quarta-feira, 23 de outubro de 2013

FERNANDO BRANT » Invento o cais‏

Estado de Minas: 23/10/2013 






Quando a vida lá fora se faz quase insuportável, quando o mundo pesa nos ombros, a primeira coisa que faço é abrir a tela do computador e me envolver na imagem da Clara e do Lucas no colo do avô. É um oásis, uma vereda no grande sertão de minha vida. Faço como Ronaldo Bastos e Milton: invento o cais.

Procuro aqui e ali histórias, livros e canções que me aliviem. Fico aberto para as belezas, mesmo pequenas, que o cotidiano me traz. Assistindo a uma entrevista do Toquinho e do grande Zuza Homem de Melo falando sobre Vinicius de Moraes, pude dormir tranquilo no primeiro dia de horário de verão, esse incômodo que nos impõem durante quatro meses, todos os anos, desde os tempos do marechal Castelo Branco.

Toquinho falou da letra de Tarde em Itapuã, letra que Vinicius fizera para entregar a Dorival Caymmi. Na hora de embarcar para uma viagem a São Paulo, vendo a letra presa na pequena máquina de escrever do poeta, o violonista surrupiou-a com a intenção de musicá-la. Quando se encontrou novamente com Vinicius, percebeu que ele tentava refazer o que escrevera. Quando soube da travessura do jovem parceiro, mesmo zangado, o poeta se dignou a ouvir o que ele aprontara com seu texto. E acabou aceitando e incorporando ao seu repertório.

Ouvindo a canção, enquanto o sono da noite não vinha, imaginei que o acontecido fora benfeito, pois Caymmi dificilmente iria musicar uma letra em que a praça em sua homenagem era citada.

E o Zuza, um dos maiores conhecedores de música popular, um homem musical e generoso, lembrou fatos e feitos do poeta centenário. E ressaltou que foi com Vinicius, a partir dele, que jovens talentos se envolveram na arte de escrever letras de canções, elevando a qualidade poética do cancioneiro brasileiro. Claro que já existiam exemplos marcantes, como a obra de Noel Rosa, a cada dia que passa mais reconhecida, e as incursões bissextas de Manuel Bandeira em parcerias com Villa-Lobos e Jaime Ovalle.

Mas foi com Vinicius de Moraes que, de repente, não mais que de repente, uma geração de rapazes e moças de nível universitário, bons na escrita e bons de ouvido, se lançou na aventura de compor um repertório de qualidade e quantidade que embalou e embala até hoje os corações brasileiros.

Para melhorar de vez o dia, assisti, aconselhado por meu amigo e parceiro Geraldo Vianna, à Lenda do santo beberrão, belo filme do italiano Ermanno Olmi. Foi aí que me lembrei: na criação da obra-prima Cais, há uma história semelhante à de Tarde em Itapuã. E foi para o bem de todos nós.


>>  www.fernandobrant@hotmail.com

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