sábado, 5 de outubro de 2013

Descendente de escravos luta para tirar crianças do abandono‏

MINEIROS DE OURO » A mãe de todos Descendente de escravos luta desde jovem para manter tradições herdadas dos pais e avós e tem orgulho do trabalho que desenvolve pela cidadania e para tirar crianças do abandono


Simone Lima

Estado de Minas: 05/10/2013 


"Sete crianças achei na Praça Sete, em BH, abandonadas, vivendo nas ruas não sei há quanto tempo. Crianças que acabariam sem futuro. Peguei para criar e dar amor. Tenho filho preto e filho branco, mas são todos filhos" - Sebastiana Geralda Ribeiro

Bom Despacho – Aos 77 anos, Sebastiana Geralda Ribeiro continua sendo guerreira: enfrenta obstáculos, supera-os e transforma a dificuldade em aprendizado. Essa é a lição de vida dessa mineira, descendente de escravos, que há mais de meio século luta para que o negro tenha orgulho de suas origens. Dona Tiana, como é conhecida em Bom Despacho, Centro-Oeste de Minas, travou uma batalha para melhorar as condições de vida da comunidade na qual mora. Mais de 60 crianças e adolescentes são beneficiados com ações sociais do Quilombo dos Carrapatos, realidade possível graças a essa mulher, que não teve medo de lutar pelo seu povo.

Portão aberto, fogão a lenha sempre aceso, cantoria e devoção. É assim na casa de Dona Tiana. Difícil saber quem mora ou não na residência, tamanha a intimidade dos amigos e vizinhos. No bairro Ana Rosa, também conhecido como Comunidade da Tabatinga, não tem pessoa mais conhecida. Com sorriso largo e simpatia, ela conta sua história. Aos 2 anos, Sebastiana saiu da casa dos pais, em Bom Sucesso, para viver em Bom Despacho com a avó. Chegou a se casar, mas ficou viúva aos 36, com 14 filhos: sete dela e outros sete de criação. “Sete crianças achei na Praça Sete, em BH, abandonadas, vivendo nas ruas não sei há quanto tempo. Crianças que acabariam sem futuro. Peguei para criar e dar amor. Tenho filho preto e filho branco, mas são todos filhos.”

Tiana trabalhou muito e viveu em várias casas até comprar um terreno na Tabatinga, lugar que antigamente era um quilombo, onde escravos se escondiam de fazendeiros. “Quando mudei para cá, na década de 1950, o povo tinha medo até de passar pela Tabatinga. Diziam que havia muitos ladrões aqui. Gente ruim. Mas não era. Eram negros fujões, os filhos e netos deles, descendente de escravos assim como eu.”.

Não chegou a frequentar escola, mas sabe ler, escrever e tem histórias guardadas na lembrança. Algumas tristes, como a da tia, que era escrava e teve a mão queimada pela sinhá porque havia provado um pouco de melado. Outras de pura superação, como quando formou um grupo de escola de samba na Tabatinga e confeccionou figurinos para 800 pessoas em 10 dias e 10 noites. “Minha amada Estrela de Ouro! Trouxe todo mundo para treinar no meio do mato. Quando parávamos, havia terra no olho, no cabelo, em todo os lugares. Mas foi assim, com a escola sacudimos Bom Despacho e abrimos a porta da Tabatinga para a arte.”

Uma das poucas mulheres no Brasil a comandar uma guarda de reinado, Tiana é capitã, há 75 anos, da guarda do Reinado de Moçambique e São Benedito. Na família, até os pequenos acompanham e sabem de cor a letra dos hinos, que falam do sofrimento e da fé do escravo. “O que mais me deixa chateada é que o negro, por mais bonito que faça, é visto como macumbeiro ou feiticeiro, nunca como artista. O congado é nossa cultura, arte, devoção. Tento manter tudo vivo dentro da família e na comunidade. Meu sonho é reunir todos os reinados da região.”


Dona Tiana, como é conhecida em Bom Despacho, Centro-Oeste de Minas, travou uma batalha para melhorar as condições de vida da comunidade na qual mora.  (NANDO OLIVEIRA/ESP EM/D. A PRESS)
Dona Tiana, como é conhecida em Bom Despacho, Centro-Oeste de Minas, travou uma batalha para melhorar as condições de vida da comunidade na qual mora.
 QUILOMBO Dona Tiana dedicou a vida ao fortalecimento da tradição de seu povo e foi por inspiração na cultura negra que surgiu a Associação dos Quilombos de Bom Despacho, que promove cursos profissionalizantes para crianças e jovens da Tabatinga. Hoje, mais de 60 meninos e meninas, com até 17 anos, têm aulas de estampa em silk, oficinas de bonecos, informática e confecção de tapetes e peças em fuxico. Tiana lembra que nem sempre foi assim: “Quando vim para cá, isso era ponto de prostituição. Já saí correndo atrás de carro, jogando pedra para não levarem as meninas. Não digo que tirei todas dessa vida, mas muitas hoje são mães de família, trabalham e até se formaram na faculdade”.

Durante 22 anos, Tiana foi presidente da Associação do Bairro Ana Rosa. Graças a ela, mais de 90 famílias contam com água tratada, esgoto, energia elétrica, escolas e seu grande orgulho: a creche municipal. “Isso era tudo mato. Ajudei a melhorar aos poucos. Pedi aos prefeitos e as coisas começaram a dar certo. Mas não foi fácil. Já fiquei parada até na porta do Congresso para ser atendida e alguém me escutar.”

Tiana recebeu títulos em muitas cidades da região e, em 2005, foi homenageada na Assembleia Legislativa. Mas para esta neta de escravos, o que mais importa é ver família e amigos reunidos na cozinha, em torno de uma mesa farta e perceber que a luta valeu a pena. “Meus filhos tiveram estudo e os netos também estão nesse caminho. Felicidade para mim é ver a nossa associação funcionando, pedindo ajuda e lutando sempre. Hoje, conto com meus filhos para ajudar nesse trabalho. Quero melhorar muito ainda a vida desse povo.” 

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