Crise na Síria: aliança atlântica
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Em 1899, Rudyard Kipling, poeta preeminente do imperialismo britânico, redigiu algumas estrofes dirigidas aos EUA. "Assuma o fardo do homem branco", exortou ele: "As guerras selvagens pela paz/ Sacie os famintos/ E proclame, das doenças, o cessar". Atualmente, os EUA têm um presidente negro e nenhum intelectual se atreveria a usar a linguagem imperialista de Kipling. Mas a ideia de que os EUA têm um peso especial em polícia do mundo está muito viva. A ideia estava lá, na exortação de Barack Obama por ação militar contra a Síria: "Nós somos os EUA", declarou o presidente - delineando o papel especial de seu país na criação e na defesa da ordem mundial pós-1945.
Mas, estarão os EUA ainda dispostos a desempenhar o papel de polícia do mundo e a travar as "guerras selvagens da paz"? Essa pergunta vai pairar sobre o debate no Congresso em torno da intervenção na Síria. A própria hesitação de Obama e as pesquisas de opinião nos EUA evidenciam que muitos americanos têm sérias dúvidas. E elas provavelmente serão reforçadas pela decisão britânica de não participar de uma intervenção militar na Síria. Quase 80 anos após a morte de Kipling, muitos no Reino Unido têm interpretado a decisão do Parlamento como um sinal de que o Reino Unido finalmente descartou o instinto pós-imperial de policiar o mundo, até mesmo como xerife adjunto dos EUA.
Como o Reino Unido é o quarto maior poder militar no mundo, e membro do Conselho de Segurança da ONU, tal decisão produzirá ramificações em âmbito mundial. Mas se os EUA tomarem um caminho semelhante, isso abalaria verdadeiramente o mundo. Mas a possibilidade claramente existe. Os EUA estão cansados de guerras, depois do Iraque e do Afeganistão, e sua economia foi enfraquecida pela recessão. A revolução do gás de xisto tornou o país menos dependente do Oriente Médio. Os americanos, de Obama para baixo, já não acalentam a ilusão de que suas tropas serão recebidas com flores em países estrangeiros. Em vez disso, como advertiu Kipling, eles aprenderam a esperar "a pecha de culpados lançada pelos alvos das melhorias/ O ódio daqueles que protegeis".
Os adversários dos EUA tirarão suas conclusões se os EUA não agirem na Síria, e o mesmo valerá para seus aliados. Os governos do Japão, Israel e Polônia, para citar apenas alguns, irão, todos, sentir-se menos seguros se o Congresso votar contra a ação militar na Síria.
Como no Reino Unido, parece ter se aberto um fosso, nos EUA, entre um establishment de política externa que ainda assume que seu país deve policiar o mundo - e uma opinião pública mais cética. As pesquisas mostram que quase três quartos do público britânico aprovaram a decisão do Parlamento sobre a Síria. Enquanto isso, o debate no Congresso terá lugar num contexto em que as pesquisas de opinião mostram que os americanos estão divididos ao meio em relação aos ataques com mísseis de cruzeiro planejados pelo presidente.
Essas ansiedades em relação à Síria são inteiramente compreensíveis. Embora Obama tenha sublinhado triplamente sua intenção de estar contemplando apenas um ataque limitado, existem algumas questões que ele não pode realmente responder. O que acontecerá se Bashar al-Assad, o líder sírio, não se abalar e usar novamente armas químicas? Estaremos dispostos a ignorar todas as outras formas de violação dos direitos humanos na Síria? Será que os EUA têm alguma visão política viável para o futuro da Síria? Disparar alguns mísseis de cruzeiro contra Damasco e esperar que isso melhore as coisas de alguma forma não parece ser uma estratégia muito sofisticada.
Há questões mais amplas. Os EUA vêm-se como garantidores da segurança mundial desde 1945, mas isso nunca significou intervir em todos os conflitos ou fazer cessar todos os abusos contra os direitos humanos. Os EUA não intervieram na guerra Irã-Iraque dos anos 1980, que, como o conflito sírio, foi travada entre dois campos nos quais os EUA não tinham confiança e também envolveu o uso de armas químicas.
A noção de que o papel dos EUA hoje envolve intervir em conflitos civis particularmente sangrentos ou fazer valer uma proibição ao uso de determinadas armas ganhou terreno apenas desde os anos 1990. Suas origens encontram-se no genocídio em Ruanda, na guerra na Bósnia e no desenvolvimento de uma nova doutrina sobre "armas de destruição em massa", como parte de uma guerra contra o terror.
Num discurso em 2009, Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico que muito fez para desenvolver essa doutrina de intervencionismo liberal, perguntou retoricamente: "Deveríamos agora voltar a uma política externa mais tradicional, menos ousada, mais cautelosa, menos idealista, mais pragmática, mais disposta a tolerar o intolerável por medo das consequências imprevisíveis que as intervenções podem trazer"? A Câmara dos Comuns respondeu agora afirmativa e claramente essa indagação, repudiando o legado blairista.
A rejeição, pelo Congresso, de um envolvimento na Síria seria um sinal de que os EUA também estão revertendo a uma visão mais tradicional e restrita de que as ações de uma potência estrangeira justificariam a mobilização do poderio militar americano. Em teoria, portanto, uma recusa a agir na Síria não envolveria necessariamente uma total abstenção americana do papel de polícia mundial. O problema é que - além de incentivar novas atrocidades pelo regime de Assad - a decisão dos EUA, seria inevitavelmente interpretada como o envio de uma mensagem muito mais ampla. Isso se deveria à crença em que "linhas vermelhas" de advertência americanas significam algo que sustenta grande parte da arquitetura de segurança mundial - do Oceano Pacífico ao Golfo à relação russo-polonesa.
Para bem ou para mal, Obama traçou uma linha vermelha na Síria. Como ele sugeriu no fim de semana, os adversários dos EUA tirarão suas conclusões se os EUA não agirem na Síria, e o mesmo valerá para seus aliados. Os governos do Japão, Israel e Polônia, para citar apenas alguns, irão, todos, sentir-se menos seguros se o Congresso votar contra a ação militar na Síria. O mundo depende do policial americano mais do que se dá conta. (Tradução de Sergio Blum)
Gideon Rachman é o principal analista de assuntos internacionais no FT.
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