biográfica aos estudos acadêmicos –, mas sempre a partir de uma chave única e quase exclusiva: a amizade. Affonso e Marina foram próximos de Clarice, uma amizade que percorreu os caminhos da literatura e da vida.
Ainda jovem estudante de letras, Affonso publica livro com ensaio dedicado à escritora. Marina confessa que, pouco mais que adolescente, “trombou” com ela nas páginas da revista Senhor e nunca mais foi a mesma, em razão de “um tranco na alma”. O casal depois se ligaria a Clarice e seria testemunho de vários momentos marcantes de sua vida. Foram também Affonso e Marina dos últimos amigos a se despedir da escritora no hospital, antes que ela dissesse à enfermeira, frente à decadência irreversível do corpo: “Você matou minha personagem”.
O livro é dividido em três partes e um anexo precioso, a transcrição completa da entrevista de Clarice ao casal para registro do Museu da Imagem e do Som (MIS), em 1976, um ano antes de sua morte. A escolha dos entrevistadores foi da própria escritora e, distante da reticência que sempre marcou seu contato com a imprensa, ela se abre em lembranças e pequenas confissões, numa atmosfera de conversa amena entre íntimos.
Cada uma das partes é dividida em dois capítulos, um para Marina e outro para Affonso, que ao final se reúnem na entrevista. A voz de cada um é percebida não apenas no tom das recordações, mas também no estilo: o poeta é mais rigoroso, analítico, acadêmico; a jornalista, mais amena, íntima, lírica. Com isso, ganha o leitor, que acaba tendo de Clarice olhares diferentes, mas que parecem se somar numa multiplicidade de imagens, num caleidoscópio colorido em que ela é o ponto de luz em torno do qual vibram as cores e formas.
A primeira seção, “Com Clarice”, é dedicada a textos mais recentes e que levam o nome de “Lembrando Clarice”. São, de certa forma, uma apresentação do material que virá em seguida. Affonso faz um pequeno balanço pessoal de sua aproximação com a escritora, revelando alguns momentos menos conhecidos. Ele conta que Clarice tinha uma única conferência preparada que ela, a cada oportunidade, adaptava ao público e à circunstância. Lembra de seu primeiro encontro com a escritora, em 1963, em Belo Horizonte, e de seus últimos momentos, no Hospital da Lagoa.
Marina Colasanti começa recordando a entrevista no MIS, atentando para a elegância das roupas de Clarice; recorda seu primeiro encontro, apresentada à escritora pelo jornalista Yllen Kerr; tem um lampejo da beleza das mãos da escritora. Marina retoma ainda a memória das relações com Clarice cronista no mesmo jornal em que ela era subeditora e cuidava da leitura e preservação dos textos (Clarice não fazia cópias e se atrapalhava com o carbono) e fala de sua participação em um congresso na França, onde dividiu a palavra com especialistas internacionais na obra da amiga. Por fim, num episódio clariciano, conta que foram ela e Affonso que levaram a escritora à cartomante Nadir, que depois apareceria recriada no último romance de Clarice Lispector, A hora da estrela.
Delicadeza A segunda parte de Com Clarice se chama “De Marina para Clarice”. Em vez de buscar explicações, Marina Colasanti escolhe a via da literatura para retratar a amiga em um conto, “Porque a pena”, e numa crônica lírica e evocativa, “Clarice perto do coração”. São textos delicados. O primeiro se parece um conto da própria Clarice, pela aura de mistério composto apenas de palavras simples e situações corriqueiras, em que se revela a entrega do dom. Na crônica, Marina fala da amiga que se vai, no momento em que parece perceber a força material da pintura e do corpo na vida de Clarice. “O corpo de Clarice não aguentava Clarice”.
Seguindo a matriz binária do livro, a terceira parte é “De Affonso para Clarice”, a mais extensa do volume. Aqui o registro é erudito. São três ensaios do escritor sobre a obra da criadora de Água viva. No primeiro, “Clarice Lispector: linguagem”, de 1962, o escritor analisa A maçã no escuro a partir dos temas que eram dominantes no momento, a questão da linguagem e das vanguardas. O segundo ensaio, retirado do livro Análise estrutural de romances brasileiros, analisa os livros Laços de família e A legião estrangeira, com direito a diagramas e estatísticas próprios da moda estruturalista. A tese de Romano é que a epifania era o elemento fundamental da narrativa da escritora. O que será aprofundado no ensaio que fecha a seção, “O ritual epifânico do texto”, que analisa, entre outros aspectos, o uso de oxímoros, a errância e a deseroização dos personagens de Clarice.
Affonso, no entanto, não fica apenas no registro acadêmico e também reúne escritos pessoais sobre Clarice dedicados a diferentes aspectos de sua vida. Como o episódio em que recebe um cacho de cabelos da escritora para guarda da Biblioteca Nacional, que então dirigia; ou sobre a sensação de se sentir encalhado numa palavra e perder anos de vida por não saber se libertar dela; e ainda sobre a solidão da escritora ao participar de um evento literário.
O apêndice, com a transcrição da entrevista, com quase 50 páginas, devolve a palavra a Clarice. Mas uma palavra mediada pelo encontro, pela amizade, pela sensação de se sentir acolhida. O que permite que, em vez de se fechar, como era habitual em entrevistas, ela tenha momentos encantados, intercalados por outros em que fala do passado, de bruxaria, do trabalho como tradutora, da crítica, da vida cotidiana e de literatura. Clarice conta do livro em que andava trabalhando (que seria seu último romance, A hora da estrela), de bichos e de suas leituras. Ao final, num momento de descontração, fica feliz em ser comparada a uma gata. O mistério de Clarice.
Com Clarice
• De Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti
• Editora Unesp
• 256 páginas R$ 38
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