quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Eleição e religião - Frei Betto

No Brasil, há um óbvio ressurgimento da apropriação do espaço público por instituições religiosas


Frei Betto

Estado de Minas: 23/10/2013 




 Na campanha presidencial de 2014, veremos reprisar o que tanto afetou a de 2010: o fator religioso. O debate em torno da questão do aborto assumiu muito mais importância do que demandas urgentes como melhoria da saúde e da educação, ou projetos de emancipação nacional, como a reforma agrária e a preservação da Amazônia.
O aborto e outros temas ligados aos direitos reprodutivos e à sexualidade são apenas o biombo que encobre algo muito mais ameaçador: o fundamentalismo religioso como força política.


A globocolonização neoliberal, ao se impor ao planeta hegemonizada pelo capitalismo como sistema ideal de sociedade, se chocou com princípios religiosos de Estados e sociedades islâmicas que não distinguem laicidade e religiosidade.
No Brasil, embora a “questão religiosa” esteja formalmente equacionada desde o século 19, quando houve a separação oficial entre Igreja e Estado, há um óbvio ressurgimento da apropriação do espaço público por instituições religiosas.
Não cabe aqui a distinção dicotômica entre esfera pública reservada ao Estado e a esfera privada à religião. Público e privado são duas faces de uma mesma moeda e, embora diferenciadas, não podem ser separadas.


A religião goza, sim, do direito de expressão pública e de recusar ao Estado o monopólio do controle da sociedade. Porém, assim como o Estado, à luz da laicidade moderna, não tem o direito de “professar” uma religião e atuar contra o pluralismo religioso, não se pode admitir que a religião se aproprie do Estado para universalizar, via legislação civil e mecanismos de controle, seus princípios e normas doutrinários.


O fundamentalismo religioso nasceu nos EUA, no início do século 20, com o objetivo de evitar a erosão, pelo secularismo, das crenças fundamentais da tradição protestante, como a expiação substitutiva realizada pela morte de Jesus e o seu iminente regresso para julgar e governar o mundo, e a infalibilidade da Bíblia, tomada em sua literalidade, como a criação direta do mundo e da humanidade por Deus, em oposição ao evolucionismo e ao darwinismo.


Em meados do século passado, os fundamentalistas cristãos se convenceram de que não bastava pregar no interior dos templos e converter corações e mentes. Era preciso impor à sociedade tudo isso que concorre para o “bem dela”, como a criminalização do aborto e da homossexualidade, do uso do álcool e do fumo, do entretenimento pornográfico, e até mesmo de projetos que visam a reduzir a desigualdade social, considerada reflexo da vontade divina.


Tal empreitada só é possível pelo controle das instituições políticas, que, de fato e de direito, decidem o que é legal (bem) e o que é ilegal (mal) ao conjunto da sociedade. Um pastor ou padre podem convencer seus fiéis de que ingerir bebidas alcoólicas é contrário ao mandamento divino. Um governante pode muito mais: decretar a lei seca e entregar às garras da Justiça todos que produzirem e comercializarem produtos etílicos.


Nos nichos religiosos fundamentalistas do Brasil, se choca o ovo da serpente, à semelhança do que ocorre em países em que princípios derivados de tradições religiosas dispensam a formalidade de um texto constitucional e nos quais não se concebe uma laicidade independente da religiosidade.


Até agora os possíveis candidatos à Presidência da República em 2014 ensaiam seus discursos na defesa do governo petista, na crítica a esse governo ou na promessa de aprimorar o que já se fez, como as políticas sociais. Por enquanto, trata-se de obter meios, como coligações partidárias que assegurem mais tempo de campanha eleitoral na TV e posterior condições de
governabilidade.


Ano que vem, definidas as candidaturas, elas terão de tratar também dos fins, ou seja, dizer a que vieram e para que vieram. Aí é que a porca torce o rabo. Na caça aos votos, os candidatos serão pressionados pelos lobbies religiosos, que se julgam os únicos intérpretes da vontade divina, a darem mais importância à temática do moralismo farisaico, que insiste na pureza das mãos sem que se abram os braços aos pobres e excluídos caídos à margem da sociedade, na contramão do que ensina a Parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37).

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