Tudo pelo rock
Mutantes voltam aos palcos para tocar o repertório do mítico LP Tudo foi feito pelo Sol. A idade pesa, mas não é problema para Sérgio Dias, Antônio Pedro, Túlio Mourão e Rui Mota
Daniel Camargos
Estado de Minas: 12/10/2013
Rui Mota confessa: "Foi o melhor período da minha vida" |
Os quatro se abraçam para a foto e posam com os rostos colados. O fotógrafo agacha buscando o melhor ângulo. O tecladista brinca: “The mamas and papadas”. O guitarrista reclama da dor nas costas enquanto conecta os fios da pedaleira e pede que as letras sejam impressas em corpo grande, para facilitar a visualização. O baterista ainda sente os efeitos da recente cirurgia no ombro. Reunidos no estúdio do Bairro Serra, esses quatro senhores, porém, contrariam totalmente os sinais da idade quando os instrumentos são ligados. É rock and roll com letra maiúscula – e por extenso –, como reza a cartilha do progressivo. O repertório vem de um dos melhores discos do gênero gravado no país: Tudo foi feito pelo Sol (1974).
Desde quarta-feira, o quarteto ensaia o sétimo disco dos Mutantes, o primeiro da banda sem Arnaldo Baptista e o segundo sem Rita Lee. Se não há a irreverência dela e a melancolia dele, ali estão a máxima potência e a virtuosidade da guitarra de Sérgio Dias, reforçadas por um time lendário do rock nacional: Túlio Mourão (teclados, sintetizadores e moog), Antônio Pedro (baixo) e Rui Mota (bateria) – formação original do LP e da turnê.
“Foi o melhor período da minha vida”, revela Rui. “Não poderia imaginar que nos reuniríamos novamente”, vibra. Depois dos Mutantes, o baterista tocou com Ney Matogrosso, Moraes Moreira, Marina, Sá & Guarabira, Zé Ramalho, Ednardo, Amelinha e Erasmo Carlos. Hoje, Rui comanda uma escola de bateria no Rio de Janeiro.
Antônio Pedro foi o baixista da cozinha das lendas Tim Maia e Raul Seixas – “iscas de polícia”, nas palavras dele. Participou da fundação da Blitz com Lobão e Evandro Mesquita, foi parceiro de Lulu Santos. Depois de deixar o palco para cuidar da família, o baixista está exultante com a volta da formação dos Mutantes. “O som do disco soa bem até hoje. Tem peso”, resume.
Para o baixista Antônio Pedro o álbum mantém sua força |
Psicodália
No fim do ano passado, a banda se reuniu pela primeira vez para apresentar o repertório de Tudo foi feito pelo Sol a convite do festival Psicodália, em Santa Catarina. O show desta noite é o segundo, mas há possibilidade de outros. “Em todos os lugares aonde vou, alguém se diz fã desse disco. Semanas atrás, fiz uma apresentação de piano e me pediram Pitágoras”, conta Túlio Mourão, o mutante mineiro. Ele já gravou com Milton Nascimento, tem shows marcados com Maria Bethânia e participou do palco e de discos de figurões como Chico Buarque e Caetano Veloso, além de estrelas internacionais do naipe de Mercedes Sosa, Pat Metheny e Jon Anderson, da banda Yes.
“É um disco com começo, meio e fim. Muito sério, mas com letras positivas”, define Sérgio Dias, fundador dos Mutantes ao lado do irmão, Arnaldo Baptista, e de Rita Lee. Sérgio segue com outra formação do grupo, tocando o repertório clássico. Com CD recém-gravado, tem 13 shows marcados para o mês que vem nos Estados Unidos. O grupo, porém, é diferente do que se reúne hoje na capital mineira. Considerado um dos melhores guitarristas da história do rock, Sérgio mora em Las Vegas. E é sincero ao comentar detalhes da turnê de Tudo foi feito pelo Sol: “Não me lembro de tudo. Estava com tanto ácido na cabeça...”
Piração
Aliás, os psicotrópicos foram decisivos para aquele som, assim como as influências de Yes, Genesis, Emerson, Lake & Palmer e da italiana Premiata Forneria Marconi. Os ensaios e a piração tinham como base um sítio na Serra da Cantareira, em São Paulo, e depois em Itaipava, no Rio de Janeiro. Para divulgar Tudo foi feito pelo Sol, a banda saiu em turnê pelo Brasil. A temporada mais longa dos Mutantes durou dois anos e meio. Túlio conta que não existiam empresas que sonorizassem espaços para multidões. A solução era carregar o equipamento em dois caminhões.
Coube a outro filho da família Dias Baptista, o primogênito Cláudio César – mistura de Professor Pardal, luthier e engenheiro de som –, criar o equipamento. Cláudio projetou caixas para comportar alto-falantes de 18 polegadas. Um monstro de 3m de altura, 1,20m de largura e 1m de profundidade. Cada caixa pesava mais de 200kg. Quando a turnê estreou num teatro paulista, a cena foi surreal: “Um fã entrou dentro da caixa. Sei lá, talvez para sentir melhor o som. Quando dei uma dedada no grave do moog, a caixa cuspiu ele lá de dentro”, revela Túlio Mourão.
Cazuza
Um fã do disco era Cazuza. Aliás, mais que fã. O filho de João Araújo, diretor da Som Livre, foi decisivo para a história desse LP. Em 1974, o futuro astro tinha 15 anos e passava grande parte do dia na gravadora. “Ninguém queria gravar rock progressivo. Sem a Rita e o Arnaldo, os Mutantes perderam parte de seu apelo, mas quando o Cazuza ouviu, ajudou a convencer o pai”, recorda Túlio.
O disco foi feito em um único take, sem retoques, com músicos tocando juntos. “Não havia gravadora, nem imprensa, ou emissora de rádio que nos desse espaço. O rock era marginal. É difícil explicar isso para a geração de hoje”, destaca Túlio.
Resumindo: um LP clássico será executado pela formação original 39 anos depois de ser lançado. “Criou-se uma mítica em torno desse disco”, resume Túlio. O frisson vem, principalmente, da parte técnica. Fãs ouvem as faixas fazendo air guitar involuntário nos solos de Sérgio Dias ou dão dedadas no moog imaginário para acompanhar Túlio Mourão. “A garotada de hoje tem acesso instantâneo e abrangente a tudo. Essa turma compara, conhece muito e encontra conteúdo, sinceridade e alta performance instrumental naquele disco”, avalia Túlio.
Depois do entusiasmo com a reação da garotada, o segundo passo dos músicos foi questionar se ainda faria sentido tocar juntos. “Conversamos e sacamos que todos estavam a fim”, garante o tecladista. E a reação do público? “Quando acabou o show no festival Psicodália, autografamos mais discos do que na década de 1970”, informa Túlio Mourão. Os “senhores” do rock passaram mais de duas horas atendendo a multidão, para surpresa o filho do tecladista, de 27 anos. Ele não fazia ideia de que o pai era um rock star tão aclamado.
No túnel do tempo, direto de 1974: Rui Mota, Antônio Pedro, Túlio Mourão e Sérgio Dias |
TUDO FOI FEITO PELO SOL
Com Sérgio Dias, Túlio Mourão, Antônio Pedro e Rui Mota – formação de 1974 da banda Os Mutantes. Sesc Palladium, Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro, (31) 3214-5360. Hoje, às 21h. Inteira: R$ 80 (setor 1), R$ 70 (setor 2) e R$ 50 (setor 3). Meia-entrada válida para estudantes e idosos com mais de 60 anos, mediante apresentação de documento comprobatório.
Serviço completo
O repertório desta noite traz Tudo foi feito pelo Sol de A a Z. Ou melhor: da faixa Deixe entrar um pouco de água no seu quintal a Tudo foi feito pelo Sol, passando por Pitágoras, Desanuviar, Eu só penso em te ajudar, Cidadão da terra e O contrário de nada é nada. A banda vai tocar também sucessos de compactos gravados nos anos 1970, como Balada do amigo e Tudo bem.
Time de clássicos
Vale comparar. Ouvir a formação dos Mutantes de 1974 tocar Tudo foi feito pelo Sol 39 anos depois de seu lançament, seria como se Caetano Veloso reunisse a banda original de Transa (1972); os Novos Baianos repetissem a formação de Acabou chorare (1972); Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad executassem ao vivo o clássico Secos & Molhados (1973); e Jorge Ben (ainda sem o Jor) convocasse a turma de A tábua de esmeralda (1974) para um show.
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