sábado, 9 de novembro de 2013

Arnaldo Viana-Viagem da delicadeza‏

Arnaldo Viana - arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br


Estado de Minas: 09/11/2013 



Faltava pouco para as 22h. Cidadão, na faixa dos 60 anos, faz sinal para ônibus circular Contorno, perto da Praça Floriano Peixoto, no Bairro Santa Efigênia. Manca da perna esquerda e sobe com dificuldade a curta escada para entrar no coletivo, que roda no sentido Saudade. Depois de se sentir firme, com as mãos agarradas ao balaústre, encara o motorista e dá boa-noite. A resposta é um olhar espantado, seguido de um grunhido. Passa pelo cobrador, paga a passagem e não se sente estimulado e dar outro boa-noite.

O veículo amarelo arranca. A carroceria montada sobre chassis de caminhão sacoleja e o barulho de lata batendo sobre lata fica mais perceptível com o coletivo quase vazio. O passageiro sessentão fica de pé. Vai descer logo. Depois de o ônibus cruzar a Avenida Getúlio Vargas, puxa a corda do sinal de parada. Quer o ponto que fica adiante, na esquina da Rua Gonçalves Dias.

O carro encosta, o cidadão começa a descer devagar por causa da perna dolorida. Quando mal encosta o pé esquerdo no asfalto, a porta do coletivo é fechada. O passageiro meio idoso fica com a perna e o ombro direito presos. Não consegue se desvencilhar. Vem o pânico. E se o chofer der a arrancada? Esforça-se ao máximo para escapar, enquanto pessoas que esperavam outro ônibus começam a gritar para o motorista, que finge não ouvir. Um safanão, que quase o joga no chão, o livra do incômodo.

As pessoas perguntam se está machucado. Responde que não. Mas o que houve?, quis saber alguém. “Talvez porque eu tenha sido atrevido a ponto de dar boa-noite ao motorista”, respondeu o passageiro, sentindo ainda mais forte a dor na perna esquerda por causa do esforço para se livrar da porta. Mas o senhor parece ferido”, diz uma senhora. “Não, não é consequência do incidente. É excesso de ácido úrico no sangue”, responde o cidadão antes de seguir avenida abaixo arrastando a perna.

O relato é verídico e tem o propósito de ilustrar a falta de intimidade do brasileiro com a delicadeza. Falta de intimidade na prática e no recebimento. O motorista do coletivo, não acostumado a receber cumprimentos durante a jornada de trabalho, recebe um boa-noite com espanto e resmunga uma resposta não por má educação, mas por constrangimento. No caso do circular Contorno, deixou o passageiro à vontade para a ironia, porque o incidente da porta nada teve a ver com o boa-noite.

Há exatas duas semanas, este jornal publicou reportagem da menina Julia Fernandes Rodrigues Macedo, de 9 anos, que juntou lacres de latinhas de refrigerante e cerveja para encher 80 garrafas PET de dois litros e trocá-las por uma cadeira de rodas, que foi doada a uma creche para crianças com paralisia cerebral. A menina definiu a iniciativa como um ato de delicadeza. Mas não apenas se expressou. Demonstrou no olhar o que estava dizendo.

Então, não adianta ser apenas caridoso, educado, cortês, estender a mão a alguém ou comportar-se como um cavalheiro. É preciso completar a ação com delicadeza também no olhar, nos gestos. Os orientais, com seus mais de 4 mil anos de cultura, sabem fazer isso muito bem. Cedem o lugar no ônibus ou no trem a um estrangeiro e pode conferir que o gesto está expresso na forma de falar, no brilho do olhar e no sorriso de satisfação. Não o fazem por dever ou por obrigação. É apenas delicadeza, pura delicadeza.

O senhor meio idoso talvez não tenha demonstrado delicadeza no cumprimento ao motorista. Compreensível. Deve-se levar em conta o sacolejar do ônibus, que exige atenção e cuidado redobrado do passageiro para não se desequilibrar. Não foi delicado a ponto de lembrá-lo da delicadeza. E que delicadeza está acima de todas as coisas, inclusive da pressa, do estresse e do cansaço. Delicadeza… coisa para se pensar, cultivar…

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