O Estado de S. Paulo - 23/10/2013
O estado de coisas da política no País desafia o entendimento, tudo
está fo-, ra dos eixos e sob o império da imprevisibilidade. São três
as candidaturas principais à sucessão presidencial, de certo, mesmo,
apenas as legendas - PT, PSDB e PSB-Rede -, uma vez que cada qual tem
seu duplo: Dilma, o Lula; Aécio Neves, José Serra; e Eduardo Campos,
Marina Silva. As manifestações e os protestos de rua, que se sucedem
numa interminável parada cívica, iniciaram-se sob o figurino de
Chapeuzinho Vermelho para a horas tantas, imprevistamente, se
travestirem com as roupagens do Lobo Mau.
A política, arredia até os idos das jornadas de junho, a partir daí
tomou conta do cenário, com intensa movimentação dos partidos,
inclusive com a criação de mais duas legendas, e dos movimentos
sociais, particularmente daqueles vinculados às novas camadas médias
-categoria social que, entre nós, é de compreensão fugidia -, embora
esses dois grupos mal se toquem, salvo nos pontos mais doloridos. Mas,
como se viu, essa movimentação girou no vazio, uma vez que, com a
distância que partidos e movimentos sociais mantêm entre si, nem aqueles
têm sua legitimidade reforçada, nem estes refinam suas agendas, a fim
de conduzi-las à concretização, as quais são, no melhor dos casos,
tangidas em estado bruto para uma ação legislativa de emergência. Nessa
lógica, os movimentos exaurem-se em suas atividades episódicas, não
deixando rastro institucional.
Num certo momento, a fúria legislativa, orientada para sanar o imenso
vazio entre os órgãos de representação e os representados, foi de tal
monta que poderia sugerir estarmos a viver um processo constituinte
permanente. Apropria Constituição, justo no ano em que completa 25 anos
de bons serviços prestados ao País, foi posta sob ameaça com a
tentativa da Presidência da República de convocar uma dita Assembleia
Constituinte para o fim exclusivo de realizar uma reforma política, que
certamente ultrapassaria esses limites. Felizmente, tal risco foi
exorcizado e ninguém fala mais dela. Na retórica, flertou-se com o
tempo das revoluções, não faltando os devaneios barrocos sobre os
poderes constituintes da multidão.
Mas o fosso a separar os partidos e os políticos das ruas, da
juventude e dos movimentos sociais, longe de diminuir no curso desses
longos meses que já nos separam dos idos de junho, agrava-se. Trata-se
de uma combinação que alia a descrença generalizada nas instituições
políticas e, em geral, nas republicanas à adesão a um fervor quase
místico na ação espontânea do social. O colunista Arnaldo Bloch, no
artigo Sobre nazismo e descrença na política (O Globo, 12/10), não
importa que hiperbolicamente, fixou um registro que não pode mais passar
despercebido: "No Brasil, um caldo de cultura ruim está se formando".
Por toda parte, larva a síndrome do ressentimento, especialmente nos
jovens e em todos os que não se sentem reconhecidos em seus direitos e
identidades, a sensação de uma exclusão injusta porque, embora se
sintam formalmente convidados pelas nossas instituições e pelo discurso
oficial a participar do festim dos êxitos da modernização econômica do
País, esbarram na estreiteza das portas que dão acesso a ele. No SUS,
nas escolas, por toda parte. Ressentimento, desconfiança, anonimato,
nas ruas e na internet, orgulhosa recusa dos caminhos do diálogo com o
outro e desdém, quando não desprezo, pela esfera pública instituída.
Nada medra nesse terreno sáfaro e tudo definha ao seu redor.
Duas décadas de uma política que hipotecou a sorte do moderno à
modernização, em suas opções pelas alianças com o que há de recessivo e
anacronicamente tradicionalista, sob o império dessa forma de
presidencialismo de coalizão sem princípios triunfante entre nós,
obstou o acesso à participação política dos filhos dos seus próprios
sucessos econômicos-, recomendando-lhes que usufruíssem as delícias do
consumo. A recomendação valia para todos, mas o desfrute, é claro,
teria de ser duramente diferencial.
Não à toa, quando esses setores emergentes despertaram! para a
política, processo disparado pelo tema da mobilidade; urbana, tinham
diante de si uma sociedade civil apática, envolvida nas malhas das
agências estatais, com suas ONGs cooptadas e uma atividade partidária
que mais lembrava um mercado em que se tomava cá para entregar algo
acolá. A reação à sua presença foi quase caricata, legislando-se de
afogadilho em obediência à pauta que as tabuletas portadas pelos
manifestantes estampavam, fazendo morrer à míngua uma reforma
democrática da política que lhe devolvesse vida.
A política, contudo, não conhece vácuo e, fechados os novos caminhos
que pareceram abertos para ela, está aí, trilhando com pachorra os que
lhe são velhos conhecidos. Aí, o retor-nocfa Ação Penal 470, já
esquecida dos "crimes contra a República" - qualificação dada pelos
votos da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal no seu
julgamento -, para a satisfação do nosso cediço bacharelismo, com esses
embargos infringentes que aí estão e as piruetas hermenêuticas que os
justificam. E para atestar que tudo está como j dantes no quartel de
Abrantes, também aí os lances rocambolescos deste início de sucessão
presidencial, testemunhando que os nossos políticos "não aprenderam
nada, nem esqueceram nada" com as jornadas de junho, tal como na frase
conhecida de um estadista da França do período da Restauração sobre os
aristocratas do Antigo Regime que, banidos pela Revolução Francesa, se
recusavam a reconhecer que não havia volta para o seu mundo de antanho.
Não há dúvida, em 2014, dentro e fora dos estádios, devemo-nos preparar para emoções de tipo padrão Fifa.
Professor-pesquisador da PUC-RIO.
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